quinta-feira, 31 de julho de 2025

Carlos Leite Ribeiro (O Relógio, um conto real)

Naquele Fim de Ano, a minha sogra avisou-nos que, ao contrário do habitual, não o passaria conosco, pois tinha recebido um convite de uma amiga do Algarve.

Simpaticamente, não se esqueceu de mandar uns presentinhos ao neto (ainda era só um), à filha e ao seu “querido genro” (que era eu).

Quando minha esposa me disse que a mãe (dela) ia mandar-me um presente, confesso que tive um “toque no coração” e logo interroguei-me: “ Que se passará com aquela querida sogrinha que me vai mandar uma lembrança?”.

Quando os presentes chegaram, naturalmente as embalagens foram logo abertas. O meu presente tinha uma linda embalagem e um lindo relógio de mostrador azul lá dentro. Eu nem queria acreditar em tal sorte. Tirei o dito cujo dentro da embalagem e, como naquele tempo os relógios trabalhavam a corda, comecei a rodar a respectiva carrapeta, mas, por mais que o rodasse, o relógio não trabalhava. Resolvi telefonar para o Algarve para lhe perguntar em que ourivesaria tinha ela comprado o relógio para eu poder pedir a sua reparação ou substituição. Ai que o ela me respondeu, depois de dar sonora gargalhada:

– Meu querido genro, eu não comprei o relógio em nenhuma ourivesaria, mas sim a uns ciganos, na Praça da Figueira (Lisboa). Se quiser, vá à procura dos ciganos e faça a reclamação …

Ai o que eu tive vontade de lhe responder, mas vá lá, só pensei…

No regresso ao jornal logo no Novo Ano, prendi esse tal relógio no pulso direito (o normal é no esquerdo). Para realçar mais o tal relógio, até arregacei a manga da camisa.

– Olhem malta, o Carlos tem um relógio novo! – Chamou a atenção um colega.

Quase todos se levantaram das respectivas cadeira para virem admirar a prenda da minha sogra. Um deles reparou que a máquina não trabalhava, o que eu logo respondi:

– Meus amigos, este relógio é só para vocês o admirarem a sua beleza. Se quiserem saber as horas, tenho aqui este no pulso esquerdo!

A risada foi geral.

Ao saber do sucedido, uma colega telefonista disse-me:

– Olha Carlos, os ciganos estavam a vender esses relógios de fantasia, na Estação do Rossio (comboios – trens) a 15 escudos…

Anos depois, minha esposa chamou-me a atenção que meu filho mais velho tinha ficado triste por Papai Noel não lhe ter dado um relógio. Quando lhe entreguei, a então criança chorou, deu pulos e gritos, mas a certa altura parou com o seu contentamento e encarou-me de frente, perguntando-me:

– Papá, por acaso não compraste este relógio aos ciganos, pois não?…

– Não meu filho, comprei-o numa ourivesaria e tem garantia. Mas qual a origem dessa tua pergunta?…

– É que tenho ouvido umas histórias de um relógio que a avó tem deu …
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CARLOS LEITE RIBEIRO, jornalista e escritor, nasceu em Lisboa, em 1937. Radicou-se em 1967, na Marinha Grande (concelho de Leiria). Trabalhou no Jornal do Comércio, em Lisboa, escrevendo “Nomes e Figuras que deram seu nome às ruas de Lisboa”. Editou "Uma Semana no Rio de Janeiro" e "As Horas do Destino" e muitos ebooks. Cursou Educação Física (1962), História (Politécnico 1964) com Mestrado em 1976, Geografia (Politécnico 1967) com Mestrado em 1984. Idealizador do Portal CEN - "Cá Estamos Nós", fundado em 1998. Membro Honorário e de Honra da ALMECE - Academia de Letras Municipais do Estado do Ceará (Brasil). Faleceu em 2018.

Fontes:
Texto enviado pelo autor em 05.01.2010. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Sérgio Antonio Costa Gomes (O Anão)

 A impossibilidade de satisfazer um desejo o torna ainda mais intenso; isso é um fato. Alguns desejos, de tão intensos que são, podem levar à loucura; essa é outra verdade.

Buscaremos a comprovação de tal tese em um ambiente e com pessoas bastante improváveis.

Melquisedeque era um anão. Por conta disso, talvez, muitos pudessem duvidar que um coração tão pequeno pudesse conter um amor tão grande. O pequenino homem tinha uma aparência engraçada: as pernas curtas e roliças lhe conferiam um andar semelhante ao de um pinguim, a cabeça exageradamente grande, a testa proeminente, lhe davam um aspecto caricato, muito embora, não obstante a aparência um tanto quanto estranha, fosse quase impossível não se contagiar com seu sorriso largo e espontâneo – todos gostavam dele – diziam os mais íntimos que um gigante se escondia sob suas proporções bizarras. Trabalhava como assistente de palhaços no Danúbio Azul, um misto de circo e parque de diversões de quinta categoria. Um mero coadjuvante, em cores espalhafatosas, vestia-se de bobo da corte em suas apresentações e sofria com as travessuras diabólicas de seus companheiros de picadeiro.

