segunda-feira, 24 de março de 2025

Eduardo Affonso (Conceição)

Tom Jobim era fã de Villa-Lobos, e um dia conseguiu ser apresentado ao seu ídolo.

— Villa, este é o Antônio Carlos Jobim, autor da música da peça “Orfeu da Conceição”.

— Ah, sim! – disse o maestro. E, querendo demonstrar que já tinha ouvido falar do moço, cantarolou “Conceição / eu me lembro / muito bem” — fazendo uma “pequena” confusão entre a obra de Tom e Vinícius e a canção de Dunga e Jair Amorim, imortalizada pelo Cauby Peixoto.

A gafe do maestro me faz pensar que não se fazem mais Conceições como antigamente.

Na lista dos cinquenta nomes femininos mais usados no Brasil, aparecem Agatha, Ayla, Gabrielly, Emily e Isabelly, mas não Conceição – que talvez não figure nem nos “Top Thousand”.

Nomes vêm e vão.

Conceição foi e não voltou.

Sumiu.

Ninguém sabe, ninguém viu.

Há muito uma Conceição não brinca de boneca, não usa o primeiro sutiã, não arruma o primeiro namorado.

Não parece mesmo adequado a uma menininha um nome tão aumentativo, tão encorpado.

Conceição é nome de mulher já adulta — “mulher feita”, como se dizia no tempo em que nasciam Conceições.

Porque Conceição (“aquela que concebe”) é nome de mãe.

É o nome da minha mãe.

Sempre me soou a nome de gente humilde, do tipo que batiza os filhos de acordo com o santo do dia (ela não nasceu no dia de Nossa Senhora da Conceição, mas foi nesse dia que deu à luz sua filha — o dia em que foi mais mãe).

O Orfeu negro de Tom e Vinícius poderia ter sido da Silva, dos Santos, mas foi “Orfeu da Conceição” o poeta cuja lira emudecia os pássaros e vivia no morro a sonhar com o amor eterno de Eurídice — coisa que o morro não tem.

Esse “da Conceição” o arrancava da mitologia grega e lhe punha os pés no chão, lhe conferia mais humanidade, o trazia para o Rio de Janeiro, e preparava as rimas que viriam das cordas do seu violão (numa manhã — tão bonita manhã – de Carnaval).

Talvez haja, no mais profundo Brasil – aquele onde ainda são geradas as marias das dores, do perpétuo socorro, da natividade, da agonia, da anunciação – uma ou outra pirralha adornada com esse nome.

Talvez não.

Conceição é um nome em extinção.
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EDUARDO AFFONSO, Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Texto e imagem obtidos no blog de Eduardo Affonso. 30 janeiro 2025.
https://tianeysa.wordpress.com/2025/01/30/conceicao/

domingo, 23 de março de 2025

Adega de Versos 139: Amaury Nicolini

 

Antonio Juraci Siqueira (Carta/canção para adormecer os homens e despertar as crianças)

Em paz com Deus e com os homens, o peito pleno de amor e as mãos ornadas de ternura, escrevo esta carta em forma de canção que faça dormir os homens e despertar as crianças, que soe como o burburinho da água na ribanceira do rio, o farfalhar do vento nas  mangueiras, o trinar dos pássaros tecendo alvoradas ou o badalar de sinos na Hora do Ângelo. 

Uma canção para despertar a criança que trazemos dentro de nós: umas, adormecidas pelo cansaço causado por uma sociedade cada vez mais embrutecida pelo imperativo categórico produzir, consumir e consumir-se; outras, amordaçadas para que suas verdades não incomodem a mentira nossa de cada dia; outras, deixadas de lado por absoluta falta de tempo ou relegadas ao esquecimento para que seus sonhos de ser não venham se antepor às exigências do ter. 

Uma carta/canção que nos abra os olhos para um mundo mágico, belo e possível, presente em essência mas ausente de fato no mundo caótico em que vivemos, que nos faça compreender que o pequeno mundo que vemos de nossas janelas, não tão belo e colorido como os vistos através das janelas virtuais, é mais real, humano e possível de interferências e mudanças dentro das possibilidades de cada um. 

Um mundo feito de seres e coisas palpáveis onde um copo d’água possa fazer a diferença, um gesto de amor salvar uma vida e o pão da palavra saciar muitas almas famintas de afeto; onde o dinheiro não seja tudo, a tolerância seja substituída pela aceitação mútua das nossas diferenças e uma palavra possa abrir portas para mil possibilidades. Enfim, um mundo onde a paz deixe de ser três letras esquecidas nas páginas dos dicionários. 

Que esta carta/canção nos faça ver o mundo através dos olhos da inocência onde um pássaro seja tão somente um poema emplumado a cantar nos galhos da manhã e não um ítem no mercado negro de animais silvestres, uma árvore deixe de ser um verde pacote com os dólares da devastação ambiental e passe a ser vista como uma bandeira desfraldada sobre a esperança, um rio seja a líquida rua do poeta e do mururé e não uma fonte de energia a inundar belos montes de vida, cultura e poesia. 

