sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Wallace Leal V. Rodrigues (As penas)

Quando pequenas, minha irmã e eu éramos muito sonhadoras. O sonho e a imaginação se conjugavam muito bem.

E, de quando em vez, inventávamos histórias sobre nossas companheiras. Essas histórias se transformavam em boatos que, em uma cidade pequena, terminavam por provocar dissabores.

Na verdade, não fazíamos aquilo por mal, mas, naturalmente, enquanto dávamos rédeas soltas à nossa fantasia, os desagradáveis incidentes se multiplicavam.

Lembro-me muito bem de certa manhã, antes do inverno chegar. Ventava muito e nós brincávamos no galpão. Entretanto mamãe estava sentada em um tamborete, ao aberto, bem no meio do quintal.

Aquilo nos intrigou um pouco, porém logo nos distraímos.

Nossa atenção voltou a ser despertada quando ela nos chamou, solicitando que levássemos até ela uma almofada e uma tesoura, que se encontravam perto de nós.

Quando colocamos os dois objetos junto dela, ela nos pediu que cortássemos a almofada ao meio.

Obedecemos. A almofada estava cheia de penas e, logo em seguida, levadas pelo vento, elas enchiam o quintal num espetáculo tão lindo como uma tempestade de neve. Eu e minha irmã pulávamos encantadas com o espetáculo.

Todavia, mamãe tornou a nos chamar. Junto dela estava a sua cesta de costura, que nem tínhamos visto. Foi lá de dentro que ela tirou uma capa de almofada nova e vazia.

Ela solicitou que enchêssemos de novo a almofada. Ficamos admiradas com o pedido, julgando impossível que fosse atendido, pois as penas haviam voado por toda parte.

Enquanto observava as penas dançando ao vento, ela fez um comentário que eu e minha irmã não pudemos esquecer por toda a vida.

Ela comparou as penas com os boatos que certas pessoas propagam: uma vez espalhados, não há meios de fazê-los voltar ao ponto de partida.
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Esta singela história nos leva a refletir o quanto é importante cuidarmos de qualquer comentário que possamos vir a fazer a respeito de outras pessoas.

Vigiemos sempre as nossas palavras, não nos entregando à maledicência.

Poucos de nós cultivam a indulgência, um sentimento fraternal que nos move a não enxergar as falhas e os defeitos dos outros.

Quando notarmos as fraquezas alheias, evitemos divulgá-las ou tenhamos o cuidado de atenuá-las tanto quanto possível.

Julguemos com severidade somente as nossas próprias ações, pois todos nós temos defeitos a corrigir e hábitos a modificar, e muitas vezes, cometemos graves faltas.

Ser indulgente com as fraquezas do outro é uma forma de praticar a caridade.

O verdadeiro caráter da caridade é a modéstia e a humildade, que consistem em ver cada um apenas superficialmente os defeitos de outrem e esforçar-se por fazer que prevaleça o que há nele de bom e de virtuoso.

Reflitamos sempre se o que nos chega ao ouvido é absolutamente verdadeiro para ser passado adiante. Pensemos se o que vamos comentar, também gostaríamos que as pessoas dissessem a nosso respeito.

Analisemos se é mesmo necessário falar sobre este ou aquele fato, se trará algum benefício ou se não prejudicará alguém.

Antes de cedermos ao impulso de passar adiante qualquer comentário, lembremos sempre das penas soltas ao vento, como se fossem as nossas palavras que, de nenhuma forma, podemos tornar a recolher.
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Wallace Leal Valentin Rodrigues nasceu em 1924, em Divisa/ES, foi para Araraquara, SP na década de 30. Estudou Ciências Econômicas em Ribeirão Preto. Foi ator e diretor de teatro, diretor de cinema, escritor, jornalista. Realizou seu primeiro filme em 1953: o documentário Aurora de uma Cidade. Foi diretor e ensaiador do TECA (Teatro Experimental de Comédia de Araraquara). Acompanhou e colaborou com a primeira escola de ballet da cidade: Escola de Ballet Mímica de Araraquara, desde sua fundação maquiando, e apoiando nos figurinos e cenários das apresentações por longo tempo. Coordenou, compôs, criou, orientou jovens e crianças em desfiles de modas ensinando como andar, sentar, colocação de mãos e pés, comportamento e postura de corpo e porte em passarela, um trabalho de alta qualificação, ensinamento europeu. Como escritor tem livros publicados no Brasil e no Exterior. Era poeta, compunha música e além do teatro, atuava junto ao grupo de rádio teatro. Em 1958 teve a ousadia de escrever, produzir e dirigir um filme: Santo Antonio e a vaca, rodado na região, sobre o folclore regional. Para tanto criou a Arabela Filmes. Além do indiscutível talento de Wallace para as artes culturais, merece nota seu trabalho na divulgação do Espiritismo, doutrina que ele assumiu aos 16 anos e divulgou por toda a sua vida. Se destacou como Redator-Chefe do jornal O Clarim e da Revista Internacional de Espiritismo. Na literatura espírita; foram dezenas de livros, uns de sua própria autoria, outros que ele traduziu e organizou. Em 1973,: passou a integrar o quadro de colaboradores da revista Planeta. Em 1973, lançou, na sede da Federação Espírita do Estado de São Paulo, seu livro Remotos cânticos de Belém, No enredo da obra, Wallace juntou histórias e personagens e os colocou num avião que é sequestrado na véspera do Natal. A mensagem que ele passa é a de que a suave melodia do Natal faz-se sentir e abranda até mesmo situações extremamente graves, como a vivida pelos passageiros. Como autor: Remotos cânticos de Belém; Meimei; Vida e mensagem; A esquina de pedra; E, para o resto da vida; Katie King. Considerado pela crítica especializada como uma das pessoas mais cultas dos últimos anos em nosso país, aos 62 anos, Wallace teve seu estado de saúde comprometido e faleceu em 1988.

Fontes:
Wallace Leal V. Rodrigues. E, para o resto da vida. Casa Ed. O Clarim.
Biografia = Federação Espírita do Paraná
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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