O Danúbio Azul, apesar de ser um local destinado a diversões, não tinha um ambiente agradável: a qualidade precária de suas instalações, aliada ao mau-gosto dos entretenimentos oferecidos, só poderia atrair pessoas pouco exigentes ou até mesmo mentalmente degeneradas. Operários de baixa-renda, bêbados, vadios e alguns mal-intencionados se constituíam em seu público predominante. O medonho parque era uma das poucas possibilidades de diversão oferecidas por seus mundinhos reduzidos.

O sombrio local estava a algum tempo na mira da polícia. Crimes sequenciais, com as características predominantes da ação de um serial killer, ocorriam com certa frequência nas adjacências de onde o Danúbio Azul costumava se instalar. As vítimas, sempre do sexo masculino, empaladas por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, tingiam o chão onde jaziam com o produto mais íntimo de suas carnes.

Carlos Mariano era o soturno proprietário do Danúbio Azul. Era um homem enorme e desagradável; bronco e de feições endurecidas, pouco afeito aos hábitos da higiene, tinha um aspecto seboso, salientado pelos bigodes compridos e grisalhos, amarelados pelo hábito do fumo. Ambicioso, sugava seus funcionários até o tutano dos ossos e pouco se importava com as condições precárias em que viviam. Indiferente aos crimes que ocorriam nas redondezas de seu parque de diversões, interpelado diversas vezes pela polícia, enquanto esbaforia a fumaça fedorenta de seu inseparável cachimbo nos rostos dos agentes da lei, dizia que não tinha nenhuma pista, que era trabalho deles prender o autor de tais atrocidades.

Alheios ao que se passava além do cercado que isolava seu local de trabalho dos bairros periféricos por onde passavam, Melquisedeque e seus colegas mantinham o ritmo normal de suas atividades; tentavam dar o melhor de si no intuito de trazer alguma alegria à paupérrima população que se constituía em seu público fiel.

Amigo de todos, Melquisedeque tinha uma predileção especial por Ananias, o contorcionista e por Nora, a mulher-gorda, por quem nutria uma intensa e anônima paixão, conhecida apenas por Ananias, seu melhor amigo. Sempre envoltos em uma cortina de fumaça de cigarro, juntos, tomavam umas “branquinhas” para aliviar as amarguras da vida. Nessa noite, impulsionado pela coragem etílica, Melquisedeque, que se sentia desencorajado pela incompatibilidade física que havia entre ele e Nora, disse ao contorcionista que não obstante as dificuldades pretendia declarar todo amor que sentia por ela.

Ébrio, Ananias contorcia o corpo esquálido das formas mais aberrantes possíveis, enquanto desdenhava da possibilidade do pequenino amigo realizar seus desejos amorosos:

– Heh! Você e Nora? Não sei não… Ela pesa quase duzentos quilos! È muita carne pra tu. Não dá! Não dá! Não dá!

Uma canção sertaneja embalava a dor-de-cotovelo que invadiu o coração desesperançado de Melquisedeque que esperava uma palavra de encorajamento por parte de seu melhor amigo. Tentando talvez uma posição diferente de Ananias em relação a suas pretensões amorosas, o anão conjeturou:

– Mas será que não tem alguma forma de…

Ainda mais contundente, Ananias interrompeu as considerações do amigo antes que ele pudesse concluí-las:

– Vocês são fisicamente incompatíveis! Não dá! Não dá!

Desiludido, Melquisedeque deixou Ananias bebendo sozinho e foi dormir mais cedo. Estacas de desapontamento varavam seu coração sofrido em todas as direções possíveis. A intraduzível dor do amor impossível tomava-o por completo. Com a esperança fraquejada, banhado em lágrimas, atirou-se em seu catre e mesmo morto de cansaço não conseguiu dormir. Nora não lhe saía dos pensamentos atormentados, roubando-lhe a paz.

Dada suas condições físicas grotescas, Nora não era uma mulher feliz. Trabalhava em um daqueles dispositivos sádicos onde o cliente, conseguindo acertar o alvo com a força e precisão necessárias, mergulhava seu corpanzil no aquário de águas geladas num “chuá redundante”. Frequentemente alguns abusados lhe dirigiam palavras e gestos ofensivos, em meio a gargalhadas estridentes, enquanto tentavam mandá-la para a água.

Cada palavra menos digna dirigida a Nora, penetrava o coração apaixonado de Melquisedeque feito setas envenenadas. Algumas vezes, esquecendo-se de sua estatura acanhada, ele desejou socar até a morte um e outro mais abusado que pegava pesado demais com sua amada. Mas isso significaria tirar seu amor do anonimato, algo que estava fora de cogitação, pelo menos naquele momento, para o inseguro anão.