Talvez alguns vejam nesta carta apenas um monte de palavras. Mas um monte de palavras que pode mudar você, que pode mudar o mundo em sua volta. E eu amo as palavras e nelas acredito. Por isso é que fabrico, com elas, quixotescamente, meu escudo e minha lança para investir contra os moinhos da insensibilidade humana, para arrancar viseiras, derrubar os muros do preconceito, da intolerância e da opressão; para abrir estradas, construir pontes e rasgar horizontes à demanda de um mundo mais justo, igualitário e fraterno. 

Eu acredito na palavra como ferramenta divina deixada por Deus para formar, informar e transformar o homem e o mundo. A pá para revolver a lavra revelando o tesouro escondido no garimpo da alma de cada ser humano. Um tesouro que o tempo não consome e os ladrões não roubam. 

Eu acredito, por exemplo, na palavra paz, na palavra amor, na palavra amizade, na palavra igualdade, na palavra união, na palavra justiça, na palavra esperança, na palavra sonho, na palavra alegria, na palavra fraternidade, na palavra fé, na palavra perseverança, na palavra felicidade, na palavra poesia, na palavra... Palavra!

E você, em que palavra acredita?
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Antônio Juraci Almeida Siqueira, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948). Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Luís da Câmara Cascudo (O Marido da Mãe-D’Água)

Era uma vez um moço pescador muito destemido e bom que lutava com as maiores dificuldades para viver. Ultimamente o vento mudara e quase não havia peixe. Passava horas e horas na praia, com a pindaíba na mão e os peixes fugiam dele como o Diabo da cruz. O rapaz estava mesmo desanimado e dormia com fome muitas vezes.

Numa noite de luar estava ele querendo pescar e o peixe escapulindo depois de comer a isca. A noite foi avançando, avançando, o luar ficando alvo como a prata e caindo mesmo a friagem. O rapaz não queria voltar para sua casinha sem levar nem que fosse um peixinho para matar a fome.

Já ia ficando desanimado quando começou a ouvir umas vozes cantando tão bonito que era de encantar. As vozes foram chegando para mais perto, mais perto, e o rapaz principiou a olhar em redor para ver quem estava cantando daquele jeito. Numa ponta de pedra apareceu uma moça bonita como um anjo do céu, cabelo louro, olhos azuis e branca como uma estrangeira. Ficou com o corpo meio fora d’água cantando, cantando, os cabelos espalhados, brilhando como ouro.

O pescador ficou todo arrepiado mas criou coragem e disse:

– Que desejais de um cristão, alma penada?

A moça respondeu:

– Não sou alma penada, cristão! Sou a Mãe-d’Água! Nunca uma pessoa me perguntou alguma coisa e sempre eu dei, e jamais me ofereceram auxílio. Tens coragem?

– Tenho, declarou o rapaz.

– Queres pegar peixe?

– Quero!

– Pois sacode o anzol onde eu estou. Deves vir todas as noites até o quarto minguante e só pescar de meia-noite até o quebrar da barra.

Abanou a mão e mergulhou, sumindo-se.

O rapaz fez o que ela tinha aconselhado e pegou tanto peixe que amanheceu o dia e não pudera carregar tudo para casa.

Nunca mais viu a Mãe-d’Água mas, no tempo da lua, vinha pescar e foi ficando mais aliviado da pobreza. Os meses iam passando e ele ficando com saudade daquela formosura. 

Uma noite de luar, estando na pesca, ouviu o canto da Mãe-d’Água e, largando tudo, correu na confrontação da cantiga. Quando a Mãe-d’Água botou as mãos em cima da pedra o rapaz chegou para junto e, assim que ela se calou, o pescador agradeceu o benefício recebido e perguntou como pagaria tanta bondade.

– Quer casar comigo? – disse a Mãe-d’Água.

O rapaz nem titubeou:

– Quero muito!

A Mãe-d’Água deu uma risada e continuou:

– Então vamos casar. Na noite da quinta para sexta-feira, na outra lua, venha me buscar. Traga roupa para mim. Só traga roupa de cor branca, azul, ou verde. Veja que não venha alfinete, agulha ou coisa alguma que seja de ferro. Só tenho uma condição para fazer. Nunca arrenegue de mim nem dos entes que vivem no mar. Promete?

O rapaz, que estava enamorado por demais, prometeu tudo e deixou a Mãe-d’Água, que desapareceu nas ondas e cantou até sumir-se.

Na noite citada o pescador compareceu ao lugar, trazendo roupa branca, sem alfinete, agulha ou coisa que fosse ferro. Antes de o galo cantar, a Mãe-d’Água saiu do mar. O rapaz estava com um lençol bem grande, todo aberto. A Mãe-d’Água era uma moça tão bonita que os olhos do rapaz ficaram incendiados. Enrolou-a no lençol e foi para casa com ela.

Viveram como Deus com os Santos. A casa ficou uma beleza de arrumada, com roupa, mobília, dinheiro. Comida, água, nada faltava. O rapaz ficou rico da noite para o dia. O povo vivia assombrado com aquela felicidade que parecia milagre.

