sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Asas da Poesia * 116 *


Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Visões

Faço um esforço pra lembrar teu rosto,
mas apenas uma nuvem me aparece,
como se a encobrir todo o desgosto
daquilo que passou e não se esquece.

Ainda há pouco eu conseguia ver-te,
mas os contornos foram se apagando,
junto com a esperança de ainda ter-te,
mesmo que, como antes, eu chorando.

Não sei se agradeço o esquecimento
de como era teu rosto, ou se lamento
pois foi parte importante do passado.

Mas creio que ainda seja bem melhor
outro rosto procurar guardar de cor
do que querer restaurar esse, borrado.
= = = = = = = = =  

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Quando a nossa dor faz poesias

O amor é o nosso ponto de partida
em tudo que façamos... a razão
não sabe controlar um coração,
quando nossa emoção comanda a vida.

Não penses que só tu tens incertezas,
mágoas, medos, raivas... melancolias,
pois quando a nossa dor faz poesias,
copia simplesmente das tristezas.

Nem sempre o que te dói é o que perfura,
há pobres sem saber o que é pobreza
e quem é infeliz por natureza,
nem sempre compreende a alma pura.

A água não desgasta a pedra dura...
apenas acomoda-a em seu leito,
assim é o coração: só dói no peito,
quando não tem mais jeito, a amargura.

Doutor nenhum conserta a criatura,
poeta, sim, engana até a dor,
e engana-se a si mesmo...ele é doutor
em conversar com a dor com mais ternura.

Quem diz que é grão-mestre em autoajuda,
mas não pratica nada do que ensina,
semeia um amor que não germina,
retira a proteína que o acuda.

A vida tem um tempo, o destino
não manda nos desígnios de Deus,
por isto, aprimora os gestos teus
e ensina-te com cada desatino.

Nós somos seres únicos, porém
somente somos dignos de nós,
quando passamos ter a mesma voz
daqueles que só querem nosso bem.
= = = = = = = = =  

Spina de
NINA MARIZA
Berilo/MG

Gratidão

Gratidão é praça…
com lindos jardins,
perfume de flores.

Gratidão é sinfonia… de amores!…
Ternos bilhetes que lemos baixinho.
Da primavera são agradáveis olores.
Da alma… são apaixonadas poesias.
Gratidão é cobertura de valores!…
= = = = = = = = =  

Trova Popular

Alegria dos meus olhos     
é ver a quem quero bem:   
quando não vejo quem quero
não quero ver mais ninguém.
= = = = = = = = =  

Poema de
JOSÉ FARIA NUNES
Caçu/GO

Quero indignar-me

Quero indignar-me
com a mãe que se submete
ao aborto de uma vida.
Mas como indignar-me
se a própria vida dessa mãe
já foi abortada?
Quero indignar-me
com uma criança que na rua
assalta à mão armada.
Mas como indignar-me
se essa criança jamais
conheceu o afago da mãe
ou o valor de ser gente?
Quero indignar-me
com a fome
a miséria
a deseducação.
Mas como indignar-me
se me falta tempo
até de ver como gente?
Quero indignar-me
com o desamparo de crianças e idosos
de filhos sem pais e de pais sem filhos.
Mas como indignar-me
se a vida neste mundo global
colocou uma cifra
no lugar do meu coração.
= = = = = = = = =  

Poema de
PEDRO APARECIDO PAULO
Maringá/PR

Teste de pincel

Em você, o meu primeiro visual,
comecei a pintá-la, tornando-a imortal,
diante de seu corpo desnudo;
curvas e traços confundidos,
qual beleza inigualável em tudo.
Ao iniciar não revisei a tela,
não imaginei uma forma assim tão bela,
pois fora apenas um teste de pincel.
Riscos e cores traçados devagar,
não havia em mim razão para pintar,
pois seria somente em teste, o meu papel.
Aos primeiros traços que foram surgindo,
mudou tudo enfim, que quadro tão lindo,
arrumei a tela com profunda emoção!
Ao ver o seu corpo retratado ali
É indescritível tudo o que senti,
pois pintava alguém em meu próprio coração.
Vi com outros olhos pincéis e tela;
consertei os riscos, deixando-a mais bela.
No quadro, então, moldei-a, enfim.
Completei com júbilo seu corpo sem igual!
Tão rara imagem tornou-se imortal,
tenho essa musa, bem juntinho a mim!
= = = = = = = = =  

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Sonho

Meu sonho desta noite foi incrível;
só mesmo um Freud para o destrinchar;
olhei no espelho e me senti horrível...
Parecia um duende tumular!