Pensando em tais infortúnios, Melquisedeque conseguiu pegar no sono apenas quando o sol causticante do verão já se encontrava no final da tarde. Não muito tardou e logo ele acordou com o barulho das primeiras atividades do Danúbio Azul que já estava aberto ao público para mais uma noite de diversões. Sonolento, com uma expressão fisionômica carregada, arrastando-se com seu andar peculiar, caminhou até o local onde Nora divertia um grupo de homens rudes e sádicos.

Raimundo Silva, um operário da construção civil, recém-chegado do norte, exagerava no consumo de álcool e nas ofensas. Com gestos e palavreados chulos que não cabem aqui descrever, ofendia a pobre mulher que estava apenas exercendo sua profissão. Quando conseguia acertar o alvo, mandando-a para o aquário, dizia que ali era seu lugar e tantas coisas mais.

Ao observar a cena, Melquisedeque transfigurou em ódio sua face caricata e desejou atracar-se ali mesmo com Raimundo e fazê-lo retirar, a socos e pontapés, uma a uma de suas ofensas. Ananias, que também observava tudo de perto, ao perceber que o amigo preparava-se para ir às vias de fato, o segurou, desencorajando-o.

– Deixa esse idiota pra lá! Você não pode com ele.

Tomado pelo ódio, o anão vociferou com uma voz desproporcional a seu tamanho:

– Canalha! Quem ele pensa que é para tratar Nora assim?

Tentando apaziguar os ânimos, Ananias retrucou:

– Ele é um idiota! Esquece o cara.

Indignado, Melquisedeque retirou-se do local e foi preparar-se para mais uma de suas apresentações. Mesmo com a algazarra pertinente aos espetáculos dos quais fazia parte, não conseguia tirar da cabeça toda ignomínia da cena de outrora.

Finda as atividades, o Danúbio azul cerrou seus portões e funcionários e artistas, exaustos, retiraram-se para seus precários aposentos coletivos a fim de se recuperar da fadiga de mais uma movimentada noite de diversões.

Logo ao amanhecer, a polícia foi procurar Carlos Mariano em busca de pistas. Um cadáver, que posteriormente foi identificado como sendo Raimundo Silva, foi encontrado em uma rua próxima do local onde o Danúbio Azul encontrava-se instalado. O corpo, empalado por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, apresentava as mesmas características dos crimes que vinham ocorrendo, já há algum tempo, nas adjacências de onde o circo de Carlos costumava se instalar. Mais uma vez, com seu jeito bronco de ser, enquanto fumava seu cachimbo, Carlos disse que não tinha nenhuma pista, que era trabalho da polícia investigar e prender o criminoso.

Alheios ao que se passou na noite passada, além das cercas que os continham em seu sombrio local de trabalho, os funcionários do Danúbio Azul, após o descanso diurno, se preparavam para mais uma rotineira noite de entretenimentos. Porém, dessa vez, pelos para Nora, um fato inusitado estava prestes a acontecer. Melquisedeque tomara uma crucial decisão: no calor de sua paixão, resolveu deixar as inseguranças de lado e finalmente declarar todo seu amor ao objeto de sua especial predileção. Tímido, resolveu dirigir-se aos aposentos de Nora enquanto ela ainda estivesse dormindo. Aproveitaria-se do torpor de sua sonolência para pegá-la de surpresa e, enfim, lhe dizer tudo o que havia guardado por quase três anos de anonimato.

Os quartos onde descansavam os funcionários do Danúbio eram precários e mal iluminados. Sem bater na porta que não tinha trancas nem fechadura, Melquisedeque adentrou o recinto onde Nora dormia ruidosamente e lhe sacudiu o corpanzil que se esparramava sobre a cama reforçada. Pega de surpresa, tonta de sono, Nora reconheceu Melquisedeque, apesar da escuridão, por sua pequena estatura e por sua voz peculiar:

– Ah! È você? O que foi? Estou atrasada?

– Nora… Tem uma coisa que há muito tempo preciso lhe dizer…

Melquisedeque, tomado por uma inusitada coragem, confessou à obesa mulher todo amor que sentia por ela, o quanto ela era especial para ele, o quanto a desejava. Nora, espantada com aquela confissão repentina, puxou-o a si, esmagando-o contra a consistência gelatinosa de seu corpanzil, e disse:

– Oh, meu lindinho! Vem para os braços da mamãe!

Assim, ambos permaneceram abraçados e calados por alguns minutos até que Nora soltou uma gargalhada de sarcasmo, desmoronando o paraíso onírico em que, por alguns breves instantes, viveu Melquisedeque.

– Ah, ah, ah! Você é louco? Ah, ah, ah! Você e eu? Amantes? Que ridículo! Olhe para você. Não acredito nisso… Ah, ah, ah…

Ainda gargalhando, ignorando Melquisedeque e todo seu amor, Nora levantou-se e, atrasada que estava, foi preparar-se para mais uma noite de trabalho e humilhações.