Passou-se um ano, dois anos, três anos. O rapaz gostava muito da Mãe-d’Água, mas de umas coisas ia se aborrecendo. A moça não tinha falta, mas, na noite da quinta para a sexta-feira, sendo luar, ficava até o quebrar da barra na janela, olhando o mar. Às vezes cantava baixinho que fazia saudade até às pedras e aos bichos do mato. Às vezes chorava devagarinho. O rapaz tratava de consolar a mulher, mas, com o correr dos tempos, acabou ficando enjoado daquela penitência e principiou a discutir com ela.

– Deixe essa janela, mulher! Venha dormir! Deixe de fazer assombração!

A Mãe-d’Água nem respondia, chorando, cantando ou suspirando na sina que Deus lhe dera.

Todo mês sucedia o mesmo. O rapaz ia ficando de mal a pior.

– Venha logo dormir, mulher presepeira! Que quisila idiota é essa? Largue essa mania de cantiga e choro virada para o mar! Você é gente ou é peixe?

E como o melhor já possuía em casa, deu para procurar vadiação do lado de fora, chegando tarde. A Mãe-d’Água recebia-o bem, não se queixando de nada e tudo ia correndo com satisfação e agrado da parte dela.

Numa noite o rapaz foi a um baile e ficou a noite inteira dançando, animado como se fosse solteiro. Nem se lembrava da beleza que esperava por ele em casa.

Só voltou de manhã e foi logo gritando pelo café, leite, bolos e mais coisas para comer. A Mãe-d’Água, com paciência, começou fazendo mais que depressa o que ele dissera, mas não vinha na rapidez do corisco.

O mal-agradecido, sentando-se numa cadeira, de cara franzida, não tendo o que dizer, começou a resmungar.

– Bem feito! Quem me mandou casar com mulher do mar em vez de gente da terra? Bem feito. É tudo misterioso, cheio de histórias. Coisas do mar... hi... eu te arrenego!

Logo que disse essas palavras, a Mãe-d’Água deu um gemido comprido e ficou da cor da cal da parede. Levantou as duas mãos e as águas do mar avançaram como um castigo, numa onda grande, coberta de espuma, roncando como um bicho feroz. 

O rapaz, morrendo de medo, deu uma carreira, subindo um monte perto da casa. Lá de cima se virou para ver. Casa, varanda, cercado, animais, tudo desaparecera. No lugar estava uma lagoa muito calma, pegada a um braço de mar. Ao longe ouviu uma cantiga triste, triste como quem está se despedindo do mundo.

Nunca mais viu a Mãe-d’Água.
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Fontes:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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sábado, 22 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 27 *

 

ENCERRAMENTO DO BLOG DE TROVAS “O VOO DA GRALHA AZUL”


https://voogralhaazul.blogspot.com/
 

 Não vejo razão alguma em manter este blog em funcionamento. A manutenção de um blog como este exige muita pesquisa, muita organização, muita dedicação, revisão, etc., tanto trabalho por nada.  

Há 10 anos no ar, apenas dois seguidores, sendo um deles eu mesmo e um trovador da Itália, e apenas um comentário em mais de 4.500 publicações e dezenas de milhares de trovas. Lamentável que não saibam valorizar a divulgação de trovadores de diversas épocas, vivos ou falecidos.

Na data de hoje, 21 de março, cerca de 50 mil trovas e 1400 trovadores foram excluídas. O Blog deixa de existir.

Neste blog, Singrando Horizontes, estes dias excluí mais de 4 mil publicações e milhares de trovas vinculadas à UBT, entre resultados de concursos, artigos, trovadores, etc. Contudo continuarei divulgando a trova, mas apenas dos amigos, colaboradores, apoiadores e incentivadores, vivos ou falecidos.

Paulo Vinheiro (Uma Flor no Meio da Vida)

Paulo Vinheiro, nome artístico do escritor e poeta Paulo Vieira Pinheiro, é de Monteiro Lobato/SP. 
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“O que queres?” Perguntei-me!

Dia e outro, na procura dos sentidos, me perco nas palavras que brotam por todo lado com seu propósito de me confundir.

Jornais, revistas, livros... tantas letras que doem.

Já li de tudo, me arrebatam as bulas...

Machado, Alencar, Scliar, Saramago, Lobato, e tanta gente que depois de um tempo me cobra: – que dizes? Que me dizes?

Ousado, talvez com um pouco de medo, arrisquei umas pequenas linhas... pequeninas... pequenininhas.

Então escrevi.

Tive a sorte de aprender a letrar pensamentos e os letrei; então achei pouco.

Pensei: – Se posso descrever o que penso... porquê não posso escrever o que sinto?

Vi que existia uma ponte estreita, longa, perigosa e muita vez conflitiva, entre o que eu sentia e pensava.

Sofri, mas não desanimei, então me reescrevi.

Contei contos, desvelei novelas, trabalhei textos... passei a ler com mais cuidado, com mais rigor, com mais seleção.

Passei a ler como se eu tivesse escrito o texto que não escrevi. Busquei o sentimento que vale a pena (no estrito sentido da pena que escreve).

Antes disso, eu não respeitava os que escreveram tanto como mereciam.