Não foi um pesadelo desprezível,
dos que nos envergonham de contar;
pelo contrário, até foi susceptível
de reverter a história e me alegrar!

No sonho você disse para mim,
que eu não ficasse triste, tanto assim,
pois não a importava a fealdade minha...

O que valia, disse a minha amada,
com um sorriso encantador, de fada,
que ela ao meu lado era... uma rainha!
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Poema de
WANDERLINO TEIXEIRA LEITE NETTO
Niterói/RJ

Inútil canção

Dedilhando a lira,
ela emite arpejos
para quem partira
com os seus desejos.
Algo tão tristonho,
que jamais se ouvira
nem sequer em sonho.

No primeiro acorde,
tudo que a aturde,
antes sem alarde,
arde agora em dor.

Sem qualquer rancor,
urde a conclusão:
já é muito tarde,
mesmo pra canção,
seja ela qual for.
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Trova Funerária Cigana

Debaixo da terra fria,
contra o teu rosto de dó,
mais aumenta a minha pena,
o me lembrar que estás só.
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Soneto de 
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Adolescência

Eu era uma alma fácil e macia,
Claro e sereno espelho matinal
Que a paisagem das cousas refletia,
Com a lucidez cantante do cristal.

Tendo os instintos por filosofia,
Era um ser mansamente natural,
Em cuja meiga ingenuidade havia
Uma alegre intuição universal.

Entretinham-me as ricas tessituras
Das lendas de ouro, cheias de horizontes
E de imaginações maravilhosas.

E eu passava entre as cousas e as criaturas,
Simples como a água lírica das fontes
E puro como o espírito das rosas...
= = = = = = = = =  

Poema de 
DALMIR PENNA
Volta Redonda/RJ

Colcha de retalhos

É uma colcha de retalhos
nossas vidas;
é só percalços, tropeços,
lágrimas, risos e dores!
Mas, há momentos de alegrias,
de encantamento e belezas,
é só olharmos com otimismo
para a frente e para o alto,
e, aos que ao nosso lado caminham
muitas vezes, com os mesmos pensamentos.
Sorria que a vida é bela, sê feliz
e, compartilhe esta felicidade com alguém
que lhe sorrirá também, sê cortês
com os idosos, e com as crianças,
é só uma questão de tempo,
para que outros sejam contagiados;
e assim sendo, verás sempre ao teu lado
um rosto alegre, sorridente a cumprimentá-lo,
bom dia, bom trabalho, boa noite,
até amanhã, vá com Deus, e obrigado!
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Soneto de 
THEREZA COSTA VAL
Viçosa/MG, 1933 – 2014, Belo Horizonte/MG

Colhendo versos

O pensamento enchi de lindos versos
colhidos em leituras fascinantes;
dentro do coração, deixei imersos
meus sonhos de poeta, fervilhantes.
.
Na mente e no papel, tracei diversos
esboços de poemas, incitantes…
O tempo foi passando… e pôs dispersos
meus sonhos, ideais e os planos de antes,
.
mas nunca reneguei esta magia
que, em mim, exerce ainda a Poesia.
E vi chegado o dia da colheita!
.
Vesti-me de emoções – a ideia feita –
e, no papel em branco que escolhi,
o soneto nasceu… e eu o colhi!
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA LÚCIA DALOCE
Bandeirantes/PR