Arrasado por ter seu amor sincero e ardente, assim desprezado, Melquisedeque não compareceu a suas obrigações da noite e ninguém o achou em lugar nenhum.

No dia seguinte, os funcionários encarregados da limpeza depararam-se com uma cena macabra: chorando copiosamente, Melquisedeque encontrava-se abraçado ao corpanzil ensanguentado e inerte de Nora. Empalado no abdômen, no sentido de baixo para cima, a obesa vítima apresentava as mesmas características dos crimes que ocorriam além das fronteiras de madeira compensada que separavam o Danúbio do mundo lá fora.

Ananias que já sabia do amor do anão por Nora, chamou a polícia que não tardou em chegar. Banhado em lágrimas, o anão se entregou sem oferecer resistência e sem nada dizer em sua defesa. Uma expressão de revolta estampava-se nos rostos dos funcionários e amigos de Nora que, com olhos odientos, acompanharam a viatura que levava Melquisedeque até ela sumir de vista.

Diz um ditado popular que “a voz do povo é a voz de Deus”. Sentença que é profundamente questionável. Nunca gostei muito de ditados populares, embora alguns deles sejam, de fato, eficientes no sentido de enunciarem verdades simples. “Quem ama o feio, bonito lhe parece” é um deles.

Quem quer que observasse Nora e suas formas grotescamente deformadas pela obesidade mórbida, jamais imaginaria que ela fosse capaz de despertar paixões tão intensas. Ananias mantinha, já há alguns anos, uma caso secreto com ela. O contorcionista, sem coragem de assumi-la perante todos, mantinha o relacionamento no anonimato, embora isso não fosse do agrado dela.

Na noite em que Melquisedeque resolveu declarar seu amor, poucos minutos depois, Ananias resolveu ir visitá-la em seus aposentos. Ao adentrar seu quarto no momento em que ela abraçava o anão, o contorcionista, na obscuridade proporcionada pela escuridão do recinto, imaginou ter visto o que não aconteceu. Tomado pelo fel do ciúme, retirou-se antes de ouvir as gargalhadas de desprezo de Nora e planejou a forma mais cruel de se vingar de ambos.

De há muito tempo, Ananias já vinha eliminando, de forma contumaz, aqueles que escarneciam Nora de uma maneira mais contundente. Conhecedor que era do amor de Melquisedeque por sua obesa namorada, cometia os assassinatos de forma a incriminar o anão e assim se livrar de um provável rival na disputa pelas carícias de Nora. Dessa vez, ensandecido pela dor de uma traição que só aconteceu em sua cabeça, decidiu acabar com os dois, aniquilando a vida de Nora, produzindo uma espécie de morte em vida em Melquisedeque que seria culpado pela morte de sua amada.

Enquanto isso, na cadeia, inocente, jogado em um canto sujo e úmido de sua cela, Melquisedeque permanecia calado – para ele a vida havia perdido a razão de ser.

Fonte:
http://www.mesadoeditor.com.br/. Acesso em 27.12.2009
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Machado de Assis (Segunda Vida)

MONSENHOR CALDAS interrompeu a narração do desconhecido:

– Dá licença? é só um instante.

Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa:

– João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido. Anda, vai depressa.

E, voltando à sala:

– Pronto, disse ele; podemos continuar.

– Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez?

– Não, senhor.

– São incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num palanquim feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e cores, uma cousa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas extraordinárias que me fizeram, e que duraram dois séculos, ou, pelas nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a tornar à terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que completava um milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia recusar. Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa Reverendíssima no meu lugar?

– Não posso saber; depende…

– Tem razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: – “Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!” Lembrou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no espaço: gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços de uma ama de leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é Romualdo, não?

– Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.

– Será parente do padre Sousa Caldas?

– Não, senhor.

– Bom poeta o padre Caldas. Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima. Entretanto, se me permitisse ir fumando…

Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das ideias ou o assombroso das invenções; pode ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxilio policial, Monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados.

José Maria acendeu finalmente o cigarro, e continuou:

– Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas. Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores… Não se assuste; serei casto, como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres?

– Como quer que saiba?…

– Tinha dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia… Ninguém esperava tal coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo, um apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança de três indigestões apanhadas quarenta anos antes, na primeira vida, fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim. Você cura de um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas, sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.

– Com efeito…

– Não lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver… Não, a comparação não é boa. Como lhe parece que vivo?

– Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés…

– Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim…

José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro… De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada. Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: – carros e carroças que desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos:

– Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres…

– Sim, senhor.

– Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos livres, gostamos um do outro, e não nos casamos: tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a frequentar a casa, em Mata-cavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro beijo… Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão. Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planejando uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês. Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.

– Não alcanço…

– Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa; tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa pior: – podia ficar o fastio. Concluí a toalete de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois, adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma linda criancinha… Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez; algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica… Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que padeci nessa noite… Deixa-me fumar outro cigarro?

Não esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos polidos, e, que apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras. Quem diabo podia ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis saber o que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de amor queria que ela lhe desse. – A resposta de José Maria foi uma pergunta.