Textos bons ou textos nem tanto como queríamos ler, servem para o que servem, para se qualificarem uns aos outros.

Quem sabe o que é bom?

Sempre gostei das coisas mais fáceis, e por isso busquei as mais difíceis, só para me contrariar... só eu sofri no caso das palavras que li.

Agora há pouco me perguntaram:  – E a flor, onde entra nisso que dizes?

Ora entendo que a flor é o produto da expressão do que se diz, do que se escreve, do que se pinta, do que se faz para a apreciação, como o trabalho, como o amor... como a expressão pura e simples da ação.

Existe no campo ou nos jardins, todo o tipo de expressão floral. Existe no jardim de nossos dias uma quantidade de obras a se admirar, umas com mais cuidado, outras com mais atenção, outras detalhadas, outras simples... cada qual com suas qualidades.

Para nós sobra entender o que fizemos ou faremos de nós.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Vereda da Poesia = Sophia de Mello Breyner Andressen (Portugal)



quinta-feira, 20 de março de 2025

Adega de Versos 138:

 

A. A. de Assis (Felicidade sem camisa)

A praia não é somente a praia: é um monte de outras alegrias

Coisa bonita é o povo curtindo férias na praia. Um lugar superdemocrático, aberto a todos os padrões. Um homem de calção e sem camisa, uma mulher de maiô ou de biquíni, você não sabe se é alguém que tem mais ou menos dinheiro, se tem mais ou menos cultura, se é mais ou menos importante lá no onde mora. E mais: a maioria nem tá aí para esses grilos de elegância e moda. Todo mundo igual. Todo mundo gente. Gente feliz, que trabalha o ano inteiro e agora está ali celebrando a vida.  

Primavera-verão em Balneário Camboriú. O sol do sul. Paranaenses, catarinenses, gaúchos. Mais banhistas à beça vindos de outros estados. Mais los hermanos argentinos, uruguaios, paraguaios, bolivianos, chilenos. Uns chegados de automóvel, outros de ônibus, de moto ou de avião, outros em grupos de excursão.

Todo mundo numa boa. Logo cedinho arrumando a tralha pra espetar barraca na areia e salgar o corpo no mar. O isopor com as bebidinhas, a cesta cheirosa recheada de comes-comes. As crianças se deliciando com o churro, o sorvete, o milho verde.

No meio dos de férias, também homens e mulheres aproveitando a temporada pra ganhar um dinheirinho vendendo chapéus, roupas, cerveja, algodão doce, cocada, pipoca, ou alugando cadeiras e barracas. Um velhinho oferecendo bilhetes de loteria. Duas moças cantando o pregão: “Salada de frutas, sanduíche natural…”

Mas a praia não é somente a praia: é um monte de outras alegrias. Se o dia acorda chuvinhoso, o pessoal aproveita pra passear no comércio. Esvazia a Avenida Atlântica, enche a Avenida Brasil – um comprido shopping a céu aberto, aquela enorme fileira de lojinhas com o de tudo que a moçada gosta. De noite tem os barzinhos, os restaurantes, as baladas, tem a noite toda pra paquerar, comer, dançar.

Tem também a opção de dar umas esticadas pela vizinhança: Itajaí, Itapema, Bombinhas, Cabeçudas, Beto Carrero, Brusque, Nova Trento, Pomerode…

Gente boa, gente muito gente. Que estuda, trabalha, produz.

Gente do batente, que realmente merece esses belos dias de recreio com a família na praia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. 
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Silmar Bohrer (Croniquinha) 131

Como foi que tudo começou ? 

Diria que é difícil explicar. Mas os relatos históricos de estudiosos e  pesquisadores dizem (ou sugerem) que no princípio tudo era imensidão inócua e vazia. Até o Gênesis confirma. 

E um sopro deu início àquilo chamado vida, lá na frente, transformando tudo em civilização .  Passaram séculos desde as priscas Eras .

A evolução foi tanta, imensa, grandiosa. Para todo lado.  Para todos os seres. 

Chegamos ao ano 2025 e eis que surgem num canto quase esquecido, próximo às barrancas do planeta, dois animaizinhos de quatro pata carregados de energia solar. 

Dois pequenos puros de alegria, humor à beça, traquinagens muitas.  Arrebanhados, logo tomaram conta do ambiente e da empatia da casa. 

Assim é que nos primórdios do ano surgiu o TRIO DA BAGUNCINHA - Theo, Ísis e papai, desde a manhãzinha agitando, brincando, conversando, fazendo o pequeno circo dos cachorrinhos.

As afeições misturaram tanto que quando saio para a rua vejo carinhas de tristes, silentes, de abandono.  Na volta, já no portão encontro Dom Theo e Dona Ísis com os olhos sorrindo e rabos abanando para iniciar a baguncinha do momento.

Dois tesouros dando lições de cachorrismo e civilidade.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Vereda da Poesia = Bento Nascimento


Humberto de Campos (Melhoramentos...)