Colheita de poeta

Por que a poesia deve ser linda, pura e majestosa?
Eu quero uma poesia livre, feia, cruel,
Que mostre a crueza da vida.
Esta vida que a gente tem e não quer.
Esta vida que nos é imposta, alheia a outra que sonhamos.
Que a minha colheita de palavras fira os meus lábios
E os pensamentos daqueles que a lerem.
Que os seus espinhos teçam a coroa dos sofrimentos
E não perfume e nem adoce com mel
O texto hipócrita!
Quero colher as dores, abrir as feridas, sangrar as letras,
Para ver no terremoto das rimas, desaparecer meus versos líricos.
E, afiando a espada, que há na pena
Dilacerar o pouco que restou na minha messe escassa,
Para ressuscitar, enfim, do fingimento lírico,
Toda mortalidade do realismo trágico.
Quero queimar a colheita vil do amor que imaginamos ter ou ser.
Desnudar, sem piedade, o transfigurado rosto, colhido aos poucos,
Devagar… E a cada novo sofrimento, mais feio do que antes,
Até sentir a face monstruosamente original,
Que o meu verso deixou cair no abismo do papel.
Quero mostrar a pobre safra dos campos ressequidos
Na aridez de um coração.
Quero enegrecer a estrofe com meus versos brancos
E revelar a cor que tem meus prantos.
Quem sabe assim entenderão, que a colheita de um poeta,
Também é uma semente, que embora pareça não ter vida,
Continua latente e, tendo vida,
Traz consigo, também, o gene da imperfeição!
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Hino de 
Alegrete/RS

Alegrete, Alegrete
Cidade continentina
Surgida em plena savana,
Nas guerras da Cisplatina.

Salve, salve
Augusta e bela
Centenária sentinela
Do nosso amado Rio Grande.

Plantada no pampa imenso
De por-de-sol sem igual,
És uma joia engastada
No Brasil Meridional.

Querência do audaz minuano
Também gleba do charrua,
Halo de glória e heroísmo
Na tua história flutua.

Salve, pois
Augusta e bela
Centenária sentinela
Do nosso amado Rio Grande.
= = = = = = = = =  

Soneto de 
JOSÉ A. JACOB
Juiz de Fora/MG

Despercebimento

Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante;
E foi além da conta: andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

Esse homem, descontente e itinerante,
Não deu adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir;
E entrando em sua casa, ó Sorte inglória!

Nenhum sorriso amado viu sorrir:
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir...
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O pescador e o peixinho

Peixe pequeno será grande um dia,
Se Deus vida lhe der;
Mas é falta de siso em demasia
O largá-lo qualquer,
Esperando que ele cresça
E depois apareça:

Apanhá-lo outra vez é muito incerto.
Um pescador esperto
Em a rede apanhou
Uma carpa muitíssimo pequena:
«Se os poucos muitos são, valem a pena!»
Disse, e a carpa guardou.

Pergunta-lhe a coitada:
«De mim o que farás, se chego a custo
Para meia dentada?...
Oh! deixa-me no mar crescer sem susto...

Mais tarde vender-me-ás por alto preço!»
— Tua esperteza muito bem conheço,
Lhe torna o pescador: irás, amiga,
Apesar da cantiga
Parar à frigideira!

Diz-nos desta maneira
Certo rifão que achei
E vem de molde para casos tais:
Um “toma” vale mais
Que dois eu “te darei”!
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Wallace Leal V. Rodrigues (As penas)

Quando pequenas, minha irmã e eu éramos muito sonhadoras. O sonho e a imaginação se conjugavam muito bem.

E, de quando em vez, inventávamos histórias sobre nossas companheiras. Essas histórias se transformavam em boatos que, em uma cidade pequena, terminavam por provocar dissabores.

Na verdade, não fazíamos aquilo por mal, mas, naturalmente, enquanto dávamos rédeas soltas à nossa fantasia, os desagradáveis incidentes se multiplicavam.

Lembro-me muito bem de certa manhã, antes do inverno chegar. Ventava muito e nós brincávamos no galpão. Entretanto mamãe estava sentada em um tamborete, ao aberto, bem no meio do quintal.

Aquilo nos intrigou um pouco, porém logo nos distraímos.

Nossa atenção voltou a ser despertada quando ela nos chamou, solicitando que levássemos até ela uma almofada e uma tesoura, que se encontravam perto de nós.

Quando colocamos os dois objetos junto dela, ela nos pediu que cortássemos a almofada ao meio.

Obedecemos. A almofada estava cheia de penas e, logo em seguida, levadas pelo vento, elas enchiam o quintal num espetáculo tão lindo como uma tempestade de neve. Eu e minha irmã pulávamos encantadas com o espetáculo.

Todavia, mamãe tornou a nos chamar. Junto dela estava a sua cesta de costura, que nem tínhamos visto. Foi lá de dentro que ela tirou uma capa de almofada nova e vazia.