– Está disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou que sim. “Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade; venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado.” Compreendo que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um monstro.

– Não, senhor…

– Como não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina as festas com que a recebi. “Deixo tudo, disse-me ela; você é para mim o universo.” Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio meu, em Santa Ana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei fulminado. “Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo, porque tinha notícia da herança.” Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu. Um dia, dois dias, três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer. Então declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e apresentei-o: é este.

Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou:

– Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição: doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil contos. Há de ter lido nos jornais… Três semanas depois casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao fim. Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é abreviar umas particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar, nem das ilusões de saia rota, nem do tal pássaro… plás… plás… plás…

E, de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços, e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente mais delirante. Contava os sustos em que vivia, desgostos e desconfianças. Não podia comer um figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela ideia de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhado. Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue… Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou… Com quem pensava o padre que ele sonhou?

– Não atino…

– Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. “Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa, pode ombrear com eles. Salomão é a sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos.” Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: “José Maria, são os teus vinte anos.” Era uma gargalhada assim: – cá, cá, cá, cá, cá…

José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou; levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os olhos, como viu a mulher diante dele, aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés… Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido. “Não, miserável! não! tu não me fugirás!” bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando… recuando… Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés.
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Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), mais conhecido como Machado de Assis, foi um dos maiores escritores brasileiros, um gênio literário que revolucionou a literatura brasileira e deixou um legado imenso para as gerações futuras. Ele nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, e faleceu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1908. De família humilde, com um pai pintor e uma mãe portuguesa. Sua infância foi marcada por dificuldades e pela fragilidade de sua saúde, sendo gago e epilético. Apesar das dificuldades, ele demonstrou grande talento para a escrita desde cedo, publicando seu primeiro soneto, "Ela", aos 15 anos. Trabalhou em diversos cargos, incluindo revisor, tipógrafo e funcionário da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. No entanto, sua paixão pela literatura era inegável, e ele dedicou-se à escrita de romances, contos, crônicas, poesias e peças de teatro. É conhecido por suas obras de profunda análise psicológica, crítica social e escrita elegante e irônica. Algumas de suas obras mais famosas incluem: 
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881): Um dos seus romances mais emblemáticos, que marcou o início do Realismo no Brasil. 
Dom Casmurro (1899): Uma obra que explora a infidelidade e a obsessão de Bento em relação a sua esposa, Capitu. 
Esaú e Jacó (1904): Um romance que aborda a questão da raça e da identidade brasileira. 
Memorial de Aires (1908): Um romance que traz um tom mais melancólico e reflexivo, explorando a nostalgia e a solidão. 
Quincas Borba (1891): Um romance que critica a hipocrisia e a falsidade da sociedade. 
Helena (1876): Um romance que retrata a vida amorosa de uma mulher que se apaixona por um homem casado. 
A Mão e a Luva (1874): Uma peça teatral que aborda a questão do casamento arranjado. 

Machado de Assis foi o primeiro diretor da Academia Brasileira de Letras, instituição que ele ajudou a fundar. Sua obra foi traduzida para diversas línguas e é considerada uma das mais importantes da literatura brasileira e mundial. Ele é reverenciado como um dos maiores escritores brasileiros, um gênio literário que deixou um legado imenso e duradouro. Era um mestre na análise psicológica de seus personagens, explorando seus sentimentos, pensamentos e motivações. Sua obra fazia uma crítica mordaz à sociedade brasileira do século XIX, expondo as desigualdades sociais e as contradições da elite burguesa. Usava uma linguagem refinada, com um tom irônico e cheio de sutilezas, que o tornava um escritor único. Sua escrita era marcada por uma linguagem ambígua, que permitia diferentes interpretações e leituras da sua obra. Machado de Assis foi um dos primeiros a se aproximar do Realismo, mas com um toque próprio, criando um estilo único e original.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Histórias sem data. Publicada originalmente em 1884. 
Disponível em Domínio Público.  
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José Feldman (Folclore Brasileiro em Versos) – 1


1. Saci Pererê

No bosque escuro, um riso a ecoar,
um pé só dança, travesso, à espreita,
Saci, travador de rimas a brincar,
com seu gorro vermelho em meio à colheita.

Nos ventos que sopram seus truques ecoam,
leva com ele o medo, o riso a flutuar.
Atrás da moita seus rastros enevoam,
sua lenda vive sempre a nos provocar.

Mas não é só travessa a sua essência,
guardião das matas, do fogo a grelha,
ensina ao homem a ter paciência,

que no simples ato, a vida é uma bem-querença.
Em cada folguedo, uma nova centelha,
no coração do povo, sua presença.

2. A Iara

Das águas profundas, um canto a seduzir,
Iara, sereia de beleza infinita,
com olhos de lua faz homens sucumbir,
na dança das ondas sua alma é bendita.