A grande preocupação nacional do momento, conforme é notório, é a visita de sua majestade o rei da Bélgica. Da Gávea à Tijuca, do Cais Faroux às águas paludosas do rio Pavuna, reinam uma febre, uma atividade, uma fúria de empreendimentos verdadeiramente assombrosa. Nunca se viu, no Rio, atacados de uma só vez, tão grande número de melhoramentos. A cidade modifica-se, rejuvenesce, transforma-se, das pedras das ruas à crista dos monumentos.

Aí estão, demonstrando a influencia benéfica dessa visita real, as notícias da imprensa, registrando essas alterações. Calça-se uma rua dos subúrbios? Para que? Para o rei Alberto ver... Modifica-se o palácio Guanabara? Reforma-se o jardim da praça Maná? Aumenta-se o edifício da Prefeitura? Com que intuito? Para o rei Alberto ver... Até a pintura das carroças de lixo, ordenada pela Limpeza Publica, já foi atribuída à próxima visita de sua majestade.

Isso, no que está patente, visível, positivo. Os melhoramentos privados, secretos, de iniciativa da população, estes ainda são mais numerosos, mais sérios, mais significativos do nosso entusiasmo. Dezenas de vestidos de baile, "para o rei Alberto ver", já foram encomendados aos grandes costureiros daqui, de Paris e de Londres. Há, mesmo, até, nas rodas elegantes, quem se esteja entregando, pessoalmente, na cidade, com o mesmo fim, a melhoramentos mais interessantes.

Um destes dias, entrava eu no Instituto de Beleza, onde ia comprar um vidro de tintura para o cabelo, quando encontrei, no salão de espera, a minha velha amiga D. Sofia Pedreira, que aguardava, ali, pacientemente, a lindíssima viúva Odete Aires, que se achava, no momento, no gabinete do cabeleireiro. Começávamos nós a conversar sobre coisas sem importância, quando a formosíssima senhora suspendeu o reposteiro, e apareceu à porta, radiando e cheirando, como uma grande rosa que desabrochasse num vaso.

- O senhor por aqui, conselheiro? - gritou a encantadora criatura, com alvoroço, e com todos os dentes, estendendo-me, de longe a sua mão rosada e fina, onde as unhas faiscavam, rubras, como corais.

- É verdade, - expliquei, titubeando.

- Vim comprar uma caixa de pó para dentes... E a senhora?

- Eu? - respondeu, rindo. - Eu... Olhe?

E, espiando para um lado e para outro, a ver se não nos observavam, suspendeu até o ombro deslumbrante a manga curta e larga do finíssimo vestido de seda, mostrando a parte inferior e extrema do lindo braço de mármore, fina, alva, lisa, como de uma criança.

- Veja! - ordenou-me.

E já no primeiro degrau da escada, por trás do leque, piscando-me um olho, com brejeirice:

- Para o rei Alberto ver.

Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Adega de Versos 137: Juan Ramón Jiménez

 

Figueiredo Pimentel (Os anões mágicos)

I
Custódio era sapateiro-remendão, vivendo exclusivamente do seu ofício.

Todavia, por mais que se esforçasse, por mais que trabalhasse, nunca recebia justa recompensa do seu insano labor. Por isso era pobre, paupérrimo.

Chegou uma ocasião em que se viu quase na miséria. Haviam-lhe encomendado um par de botas de verniz. Com o lucro desse trabalho, que ia ser muito bem pago, desde que ficasse bom e fosse entregue no dia marcado, sem falta, contava comprar mais cabedal, e, assim, aprontar alguns pares de botinas, que tencionava vender vantajosamente.

Contudo, no dia em que ia começar o serviço, adoeceu. Foi uma fatalidade, porque não podia dar as botas no dia designado, e, desse modo, ia perder o verniz, em que empatara o único dinheiro que lhe restava.

À noite deitou-se, devorado por violentíssima febre.

Pela manhã acordou ainda mais doente. Assim mesmo, febril, tiritando de frio, e com terrível enxaqueca, tentou trabalhar. Foi procurar o verniz, e soltou uma exclamação! Na véspera apenas havia cortado o couro, e, no entanto, já estava feito o par de botas de montar, um trabalho esplêndido, digno, de um hábil artista.

Foi grande a sua surpresa, e nem sabia como explicar fato tão extraordinário.

Apanhou os sapatos, examinado-os atentamente, virando-os de um lado e do outro; estavam muito bem-feitos, e não tinham nem um ponto sequer fechado, sendo obra de causar admiração.

Quando veio buscar a encomenda, o freguês pagou mais do que havia tratado, tão satisfeito ficou.

Com o dinheiro dessa venda, o sapateiro foi comprar couro para fazer dez pares de botinas.

Trouxe-o para casa, e à noite cortou-o, deixando-o para fazer a obra pela manhã.

Mas, ao outro dia, quando se dirigiu para a sua mesa de trabalho, encontrou tudo pronto, como na noite anterior.

Dessa vez também, não faltaram fregueses. Com o dinheiro que produziu a venda, ele pôde comprar couro para outros pares.

No terceiro dia as botinas estavam prontas. E assim sucedeu noites e noites seguidas, durante bastante tempo. Todo o couro que Custódio cortava de noite, aparecia pronto, transformado em pares de botinas, muito bem-feitas, de modo que o sapateiro foi melhorando, a ponto de ficar quase rico.