Ela solicitou que enchêssemos de novo a almofada. Ficamos admiradas com o pedido, julgando impossível que fosse atendido, pois as penas haviam voado por toda parte.

Enquanto observava as penas dançando ao vento, ela fez um comentário que eu e minha irmã não pudemos esquecer por toda a vida.

Ela comparou as penas com os boatos que certas pessoas propagam: uma vez espalhados, não há meios de fazê-los voltar ao ponto de partida.
*  *  *

Esta singela história nos leva a refletir o quanto é importante cuidarmos de qualquer comentário que possamos vir a fazer a respeito de outras pessoas.

Vigiemos sempre as nossas palavras, não nos entregando à maledicência.

Poucos de nós cultivam a indulgência, um sentimento fraternal que nos move a não enxergar as falhas e os defeitos dos outros.

Quando notarmos as fraquezas alheias, evitemos divulgá-las ou tenhamos o cuidado de atenuá-las tanto quanto possível.

Julguemos com severidade somente as nossas próprias ações, pois todos nós temos defeitos a corrigir e hábitos a modificar, e muitas vezes, cometemos graves faltas.

Ser indulgente com as fraquezas do outro é uma forma de praticar a caridade.

O verdadeiro caráter da caridade é a modéstia e a humildade, que consistem em ver cada um apenas superficialmente os defeitos de outrem e esforçar-se por fazer que prevaleça o que há nele de bom e de virtuoso.

Reflitamos sempre se o que nos chega ao ouvido é absolutamente verdadeiro para ser passado adiante. Pensemos se o que vamos comentar, também gostaríamos que as pessoas dissessem a nosso respeito.

Analisemos se é mesmo necessário falar sobre este ou aquele fato, se trará algum benefício ou se não prejudicará alguém.

Antes de cedermos ao impulso de passar adiante qualquer comentário, lembremos sempre das penas soltas ao vento, como se fossem as nossas palavras que, de nenhuma forma, podemos tornar a recolher.
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Wallace Leal Valentin Rodrigues nasceu em 1924, em Divisa/ES, foi para Araraquara, SP na década de 30. Estudou Ciências Econômicas em Ribeirão Preto. Foi ator e diretor de teatro, diretor de cinema, escritor, jornalista. Realizou seu primeiro filme em 1953: o documentário Aurora de uma Cidade. Foi diretor e ensaiador do TECA (Teatro Experimental de Comédia de Araraquara). Acompanhou e colaborou com a primeira escola de ballet da cidade: Escola de Ballet Mímica de Araraquara, desde sua fundação maquiando, e apoiando nos figurinos e cenários das apresentações por longo tempo. Coordenou, compôs, criou, orientou jovens e crianças em desfiles de modas ensinando como andar, sentar, colocação de mãos e pés, comportamento e postura de corpo e porte em passarela, um trabalho de alta qualificação, ensinamento europeu. Como escritor tem livros publicados no Brasil e no Exterior. Era poeta, compunha música e além do teatro, atuava junto ao grupo de rádio teatro. Em 1958 teve a ousadia de escrever, produzir e dirigir um filme: Santo Antonio e a vaca, rodado na região, sobre o folclore regional. Para tanto criou a Arabela Filmes. Além do indiscutível talento de Wallace para as artes culturais, merece nota seu trabalho na divulgação do Espiritismo, doutrina que ele assumiu aos 16 anos e divulgou por toda a sua vida. Se destacou como Redator-Chefe do jornal O Clarim e da Revista Internacional de Espiritismo. Na literatura espírita; foram dezenas de livros, uns de sua própria autoria, outros que ele traduziu e organizou. Em 1973,: passou a integrar o quadro de colaboradores da revista Planeta. Em 1973, lançou, na sede da Federação Espírita do Estado de São Paulo, seu livro Remotos cânticos de Belém, No enredo da obra, Wallace juntou histórias e personagens e os colocou num avião que é sequestrado na véspera do Natal. A mensagem que ele passa é a de que a suave melodia do Natal faz-se sentir e abranda até mesmo situações extremamente graves, como a vivida pelos passageiros. Como autor: Remotos cânticos de Belém; Meimei; Vida e mensagem; A esquina de pedra; E, para o resto da vida; Katie King. Considerado pela crítica especializada como uma das pessoas mais cultas dos últimos anos em nosso país, aos 62 anos, Wallace teve seu estado de saúde comprometido e faleceu em 1988.