Mas cuidado, viajante, ao te aproximar,
pois seu canto é doce, mas pode enganar,
com promessas de amor te fará naufragar,
nos braços da morte não há como escapar.

Ela é a rainha do rio encantado,
com flores de lótus seu corpo adornado.
Enquanto as estrelas a iluminam no céu,

os homens a seguem perdidos ao léu,
e ao som de sua voz, desenfreados,
se entregam ao doce som de seus brados.

3. Curupira

Pequeno guardião de cabelos a arder,
Curupira, a lenda das matas a zelar,
com pés ao contrário, faz o mundo tremer,
todo que se atreve a seu reino entrar.

Por entre as árvores seu rugido ecoa,
desbravador feroz com astúcia a guiar,
protege a floresta, a fauna e a lagoa,
e ao homem ganancioso ensina a respeitar.

Mas não te enganes, ele é brincalhão,
faz do viajante um alvo de ilusão,
e em cada caminho um truque a espreitar,

se o fogo da floresta queres apagar,
cuidado, amigo, o Curupira está à mão,
no riso do vento a natureza a amar.

4. Boto cor de rosa

Em um rio profundo, um encanto a surgir,
é o Boto, o sedutor nas noites de luar,
com seu corpo elegante e brilhante olhar,
transforma-se em homem… com o amor a emergir.

As moças encantadas ao som do seu cantar,
sentem seu perfume, a volúpia despertando,
mas ao amanhecer é um mistério pairando,
o Boto desaparece deixando a saudade a flutuar.

Ele é o amante das águas serenas,
com segredos guardados e histórias amenas.
Na dança das marés, um sonho a vagar,

e enquanto a lua reflete no rio,
os corações pulsando um doce desafio,
na lenda do boto a vida a se propagar.

5. A Mula Sem Cabeça

No campo sombrio um lamento angustiante,
Mula sem cabeça, seu destino a vagar
na floresta escura, no silêncio, errante,
ecos de um amor que não pode voltar.

Noite de sofrimento, de fogo a brilhar,
na escuridão sua forma a percorrer
em cada relâmpago, um grito a ecoar,
lembranças de vida que não podem ceder.

Mas quem a avista deve ter temor,
pois a sombra da noite traz consigo a dor,
em busca de paz com sua alma a clamar,

e entre os mistérios, a história a contar
que amor e desatino podem levar à dor,
e na lenda da mula, um eterno clamor.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, Ubiratã/PR, Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); e “Canteiro de trovas”.. No prelo: “Pérgola de textos” (crônicas e contos) e “Asas da poesia”
Fontes:
José Feldman. Asas da poesia. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. Disponível em Domínio Público. 
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Andréia Donadon – Leal (O Passageiro)

Meu sonho era ser maquinista de trem. Desde criança ia para a estação de Santa Bárbara e ficava a namorar o cenário de trens, de passageiros, das malas… Acordava antes do sol raiar muitas vezes para encontrar o trem que vinha de cidades vizinhas trazendo passageiros. Mamãe quando descobriu minha obsessão por trens, incentivou-me a colar no pé de seu Amâncio. Homem mais velho, carrancudo, esquisito, trabalhou em todos os setores da estação do trem. Fora engraxate, vendedor de balas, salgados pipocas; depois trabalhou no guichê vendendo passagens, foi vigilante, trocador, maquinista e agora era o manda-chuva dos homens que trabalhavam na estação. Na parede de sua sala pendiam vários retratos espalhados de homens que trabalharam na ferrovia. Era coleção de seu Amâncio. Chamavam de galeria dos ferroviários mortos. Disse um dia para mim que logo sua foto estaria pendurada naquela parede. Olhei para ele assustado e não entendi nada, também nem queria entender, só queria uma boca na estação.

Um dia tomei coragem de homem e conversei com seu Amâncio sobre meu sonho:

– Senhor Amâncio! Sabe que quando crescer gostaria de ser como o senhor? Homem importante e sabido?!

– Zé, vê se isso lá é coisa de futuro para você, moleque! Vá estudar menino e quem sabe um dia trabalha aqui para nós. Rosnou o homem de cara e fala sistemática.

Após aquele conselho não tive mais dúvidas; entrei de cara nos estudos para valer e daí colhi total nos exercícios e provas da escola. Pensava obstinadamente em estudar para trabalhar na tão sonhada estação de trem. Meus irmãos me criticavam por que não brincava muito. Papai e mamãe queriam me internar, achavam que estava com neurose aguçada. Todos da minha rua me olhavam meio de lado. Eu estava nem aí pra língua do povo. O que importava era que um dia trabalharia na ferrovia.

