foste uma luz… o calor.
No despertar da manhã
foste simplesmente… amor.
Há lembranças que se enraízam como árvores antigas: elas crescem, fazem sombra e, quando o vento passa, deixam cair uma folha cuja textura a gente reconhece sem precisar olhar. Maya é uma dessas árvores na minha memória — uma presença que ocupou quintais, ruas, abraços e um pedaço enorme do nosso coração. Nasceu em São Paulo, capital, em 1997. Veio da mão de uma amiga, entregue como quem confia a chave de casa a alguém que sabe cuidar. E cuidar, com ela, foi aprender a grande lição de que os animais chegam para ensinar a amar.
No começo éramos ruins em cuidar de cachorros; confessar isso hoje é confessar uma ingenuidade que me envergonha e encanta ao mesmo tempo. Eu cheguei a fazer um cartaz numa venda perto de casa: doava-se a cadela, tomada numa mistura de desespero e de inexperiência. Coloquei-o ali como se arrancar o problema resolvesse também o afeto que já começava a crescer. Na manhã em que um senhor apareceu interessado, Maya chorou como quem pede para não ser trocada por um ponto final. Chamou a manhã inteira — um choro que parecia questionar a nossa lógica.
Quando um senhor tentou se aproximar, ela adotou uma postura defensiva e quase atacou; ele, visivelmente assustado, desistiu. Foi nesse instante que entendemos: ela não era de dar, era de ficar. E ficamos. Mais tarde encontramos o senhor novamente — nas ruas do bairro — e, Maya, que na manhã anterior parecera pronta a atacar, lambeu a mão dele com a mesma simplicidade com que dá à vida um sopro de perdão. A natureza dela tinha essa contradição doce: firmeza e ternura, proteção e entrega.
Maya era grande, uma mistura nobre entre Akita e Pastora Belga Albina. Eu brincava que ela era uma “Akitora” — um nome que juntava o porte imponente com a pelagem clara que lembrava neve. Majestade era, aliás, uma palavra que lhe caía bem. Caminhava como quem foi feita para ocupar espaço: passos largos, cabeça erguida, olhar que media situações. E ao mesmo tempo que era imponente, era dócil como poucas criaturas que já conheci. As crianças do bairro a adoravam. Entravam no quintal para brincar, deitavam-se ao lado dela, corriam e riam, e Maya aceitava tudo com paciência de rainha misericordiosa.
Havia, porém, um ódio irrefreável por bêbados que passavam em frente ao portão. Não tolerava esse tipo de presença; o latido que soltava nessas ocasiões não era infantil, era uma reprimenda, quase uma convocação à ordem. Quando havia algazarra de cachorros na rua, era Maya quem impunha silêncio: bastava um latido seu que as vozes mais altas pareciam se dissolver. Em todas as casas por onde vivemos — Taboão da Serra, Curitiba, Ubiratã e finalmente Maringá — ela se tornou referência para os cães da região: Maya latia, e o bairro escutava.
Em Curitiba, teve um episódio que virou lenda entre os vizinhos. Numa época em que estávamos viajando, houve uma invasão: um ladrão subiu o muro da casa para roubar. Maya pegou esse ladrão no muro mesmo. Simples assim. Haviam rastos de sangue do ladrão no muro, com certeza no desespero de tentar se salvar. Não foi uma cena de filme; foi a realidade exemplar de uma cachorra que assumiu seu posto de guardiã com firmeza. O nome dela correu as ruas: “a Maya pegou o ladrão” — e a sensação foi de uma vitória coletiva. O mesmo ladrão, sabíamos depois, havia roubado outras casas naquela sequência de dias. Mas quando encontrou a Maya na frente, a história mudou. Ela era destemida quando necessário.
Era também uma mãe dedicada. Cruzou com um Border Collie em Curitiba e teve sete filhotes. A casa encheu de patas, de olhos curiosos e de filhotes que tinham fila para adotá-los. Ficamos com um deles; os outros foram-se rápido, porque quem a conhecia sabia que ter um filhote dela seria um privilégio. Ser mãe foi mais um dos papéis que ela desempenhou com naturalidade: havia nela uma mistura de disciplina e afeto, um código que os filhotes aprenderam rápido.
As caminhadas com ela eram, na verdade, passeios em que ela nos levava. Entre risos, sempre digo isso: era ela quem ditava o ritmo, quem escolhia o caminho, quem parava para cheirar a vida. Numa dessas ocasiões lembro de um dia em que ela disparou, e mesmo presa ao enforcador — que eu segurava firme — arrastei-me até colidir com uma árvore. Saí daquele encontro com o joelho raspado e o riso envergonhado, enquanto Maya, impassível, já queria seguir adiante. Era fiel: fazia o que queria, mas fazia junto.
Inteligente ao extremo, ela aceitava uma trapaça uma vez — talvez duas — mas não mais. Eu podia enganá-la uma vez, e ela ficaria olhando com curiosidade; na segunda vez, o olhar era de reprovação quase cômica, como se dissesse: “Qual é? Acha que sou tonta e caio outra vez?” Tinha um senso de justiça fantástico. Essa inteligência fazia dela não só uma companhia, mas uma interlocutora silenciosa: seus olhos avaliavam, ponderavam, perdoavam ou censuravam de modo claro.