Fontes:
Wallace Leal V. Rodrigues. E, para o resto da vida. Casa Ed. O Clarim.
Biografia = Federação Espírita do Paraná
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Lendas Indígenas do Amazonas (Jurupari, o Deus do Sol)

(texto de Karina Pinheiro)
A figura folclórica pode aparentar várias formas, conforme a região onde a lenda é contada. 

Uma das figuras mais faladas do folclore amazônico é o Jurupari. Originário do Tupi, o nome possui mais de um significado, tendo como suas definições “boca; tirar da boca” ou “aquele que vem a nossa rede”, em alusão a sua história como o demônio do pesadelo.

Jurupari pode aparentar várias formas. Conta-se que o deus seria um homem de boca torta que está sempre rindo ou uma grande cobra com braços. Em outras regiões, pode ser um homem sábio, um bebê invisível ou somente uma presença divina. 

A figura também é parte da lenda do guaraná, no qual, por inveja de um pequeno indígena, que era estimado em toda a tribo, acabou se transformando em serpente e matando a criança.

As histórias a respeito desse ser mitológico se misturam e são ao menos duas: 

O DEMÔNIO DOS SONHOS

Na versão mais conhecida, Jurupari é o deus da escuridão e do mal, que visita os indígenas em sonhos, deixando as vítimas assustadas ao causar pesadelos e presságios ruins. Durante o sonho, a pessoa é impedida pelo deus de gritar, causando asfixia.

Essa versão foi estimulada e contada pelos jesuítas como a personificação do próprio mal, descaracterizando as crenças indígenas sobre a entidade divina. 

O FILHO DO SOL  

Em outra versão, Jurupari era filho de uma indígena chamada Ceuci, uma virgem que acabou tendo um filho a partir de um milagre. Um dia, Ceuci descansava na sombra de uma árvore, a árvore do bem e do mal, onde o consumo de suas frutas eram proibidas às moças no dia que estivessem em período fértil.

Ceuci ao perceber os frutos, acabou comendo um e ao morder, o caldo do fruto escorreu pelo seu corpo nu, fecundando-a. Meses depois, a gravidez foi descoberta, o que causou indignação de toda a comunidade da aldeia e acabou sendo exilada por decisão do Conselho de anciões.

Distante da aldeia, Ceuci deu a luz ao seu filho, Jurupari, ‘o filho do sol’, e foi enviado à terra pelo próprio sol, para que pudesse reformar os costumes da terra e encontrar a mulher ideal para que ele pudesse se casar.

Com apenas sete dias de vida, Jurupari já aparentava ter 10 anos e seu conhecimento chamou a atenção de todos, que passaram a ouvir suas palavras e ensinamentos de novos costumes, que ameaçavam a sociedade matriarcal e instituía o patriarcado. Jurupari realizou festas cerimoniais, onde somente os homens podiam participar e aproveitava para passar os seus ensinamentos, o que acabou afastando ele de sua mãe.

Inconformada pelos ideais e por saudade do filho, Ceuci resolveu espiar em uma noite o cerimonial dos homens, ação que era considerada proibida, e a punição seria a pena de morte. 

Furtivamente, ela entrou no território onde os homens estavam reunidos, mas antes do fim da cerimônia, Ceuci acabou sendo atingida por um raio enviado por Tupã. 

Em diferentes versões, supostamente o raio teria sido enviado por Jurupari, sem saber que era sua mãe. Ao se deparar com a situação, o ‘filho do sol’ foi chamado para ressuscitar sua mãe, mas não fez, pois não podia abrir exceções em suas leis. 

Jurupari então disse:
“Morreste mãe, porque desobedeceste à lei de Tupã. é a lei que eu vivo a ensinar, não vou te ressuscitar, mas te recomendo: sobe, bela, radiante e pura para um mundo melhor. cumpriste a verdadeira missão de mãe, que é cheia de amor, renúncia, desenganos e sofrimento. meu pai irá recebê-la de braços abertos lá no céu”.