O tempo passara e eu consegui com mérito o diploma de segundo grau. Estudei com esmero, e minha fama já se espalhara na cidadezinha. Enfim, chegou o dia em que me vi com a carteira de trabalho na mão, assinada por seu Amâncio. Iria começar trabalhando de trocador no trem. Falavam as más línguas que na partida para cidade de Balelema saía lotado de passageiros. Mas na volta vinha apenas um passageiro. Diziam que era assombração, passageiro vestido de terno escuro, chapéu de abas largas, barbudo e cheirando a flor de defunto. Sempre sentado na poltrona vinte e três…

Pura lenda de cidade pequena, onde ninguém tinha ocupação; levantavam mais cedo para terminar o serviço e ir para porta da rua futricar sobre a vida alheia e colocar minhocas assombrosas nas cabeças dos jovens e adultos. Eu, homem crescido, descrente e corajoso, ia de peito estufado e uniforme engomado para o primeiro dia de trabalho. Na primeira viagem noturna, o maquinista me esperava na porta para explicar o que fazer com os formulários, inspecionar crianças que entravam sozinhas, dinheiro para troco, conferir os bilhetes… Nem pisquei quando o bondoso maquinista falava. Prestava muita atenção nas instruções para não cometer erros! O coração batia acelerado no peito de contentamento e ansiedade. Faltava meia hora para a partida do trem das dezoito horas com destino à cidade de Balelema e já chegavam à porta alguns passageiros com os bilhetes para conferência. Cumprimentava todos com um sorriso largo nos lábios, desejando boa viagem. Observei todos que entravam, nenhuma figura estranha chegara até então. Tudo lorota do povo de cidadezinha do interior!

Tudo normal. Fui para perto do maquinista que conversou comigo alegremente. Chegamos à cidade por volta das vinte e três horas e quarenta e cinco minutos. Uma serração densa aguardava os passageiros na estação e um vento gelado penetrava nossos corpos. O lugar estava vazio, alguns vigilantes, mulheres e seus encontros, dois táxis, algumas pessoas aguardavam os passageiros do trem. Não consegui ver mais nada. Um friozinho passou minha espinha, quando todos os passageiros desceram apressados do trem e um homem de terno escuro entrou e sentou na poltrona vinte e três…

Logo que o trem deu a partida, caminhei rumo á poltrona vinte e três e conferi o bilhete com as mãos e pernas trêmulas. O homem exibia um olhar escuro e ao mesmo tempo fundo, enigmático… Não respondeu meu cumprimento, não queria conversa… Um cheiro de naftalina misturado com flores de defunto exalava de seu corpo. O medo começou a suar meu corpo com lembranças das histórias do passageiro da poltrona vinte e três! Como que adivinhando meus pensamentos, o homem levantou a cabeça, olhou demoradamente nos meus olhos e não balbuciou nenhuma palavra. Um clarão penetrou os olhos de tal maneira que numa fração de segundos fiquei completamente cego. Uma luz branca, meio amarelada invadiu os olhos… Não vi mais nada, acordei horas depois com o maquinista balançando meu corpo jogado na poltrona vinte e três. O uniforme estava todo babado. Tinha dormido na volta?! Pouco provável! Procurei avidamente o homem de terno escuro, não havia ninguém. Olhei para o maquinista e perguntei se o passageiro de terno escuro, alto, barbudo tinha descido do trem. O maquinista olhou para mim estranho e disse: nenhum passageiro veio neste trem. Aliás, ninguém jamais retornou de Balelema nos longos anos em que trabalho nesta rota. Perguntou se eu estava bem. Balancei a cabeça afirmativamente e fui bater ponto no relógio na sala do senhor Amâncio. Na galeria de fotos da parede da sala, pendiam vários retratos espalhados de homens que trabalharam na ferrovia. Estava lá, soberbo, primeiro retrato na galeria dos mortos, o homem vestido de terno escuro, chapéu de abas largas, barbudo, cheirando a naftalina e flor de defunto.
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Andreia Donadon-Leal nasceu em 1973, na cidade de Itabira/MG. Radicou-se em Mariana/MG. Graduada em Letras, Especialista em Artes Plásticas, Arteterapeuta, Mestre em Literatura e Doutora em Educação (tese: Metodologia de ensino da Arteterapia Aldravista para idosos).. Adaptou algumas peças clássicas para aliar o teatro, a fala e a socialização de alunos.. Criou o projeto social: Natal sem Fome em Santa Bárbara, com apresentações semestrais de peças teatrais adaptadas, com campanhas de arrecadação de alimentos. Criadora da primeira forma de poesia brasileira, ALDRAVIA.. Responsável pela implementação do Laboratório de Linguagens Afetivas- LALIA, nas unidades prisionais e APACS do Estado de Minas Gerais. Proprietária da Casa de Arte Aldravista, espaço de artes, literatura e cultura, onde recebe alunos, professores, escritores, artistas e jornalistas.. Ministrou oficinas e palestras na Espanha, para alunos e educadores.. Venceu o concurso de Artes Plásticas contemporâneas na Espanha, França e Itália. Sua obra "TERRA EM LAMAS" foi selecionada para fazer parte do Patrimônio Artístico do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Membro da Casa de Cultura - Academia Marianense de Letras. Dirigiu e supervisionou o livro de Restauro da Câmara Municipal e Casa de Cadeia de Mariana. Coordenou e idealizou a edição do box: Abra a História da gaveta do Patrimônio Imaterial de Mariana. Destacou a cidade de Mariana-MG em programas da globo: Fantástico, Terra de Minas, Jornal Nacional, Internacional, Jornal Hoje e Globo News. Organizou livros que colocam em destaque figuras femininas da cidade Mulheres cronistas e Contistas de Mariana-MG. Idealizou a Academia Marianense de Bordados (a primeira academia de Bordados do país). Membro benemérito da Academia Feminina Mineira de Letras, Embaixadora Universal da Paz do Círculo Universal da Paz - Genebra-Suíça, autora de 34 livros de poesia, ensaios, contos, crônicas e infantojuvenil.