II
Uma noite, na véspera de Natal, quando acabava de cortar couro, indo deitar-se, voltou-se para Adelina, sua mulher, e disse-lhe:

– E se nós passássemos a noite em claro, para ver quem nos ajuda dessa maneira?

Adelina concordou no que lhe propunha o marido. Deixando uma lamparina acesa, ocultaram-se os dois dentro de um guarda-roupas, por trás da roupa, e esperaram.

Quando o relógio bateu meia-noite, dois anõezinhos, completamente nus, sentaram-se na mesa do sapateiro, e apanhando o couro cortado, com as suas mãozinhas começaram a coser, furar e bater com tanta ligeireza e cuidado que não se ouvia barulho algum.

Trabalharam sem cessar, até que a obra ficou pronta, desaparecendo então subitamente.

No dia seguinte, Adelina disse:

– Aqueles anõezinhos nos têm enriquecido: é preciso que nos mostremos reconhecidos. Eles devem sentir muito frio, andando assim nus, sem nada sobre o corpo. Sabes? Vou coser uma camisa para cada um, um paletó, uma calça e um colete, e lhes fazer um par de meias de tricô, e tu fazes para cada um, um par de botinas.

Custódio aprovou a ideia da mulher e, à noite, quando tudo estava pronto, colocaram os objetos sobre a mesa em vez do couro cortado para os sapatos, e ocultaram-se de novo, para ver de que modo os anões recebiam os presentes.

À meia-noite, os anões chegaram, e iam começar o trabalho, quando em lugar do couro encontraram as roupas. A princípio mostraram grande espanto, que depressa se transformou em grande alegria.

Vestiram imediatamente a roupinha, e começaram a cantar e saltar:

– Nós somos uns lindos rapazes!... Adeus, couro, sapatos e botinas!...

Depois começaram a dançar e saltar por cima das cadeiras e bancos, e sempre dançando, ganharam a porta e desapareceram.

Desde aquele momento ninguém tornou a vê-los. Custódio, porém, continuou a ser feliz o resto de seus dias, e tudo quanto empreendia saía conforme os seus desejos.

III
Havia numa casa uma pobre criada muito trabalhadora, chamada Isabel. Todos os dias ela varria a casa, e depois juntava o cisco, que colocava em frente à porta da rua.

Uma manhã, quando começava o trabalho, achou uma carta no chão. Como não sabia ler, pôs o caixão de cisco no chão, e foi levá-la aos patrões.

Era um convite da parte dos anões mágicos que lhe pediam para ser madrinha de um dos seus filhos.

Isabel não sabia que resolver, mas depois de muitas hesitações, como lhe disseram que era muito perigoso recusar, aceitou.

No dia marcado, três anões vieram buscá-la, e levaram-na para uma caverna, na montanha onde moravam.

A mãe do anãozinho que nascera, estava num leito de ébano incrustado de pérolas, com colchas bordadas a prata. O berço do recém-nascido era de marfim, e a bacia de banho, de ouro maciço.

Depois do batismo, a criada quis voltar imediatamente para casa. Os anões, porém, pediram-lhe muito para ficar mais três dias com eles. Ela anuiu ao pedido, e passou esse tempo em festas, porque os anõezinhos lhe faziam o mais agradável acolhimento.

No fim de três dias, como quisesse absolutamente regressar, os anões encheram-lhe os bolsos de ouro, e conduziram-na até à saída do subterrâneo.

Chegando à casa dos patrões, Isabel recomeçou o trabalho de todo dia, e apanhou o caixão do cisco, o qual ainda estava no mesmo lugar em que deixara, o que a admirou sobremaneira. Estava varrendo, quando saíram da casa uns homens desconhecidos para ela, que lhe perguntaram quem era e o que queria.

Foi só então que a criada soube que não estivera com os anõezinhos apenas três dias, como julgara, mas sete anos inteiros, e que durante esse tempo, seus patrões haviam morrido.

IV
Um dia os anões roubaram de uma mulher o filhinho, que estava no berço, e puseram em seu lugar um pequeno monstro, que tinha uma cabeça muito grande e dois grandes olhos fixos, e era insaciável, esfomeado, querendo comer e beber a todo o momento.

A pobre mãe foi pedir conselho a uma vizinha.

Esta aconselhou-a a levar o monstrengo para a cozinha, e colocá-lo em cima do fogão, acender o fogo ao lado dele, e ferver água em duas cascas de ovo. Isso faria rir o monstro, e se ele se risse uma vez, seria obrigado a partir.

A mulher fez o que a vizinha lhe tinha ensinado. Assim que viu as cascas de ovo cheias de água, sobre o fogo, o monstro exclamou:

– Nunca vi, se bem que não seja novo, ferver água em casca de ovo! 

E soltou uma gargalhada.

Apareceu imediatamente, um bando de anões, que trouxeram o verdadeiro filho, colocando-o no berço, e levando o monstrengo em sua companhia.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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José Feldman (A Colisão da Balbúrdia)

Era um dia com muitas nuvens na cidade, e dois idosos José e Marlene estavam a caminho do mercado. José dirigia seu velho fusquinha, enquanto Marlene estava atrás do volante de seu karmann guia, um carro pequeno e brilhante. Ambos estavam ansiosos para comprar os ingredientes do almoço.