Cheio de luz, o corpo da agora considerada deusa começou a subir, atravessando o espaço e transformou-se na estrela mais resplandecente da constelação das Plêiades, permanecendo lá até os dias de hoje, como lembrança da importância de respeitar às leis de Jurupari, o ‘Filho do Sol’.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Figueiredo Pimentel (Aventuras de um jabuti)

Dom Jabuti seguia uma vez, distraído, preocupado com os seus negócios, filosofando nas coisas desta vida, por um caminho no meio do mato, quando esbarrou com uma velha e enorme anta, enforcada num laço que caçadores haviam armado. Mais que depressa principiou a roer a corda que prendia o pescoço do bicho, e depois de esconder a corda num buraco, começou a gritar:

– Acode, gente!... acode depressa!...

Dona Onça, que passava na ocasião, foi ver porque motivo tanto gritava o jabuti.

– Que é isto? – interrogou.

– Estou chamando gente para vir comer a anta que acabei de caçar agora mesmo.

– Queres que eu parta a anta? – propôs a comadre onça.

– Quero sim. Dividirás a metade para mim e a outra para ti, disse ele.

– Então, vai apanhar lenha, para assarmos a carne da anta.

Quando o jabuti voltou apenas encontrou o couro da anta, e disse:

– Deixa estar, onça velhaca, hás de me pagar algum dia esse desaforo que me fizeste.

Saindo dali, andou por muitos dias seguidos. Ia pelo caminho pensando como se vingar da onça, quando se encontrou com um bando de macacos, em cima de uma bananeira, comendo bananas.

– Olá, compadre macaco, atira uma banana para mim. – disse o jabuti.

– Por que não sobes? Não és prosa, jabuti?

– Vim de muito longe e estou cansado.

– Pois o que posso fazer é ir buscar-te daí debaixo cá para cima - disse um dos micos.

– Pois então, vem.

O macaco desceu, pôs em cima o jabuti, que ali ficou dois dias, por não poder descer.
***

No terceiro apareceu uma onça, a mesma que tinha encontrado com ele perto da anta.

– Olá, jabuti, como subiste nesta bananeira?

– Muito bem, onça.

A onça, que estava com fome, disse:

– Ó jabuti, desce cá para baixo.

– Só se me aparares na boca, onça. Não quero me machucar, pulando daqui ao chão.

A onça abriu a boca e o jabuti deu um pulo, acertando o bicho, que morreu imediatamente.

– Matei uma onça, meus parentes, vão ver debaixo das bananeiras!...

– Ó jabuti, que estás dizendo?

– Não é nada, onça, é cá uma cantiga que eu sei.

E foi procurando um buraco para se esconder.

Assim que encontrou uma furna, parou e disse:

– Ó onça, sabes o que estava cantando? É isto: matei uma onça. Vão ver debaixo das bananeiras.

A onça correu para pegá-lo, mas o jabuti meteu-se pelo buraco, onde a onça também introduziu a pata, segurando-o por uma das pernas.

– Ó onça, pensas que apanhaste a minha perna, mas engana-te: apenas seguraste numa raiz.

A onça largou a perna do jabuti, que tinha nas garras, e retirou o braço do buraco.

– Ó sua tola, foi a minha perna que seguraste mesmo. Agora vai ver a tua parenta que está embaixo das bananeiras.

A onça ainda cavou um bocado, para ver se apanhava o jabuti, mas este já estava longe, porque a furna onde entrara era muito funda.

Desde esse dia, a onça anda à procura do jabuti para se vingar, mas até hoje ainda não o encontrou,
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.
Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing

Aparecido Raimundo de Souza (Pra burra só faltavam as penas...)

A BABÁ VINHA logo atrás da menina que pilotava um carrinho cor de rosa importado movido a bateria, esses da boneca Barbie, com capacidade para quatro crianças. A pequena condutora era a filha da patroa. Distraída, a motorista tocava o carrinho a seu bel prazer, dirigindo aos trancos e barrancos, sem olhar exatamente onde passar. Com isso, atropelava as pessoas que iam e vinham pelo calçadão da praia, enquanto a babá, grudada no celular, sequer dava a devida atenção por onde a mocinha seguia em guinadas à torto e a direito. Ao se aproximarem de mim, resolvi fazer uma brincadeira com a jovem.  Indaguei, de supetão, o rosto fechado, para dar mais seriedade à abordagem.
— Bom dia, senhorita.