Fontes:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/

Carlos Drummond de Andrade (Viúva Loura)

– “Viúva, 21 anos…”

– Tadinha. A vida é isso.

– “Loura…”

– Melhorou.

– “Fazendeira, rica…”

– Epa, muda completamente de figura.

– “Pertencente a tradicional família mineira…”

– Corta essa!

– “Recém-chegada do interior…”

– Então, não custa sondar a barra.

– “Procura companhia masculina…”

– Ainda bem que é masculina. Tou às ordens.

– “Que seja jovem…”

– Você acha que 38 anos está na pauta?

– “Bem intencionado…”

– Nunca fui outra coisa na vida.

– “De fino trato…”

– Não é por me gabar, mas…

– “Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio…”

– Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu prefiro pontos estratégicos.

– “Para passeios e …”

– Etc., lógico.

– “Futuro compromisso matrimonial…”

– Corta! Corta!

– É mesmo.

– Aliás, eu não tenho mais de 38. Tinha, semana passada.

– E rica… Rica de que? Talvez de predicados apenas.

– Poxa, até parece que você está querendo a viúva pro seu bico. Pera aí, mau- caráter.

– Eu? Vê lá se eu vou nessa onda de anúncio. Tou prevenindo pra você não se grilar. Viúva, mineira, loura… Se é mineira, não deve ser loura. Se é loura. É artificial. Se é artificial…

– Deixa a viuvinha ser loura e mineira, deixa.

– Olha, eu conheci uma loura que, além de outros negativos, era careca.

– Ora, peruca resolve.

– Sei não, mas tudo isso junto- mineira, viúva, loura, 21 anos, rica…

– Que é que tem?

– É exagero. Não precisava Ter tantas qualidades.

– Foi uma graça de Deus.

– Você não merece tanto.

– Será outra graça de Deus.

– Deus não deve ser assim tão desperdiçado com suas graças.

– Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo. Perde essa mania.

– Bom, mas você não sabe que mineiro esconde milho até de monjolo?

– Continua.

– “Cartas com sigilo absoluto…”

– Evidente.

– “Indicações pessoais…”

– Minha ficha é mais limpa do que caixa d’água de edifício quanto o síndico vai ao terraço.

– “E fotos…”

– Arrgh! Só tenho 3×4, muito fajuta. Mas tiro de calção, frente, perfil e fundos.

– “Para a portaria desse jornal, sob n° 019 834.”

– Pera aí. Tou anotando. 019?

– 834.

– Legal. 834 é o número de meu edifício, 19 é pavão, que tem a perna dourada. Lê mais.

– Já li tudo, ué.

– Lê outra vez. Repete.

– Vai decorar?

– Vou gravar melhor na nuca, vou raciocinar em bloco, vou…

– Se habilitar, né?

– Correto.

– Calma, rapaz. Sabe lá que espécie de viúva é essa?

– Vou ver pra conferir.

– Pode nem ser viúva.

– E daí?

– Diz que tem 21 anos, mas quem garante que não é modéstia? Às vezes tem três vezes 21.

– Então você admite que ela é mineira.

– E que cria galinha sem ração, na base da parapsicologia?

– Também sou mineiro, uai.

– E nunca me confessou. Eu jurava que você fosse capixaba.

– Fui. Questão de limites, minha terra passou pra banda de cá. Não espalha, sim?

– Me tapeou esse tempo todo.

– Esquece.

– Vai ser dura a parada: mineira loura versus mineiro mascarado.

– Fica em família, né?

– A tradicional?

– As duas. Eu na minha, ela na dela.

– Agora sou eu que digo: tadinha.

– Por quê? Se ela botou anúncio, quer transar. Eu transo. No figurino.

– É verdade que tem muito carioca por aí, muito paulista, muito nortista, espiando maré. Talvez você chegue tarde.

– Duvido. Você sabe que nessas coisas sou meio Fittipaldi. Comigo é Fórmula-1.

– Mineiro contando prosa? Nunca vi isso.

– Bem, mineiro é capaz de contar prosa só pra esconder que é mineiro…

– Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com fazenda e tudo, podes crer!

Fontes:
Carlos Drummond de Andrade. Contos de aprendiz. Publicado originalmente em 1951.
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