O tempo foi passando e, por anos, Maya foi nossa sombra, nossa mesa redonda, nossa segurança. Em 2012 sua saúde começou a declinar. Ela ficou, aos poucos, mais quieta; os passeios diminuíram, as corridas tornaram-se raras, e ela passou a deitar mais tempo do que antes. Os sinais da velhice vinham com a mesma dignidade com que vivera: sem grande dramatização, apenas um corpo pedindo repouso. No dia 19 de abril de 2013, em Maringá, ela partiu: 16 anos que pareciam ter passado tão depressa e, no entanto, deixavam uma lenta bagagem de saudade.
Maya morreu de falência dos órgãos. Foi um fim que doeu, não apenas pela violência do corpo que se entrega, mas pela concretude da despedida depois de tantos anos de presença constante. Ela deixou descendentes: Fluffy, um Border Collie que morreu aos 10 anos em Ubiratã por doença desconhecida, e Mel, que viveu até 2019 e partiu aos 16 anos em Maringá. A linhagem dela seguiu, em parte, como quem carrega a tocha adiante.
Ainda hoje, quando fecho os olhos, a lembrança de Maya vem com cheiro de grama, de poeira da estrada e de pelo macio. Vejo sua cabeça grande encostada na minha perna, o olhar que pedia nada e dava tudo, as crianças correndo ao redor, e lembro do cartaz que pus na venda, uma prova da nossa inexperiência, e da lição que isso nos deu: não se dá alguém como Maya, ela se conquista e te conquista de volta.
Sinto falta das pequenas coisas: o jeito que ela levantava o olhar para pedir um pedaço do comida, como acompanhava cada passo quando estávamos no quintal, como deitava de lado para que as crianças subissem e se aninhassem. Sinto falta de vê-la chupando manga que pegava de nossa árvore onde moravamos, e não é que a danada pegava sempre as melhores mangas. Sinto falta das tardes que os nossos gatos brincavam com ela no quintal de casa, fazendo-a de boba. Geralmente vinha pra mim, chorosa, com um arranhado no corpo, de algum gato provavelmente. Sinto falta da segurança que a presença dela trazia nas noites, quando a casa parecia menor por fora mas completa por dentro. Sinto falta do respeito que impunha e do conforto que oferecia.
Em dias de vento forte, eu imaginava Maya no portão, vendo os bêbados passarem e decidindo, com um latido seco, que aquilo não ficaria ali. Em dias de sol, a via sendo acariciada pela luz, um corpo branco que brilhava como se tivesse pegado o próprio verão. E quando me lembro da sua inteligência e do seu humor — da soberania com que assumia as manhas e o humor com que aceitava as regras — percebo a sorte que tivemos em tê-la por perto.
Há uma saudade que é como um caminho conhecido: a gente passa por ele sempre que quer encontrar uma presença. Para mim, essa estrada leva direto a Maya. Às vezes, preso num dia comum, me surpreendo sorrindo ao lembrar da cena em que ela lambeu a mão do senhor que antes despertara seu instinto de defesa, ou do dia em que mordeu o ladrão ou ainda da vez em que a casa inteira ficou em silêncio por causa de um único latido. Essas memórias são pequenas vitórias contra o esquecimento.
Maya era muito mais do que a soma de suas ações; ela era um personagem que alterou nossa narrativa familiar. Nos ensinou a cuidar, nos policiou, fez-nos rir e, sobretudo, foi um porto. Depois que se foi, aprendemos a medir espaços: um banco na sala que parece maior, um canto do quintal que ecoa as patas, uma coleira que agora é só lembrança. A vida, com sua dureza e sua ternura, seguiu — mas com a marca dela cravada em cada gesto de cuidado que depois demos.
Escrever sobre Maya é trazer à tona não só a história de uma cadela exemplar, mas a própria história de quem aprendeu com ela. É confessar que já fomos melhores e piores, e que, diante de um animal assim, o melhor de nós e também a nossa impotência frente às vicissitudes da vida aparece. É também uma forma de agradecer: por ela ter escolhido ficar quando nossas mãos hesitaram, por ter sido dócil com as crianças, implacável com ladrões, e por ter ensinado que a lealdade é prática diária e silêncio cúmplice.
Hoje, quando falo dela, lembro-me da akitora, a raça que lhe denominei. Em seu nome, há reverência. Em qualquer lembrança, há saudade. Mas há também consolo: ela viveu muito, viveu bem, e deixou herança material e espiritual. Fluffy e Mel foram pedaços do legado; as histórias que lembramos continuam a circular; e dentro de nós, o modo de amar transformado por ela segue ativo.
Maya era majestade e afeto, cidade e quintal, guarda e companhia. Era o tipo de presença que nos ensina por imitação: você olha para ela e entende como se cuida, como se espera e como se protege. Sua vida foi um mapa de gestos que inaugurou muitos de nossos modos de agir com os animais. E a saudade — ah, a saudade — é essa árvore que inclino a cabeça para lembrar e, geralmente, chorar, um choro triste e um choro alegre. É também um carinho antigo que me aquece inesperadamente em dias frios.
Se penso em algo final que ela me deixou, é a convicção de que cuidar transforma. Fomos péssimos no início, aprendemos no caminho, e Maya foi sempre generosa com nossas falhas. Quando morreu, restou o aprendizado e o espaço que nunca mais seria igual. Hoje, aqui sentado, escrevo e vejo o sol atravessando a cortina, e, por um segundo, o brilho parece o mesmo do pelo dela. Sorrio, deixo a saudade me dominar — porque saudade, no final das contas, é prova de que houve amor, e que esse amor valeu cada passo que ela nos fez a dar ao seu lado.
Oh, minha querida Maya. Que saudade!!!
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.
Fonte:
José Feldman. Minhas irmãs de quatro patas. Floresta/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul (em construção)
Fotos e montagem por JFeldman

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