A jovem parou de “futricar” o telefone para me atender.
— Pois não?
— Estou vendo essa mocinha linda e simpática dirigindo esse carrinho. Acaso é sua filha?
— Não senhor. É da minha patroa, dona Elisa.
— A senhorita, por acaso, está com os documentos da futura motorista?
— Sim, a certidão de nascimento, cartão de vacina, autorização dos pais dela para viajar com a pequena para onde for necessário se houver um caso de urgência...
— Só?
— Sim. Por qual motivo?
— A senhorita sabe se ela está portando a carteirinha de habilitação profissional para dirigir?

— Meu Deus moço, agora o senhor me pegou. Eu não trouxe. E dona Elisa não me disse que precisaria... O que faço?
— Calma. Relaxa...
A babá, assustada, passou a revirar a bolsa à cata do tal documento.
— Deixa eu ver.… de repente dona Elisa colocou esse no meio das minhas coisas. Não sabia que precisava. Meu Deus, moço. Que atitude devo tomar?
— Vou pedir que a senhorita retire a criança do carrinho...
A babá se abaixou e pegou no colo a pequena de olhos verdes. Num primeiro momento, ela ficou zangada. Se abriu em choro copioso, fez pirraça, não querendo deixar a direção.
— Pronto...

— Vou precisar que pergunte a ela se essa fofura tem habilitação para dirigir.
— Pra ela quem? A menina?
— Não, senhorita. Obviamente a mãe dela. Esse tiquinho de gente já sabe falar?
— Claro que não. Poucas coisas. Moço, pelo amor de Deus, eu nem sabia que para dirigir um carrinho de criança carecia de habilitação. Por acaso isso é alguma lei nova?
— Não, senhorita... 
— E agora, o que faço? Por favor, me dá um minuto.  Deixa eu ligar para minha patroa. Qualquer coisa ela vem aqui e traz o documento. O senhor é da polícia?
— Não. Sou do SPC, ou melhor dito, do Serviço de Proteção às Crianças.

— Minha nossa! SPC?
— Sim, SPC. Por qual motivo o espanto?
— Pensei que o SPC fosse só para quem tem o nome sujo! 
— A senhora tem problemas com seu nome? Está no SPC?
— Sim, moço... me ajuda, preciso desse emprego...
— Por qual motivo está figurando no SPC?
— Comprei um telefone celular, estava distraída e fui roubada. Por conta disso, deixei de pagar...  
— Pois então. Agora a senhorita figurará também no outro SPC, ou seja, no SPC que eu represento. Falo do Serviço de Proteção às Crianças. Com isso, a senhorita se verá “pendurada” não só pelo celular não pago no Serviço de Proteção ao Crédito e agora, a partir desse momento, no outro SPC, como disse, no Serviço de Proteção às Crianças, por consentir que uma menor inabilitada dirija um carrinho (ainda que de brincadeira) sem a devida habilitação legal... 

— Moço, pelo amor de Deus, como lhe disse, preciso desse emprego. Deixa eu ligar para minha patroa...
— Negativo, moça. Vou confiscar o carrinho e o seu celular...
A babá estava ficando cada vez mais nervosa. Do nada, começou a tremer e a chorar, mais alto que a criança que cuidava, entre aspas. 
— Calma, senhorita. Calma. Vamos resolver numa boa. A senhorita tem a CNH?
— Por incrível que pareça, sim. 
— Então façamos o seguinte. Vou quebrar seu galho. A senhorita coloca a menina no banco de trás, coloca o cinto nela, entra no carrinho, pega a direção e conduza o brinquedo com todo cuidado. Por tudo quanto é sagrado. Não vá me atropelar as pessoas, sejam elas novas ou em idade avançada. Enfim, senhorita, qualquer criatura que esteja indo ou vindo distraída, por esse imenso calçadão. Veja como tem gente aos borbotões. Parece até feira livre.