Enquanto se aproximavam de um cruzamento, José, distraído, tentava se lembrar de uma velha receita.

— Ah, eu preciso de batatas! — gritou ele para si mesmo, sem perceber que o semáforo estava vermelho.

Marlene, que estava prestes a virar à direita, viu José avançar. Ela tentou buzinar, mas o som do seu carro era mais como um "bipe" tímido.

— Olha o sinal! — gritou Marlene, mas era tarde demais.

BAM!

Os carros colidiram com um estrondo, e os dois motoristas ficaram paralisados por um momento, olhando um para o outro.

— José! O que foi que você fez? — exclamou Marlene, saindo do carro.

— Eu? Você que não olhou para os lados! — respondeu José, já saindo do fusquinha.

— Eu olhei, seu apressado! Você é que avançou o sinal! — Marlene bateu o pé, enquanto ajeitava o cabelo.

Os dois idosos começaram a discutir, levantando os braços e gesticulando como se estivessem no meio de uma apresentação teatral.

— Você deveria usar menos os ouvidos e mais o cérebro! — gritou José, apontando para Marlene.

— E você deveria usar mais os olhos e menos a boca! — retrucou ela, cruzando os braços.

As pessoas que passavam, começaram a parar para assistir à cena, algumas rindo, outras torcendo para que a discussão não terminasse em algo mais sério.

— Olha, gente! Um show de comédia grátis! — gritou um jovem, fazendo todos rirem.

— Calma, pessoal! Isso não é uma competição de quem grita mais alto! — comentou uma mulher idosa que passava.

Nesse momento, o guarda de trânsito Antunes, apareceu, com um ar de autoridade.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou, olhando para os dois motoristas.

— Esse senhor avançou o sinal! — disse Marlene, apontando para José.

— Eu não avancei nada! A senhora é que estava distraída! — José respondeu, indignado.

O guarda olhou de um para o outro, tentando entender a situação. 

— Então, vamos lá, quem estava certo aqui? — indagou o guarda Antunes, tentando apaziguar a situação com um sorriso.

— Eu estava certa! — gritou Marlene.

— E eu também! — José respondeu, cruzando os braços.

A confusão só aumentava. Os transeuntes começaram a opinar.

— Eu vi tudo! A Dona Marlene estava certa! — disse um homem que estava vendendo frutas.

— Não, não! O José é um bom motorista! — defendeu uma mulher.

— Eu estava lá! A Dona Marlene estava tão distraída com a maquiagem que nem viu o sinal! — gritou um adolescente.

— A maquiagem é essencial para a segurança no trânsito! — Marlene protestou, dando uma piscadela para o guarda.

— Isso é verdade! Um bom batom pode salvar vidas! — disse uma idosa que estava assistindo a cena.

— Espera aí! — disse o guarda, levantando as mãos. — Vamos esclarecer isso. Quem se machucou?

— Ninguém! — disseram os dois em uníssono.

— Então, por que tanta confusão? — perguntou o guarda.

— Porque ele não sabe dirigir! — apontou Marlene novamente.

— E porque ela não sabe parar de falar! — José retrucou.

A situação estava tão engraçada que as pessoas começaram a aplaudir, como se estivessem assistindo a uma peça de teatro.

— Olha, gente! A disputa dos campeões de trânsito! — gritou o vendedor de frutas, fazendo todo mundo rir mais.

O guarda, percebendo que a situação havia tomado um rumo cômico, decidiu intervir para encerrar a confusão.

— Vamos lá, pessoal. Que tal um acordo? — sugeriu. — Vocês dois vão para o mercado, compram suas comidas e depois se encontram para um café. Assim, resolvem tudo de forma civilizada.

Marlene e José se olharam, ainda um pouco irritados, mas a ideia começou a fazer sentido.

— O que você acha, José? — perguntou Marlene, suavizando o tom.

— Eu acho que um café não seria tão ruim assim... desde que você não fique falando do meu jeito de dirigir! — disse José, já se rendendo.

— E eu prometo não olhar para o lado enquanto você toma café! — riu Marlene.

Assim, os dois motoristas se dirigiram para seus carros, deixando o guarda e os espectadores aliviados e felizes com a resolução da confusão.

— Até a próxima trombada, amigos! — gritou um jovem, enquanto todos riam novamente.

E assim, José e Dona partiram, prometendo que a próxima vez que se encontrassem, seria em um lugar onde não houvesse semáforos, apenas café e boas risadas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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domingo, 16 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 26 *

 

Coelho Netto ( O “Rato”)

Vivia de esmolas num estreito e úmido quarto de estalagem, onde mal cabiam os móveis: a cama onde jazia prostrada a moléstia, uma pequena mesa, duas velhas cadeiras e uma arca. Acompanhava-a o filho, um rapazola de nove anos, sadio e robusto, de uma tal vivacidade que todos na estalagem não o conheciam senão pela alcunha: o Rato.