A babá, ainda em prantos, de fato, guardou na bolsa o celular.
— Mas senhor — observou incrédula: —...  Eu não caibo nesse carrinho. Olhe para o meu tamanho.  Não posso ir empurrando? Levo a menina pela mão. Eu trabalho duas quadras daqui... 
— Ok. Então faça isso...
A babá pegou a criança pelo bracinho, ainda chorando e se afastou o mais devagar que conseguiu, ao tempo em que cautelosamente empurrava o carrinho em direção ao condomínio de sua patroa. Eu fiquei onde estava. Parado, pasmado, rindo feito um desmiolado. Falando com meus botões, a certa altura, observei:
— Pelo menos a danada da babá ficou bastante assustada e deixou de brincar no celular e dar mais atenção ao serviço para o qual foi contratada. Irresponsável, essa geração de hoje em dia.
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Marcelo Spalding (Dicas de escrita) Como criar bons finais para suas histórias

Nota: No nome dos contos clique sobre o nome para acessa-los.
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Criar um bom final é uma das partes mais difíceis na construção de qualquer narrativa - seja um conto, romance, filme ou série. Por isso, é fundamental entender os diferentes tipos de finais e como usá-los para que a história fique satisfatória para o leitor ou espectador.

Uma boa maneira de entender os finais é compará-los com dois tipos clássicos de conto: o conto de acontecimento e o conto de atmosfera.

No conto de acontecimento, o final é o mais importante e justifica toda a história. Um exemplo clássico é o conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis, em que o desfecho revela o significado de toda a trama.

Já no conto de atmosfera, o final não é o ponto principal. O foco está na tensão e no clima construídos ao longo da narrativa, como no conto A Missa do Galo, também de Machado de Assis.

Estes contos de atmosfera têm o que podemos chamar de um final aberto. O final aberto é aquele que não oferece uma conclusão definitiva para a história. Ele deixa questões no ar, convidando o leitor ou espectador a refletir, interpretar e imaginar o que pode acontecer depois.

Um exemplo marcante no cinema é o filme Magnólia, que termina com uma chuva de sapos - uma imagem metafórica e intrigante, que não fecha a narrativa de maneira tradicional, mas provoca múltiplas interpretações e reflexões sobre a vida e seus conflitos. O final aberto não significa desistir de contar a história; pelo contrário, é uma forma de mostrar que a vida continua e que os conflitos apresentados seguirão existindo.

No entanto, é fundamental diferenciar o final aberto do final interrompido. O final interrompido acontece quando o autor não sabe como encerrar a história e simplesmente para no meio da tensão, deixando o público frustrado.

Por exemplo, imagine uma história de assalto a banco que termina com um tiro, mas não revela quem foi atingido nem o que aconteceu depois - isso deixa o público incomodado. Por outro lado, se a narrativa for centrada em outro foco narrativo, como a relação de um casal na fila do banco durante o assalto, o final aberto pode funcionar bem, pois o foco está nos personagens, não nos acontecimentos externos.

Outro tipo de final muito usado é o final surpreendente ou plot twist, como em O Sexto Sentido. O desafio é garantir que o final tenha bases na narrativa e não seja um artifício forçado, que deixe o leitor frustrado.

Além disso, existem os finais fechados, que encerram bem todas as pontas da história, como na série Breaking Bad, onde o arco do personagem principal se conclui de forma satisfatória. Já os finais trágicos mostram a queda do protagonista por um erro ou excesso, gerando um impacto emocional profundo (a famosa catarse aristotélica).

Vale lembrar que não existe um único tipo de final correto, mas sim o final que melhor serve ao propósito da narrativa e ao efeito desejado. Seja com um desfecho fechado que amarra todas as pontas, um final aberto que convida à reflexão ou um plot twist que surpreende e transforma a história, o importante é que o final seja intencional e coerente com o que foi construído.
(do livro “Formação de escritores”, de Marcelo Spalding)
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Marcelo Spalding é jornalista, professor, escritor e editor, com 10 livros individuais publicados e mais de 150 livros editados. Professor de oficinas de Escrita Criativa presenciais e online desde 2007, fundou e dirige a Metamorfose Cursos. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor e mestre em Letras pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras. Ex-professor universitário, atuou como professor de Escrita Criativa e Jornalismo na graduação e no PPG Letras da UniRitter, além de coordenar o Pós-graduação em Produção e Revisão Textual e a Editora UniRitter. É idealizador do Movimento Literatura Digital, editor dos sites minicontos.com.br e escritacriativa.com.br e autor do livro Escrita Criativa para Iniciantes, além de ter criado o primeiro jogo de tabuleiro de Escrita Criativa do Brasil.

Fontes:
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