Era um dos primeiros que acordavam e, ainda escuro, fazia toda a limpeza do aposento, mudava a água nas bilhas, deixava ao alcance da mão da paralítica a cafeteira e o pão, e saía cantarolando. Saía, porque a mãe, julgando-o ainda tenro e fraco para o trabalho e não dispondo de recursos para manter-se, pedira um atestado ao médico que, por misericórdia a tratava e, entregando-o ao pequeno, dissera: — Vai e fica à porta das igrejas: e aos que passarem mostra esse papel e pede uma esmola para tua mãe.

O pequeno saiu, e, à noite, tornando à casa com algumas moedas, entregou-as à mãe; mas, no mesmo momento, rompeu em pranto, atirando-se, soluçante, sobre a velha arca.

A paralítica, atribuindo a angústia da criança à quantia escassa que trouxera, procurou palavras de consolo: — Não chores, meu filho. Hás de ser mais feliz amanhã; o que trouxeste basta para passarmos o dia. Deus velará por nós. Não chores.

O pequeno, porém, longe de consolar-se, afligiu-se ainda mais e, à noite, a paralítica que velava ouviu ainda durante algum tempo os soluços do filho. De manhã, porém, cedo, como de costume, levantou-se, e, depois do serviço, foi beijar a mão à velha enferma, e partiu.

Era tarde, quase dez horas da noite, quando o Rato apareceu na estalagem cantarolando. A mãe, que passara o dia cheia de cuidados, mal o viu entrar falou com certa severidade:

— Ah! Meu filho, a que horas vens? Muito deves ter esmolado para que só às dez horas da noite voltes a casa!

O Rato, porém, risonho, beijou a mão da enferma, e logo, metendo as mãos nos bolsos, pôs-se a tirar moedas e notas atirando tudo para cima da cama. A paralítica, sorrindo, disse:

— Então, bem te disse eu que hoje havias de ser mais feliz, meu filho...

— Sim, minha mãe, fui muito mais feliz, principalmente porque ninguém me injuriou.

— Como? Pois houve alguém que te injuriasse, filho?

— Sim, minha mãe, ontem. Como a senhora me havia ordenado, fui ficar à porta da igreja. Quando cheguei, já havia lá muitos pobres, uns cegos, outros aleijados; meti-me entre eles e logo começaram as injúrias, porque eu era uma criança sadia e forte que ia para ali vadiar, quando podia estar empregando o meu tempo em alguma coisa útil. Uns mandavam-me para a escola, outros para a oficina e, se aparecia alguém, vendo-me avançar com o papel na mão para pedir, empurravam-me, davam-me beliscões, e um atirou-me uma bordoada às pernas com a muleta.

“Tudo isso, porém, fazia-me rir; o que me fez chorar foi o que me disse um velho que levava um pequeno pela mão, um pequeno do meu tamanho.”

“Quando eu lhe pedi esmola, ele olhou-me carrancudo, meteu os dedos no bolso do paletó, tirou um níquel e ficou algum tempo a olhar-me; depois vagarosamente guardou a moeda e, puxando o menino, disse baixinho: — Verás, vai daqui direto para a taverna... — O pequeno, mamãe, olhou-me de tal modo, que eu senti o sangue subir-me ao rosto e as lágrimas saltarem-me dos olhos. Vendo-me chorar, o pequeno teve pena de mim e falou ao pai. Pararam, e eu enxugava os olhos, quando ouvi a voz do menino: — Toma! — Olhei, e vi que ele me estendia a moeda. Estive para recusar, mas olhava-me com tanta meiguice que não tive ânimo. Recebi-a, agradeci e guardei. Logo, porém, que os vi entrar na igreja, tirei-a do bolso, dei-a a um velho cego que estava sentado perto de mim, e desci. Desci os degraus, disposto a voltar para casa, mamãe, mas lembrei-me de ti, lembrei-me que nada havia em casa e pensei em pedir trabalho em algum lugar...”

“Foi então que encontrei o Vicente com um maço de jornais, apregoando. Pedi-lhe alguns e, fazendo como ele, fui vendendo, e com tanta facilidade, que não me ficou um só. Ele, então, ficou de arranjar-me maior quantidade para hoje e não mentiu.”

“Passei o dia todo vendendo jornais, primeiro os da manhã, depois os da tarde; e à noite o Vicente convidou-me para acompanhá-lo até a porta do Liceu, onde aprende, e onde quero que mamãe me faça entrar, para que eu não ande a pedir aos outros que me ensinem a apregoar as notícias dos jornais. Hoje ganhei mais do que ontem: e estou contente, mamãe, porque ninguém me tomou por vadio.” “Quando eu for mais forte, irei para uma fábrica, e tu não terás necessidades, nem ninguém me falará mais com o desprezo com que me falou o velho que me julgou tão mal...”

A paralítica, com os olhos rasos d’água, tomou a cabecinha loura do filho junto ao colo, e, beijando-a, disse comovidamente:

— Fizeste bem, meu filho; fizeste bem: a humilhação é a pior das afrontas. Fizeste bem, meu filho, e eu te abençoo.
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Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Netto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público.
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