segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Estante de Livros (“O homem que calculava”, de Malba Tahan)

"O Homem que Calculava", de Malba Tahan (na verdade o autor foi o brasileiro Júlio César de Mello e Souza), é uma obra singular que mistura entretenimento, pedagogia matemática, folclore oriental e reflexão ética. Publicado pela primeira vez em 1938, o livro tornou-se clássico no Brasil e em vários países de língua portuguesa, por sua capacidade de apresentar problemas matemáticos com sabor narrativo e de encantar leitores de diferentes idades. 

1) Contexto e autor

- Júlio César de Mello e Souza (1895–1974) foi professor e matemático brasileiro, autor de numerosos livros didáticos e de divulgação. Ao adotar o pseudônimo de Malba Tahan e situar suas histórias em um imaginário Oriente islâmico, buscou um duplo efeito: criar um cenário exótico que capturasse o imaginário do leitor e, simultaneamente, proporcionar uma voz narrativa distinta, distante, que desse licença para lições morais e matemáticas contadas como contos de viajante.  

- O livro aparece no período entre guerras e em uma época em que a divulgação científica e a valorização do ensino racional ganhavam espaço. A tática de humanizar a matemática por meio de histórias foi uma resposta criativa à necessidade de tornar a disciplina atraente.

2) Estrutura e enredo

- A obra é essencialmente uma coletânea de episódios protagonizados por Beremiz Samir, o "homem que calculava", e seu companheiro de viagens, o narrador (Waziri — em algumas edições chamado de Hadji, outras variações), que registra as façanhas de Beremiz enquanto viajam por cidades medievais fictícias do Oriente.  

- Cada capítulo costuma girar em torno de um problema matemático ou de lógica que Beremiz resolve com raciocínio brilhante — repartições de herança, divisão de camelos, problemas de áreas e proporções, jogos de números, problemas algébricos e aritméticos — e muitas vezes a solução vem acompanhada de um desfecho social: reconhecimento, recompensa, casamento ou salvação de injustiçados.  

- A unidade do livro não é uma longa trama linear, mas sim a consistência do personagem e do tom: a matemática é a lente através da qual se revelam caráteres, injustiças e relações humanas.

3) Estilo e linguagem

- O tom é leve e pitoresco: Malba Tahan compõe uma voz narrativa que faz uso de arabescos linguísticos e de uma ambientação exótica (nomes, costumes, referências islâmicas e orientais) para criar um clima de fábula. Essa estilização não busca rigor etnográfico; é uma construção literária destinada a evocar maravilhas.  

- A prosa alterna a narrativa com explicações passo a passo dos raciocínios matemáticos. Essas explicações são, em geral, didáticas e claras, muitas vezes utilizando números concretos, diagramas verbais e simplificações que permitem ao leitor seguir a lógica sem prévia formação especializada.  

- Predomina o registro coloquial-culto, com pitadas de moralismo afável: os problemas são resolvidos não só para demonstrar habilidade técnica, mas para validar virtudes — justiça, generosidade, astúcia benevolente.

4) Matemática como personagem e ferramenta temática

- No livro, a matemática é quase um personagem moralizador: raciocínio, cálculo e proporção servem para restaurar ordem, reparar injustiças e criar soluções elegantes para dilemas sociais. Beremiz usa a matemática para demonstrar verdades, convencer sábios, resolver disputas e também para divertir audiências.  

- Os problemas escolhidos ilustram princípios fundamentais da aritmética, da proporção e do pensamento algébrico pré-formal: frações, regra de três, sistemas simples, divisões com condições, problemas de otimização prática. Assim, o livro funciona simultaneamente como entretenimento e como manual de raciocínio lógico.  

- Importante: a obra não pretende esgotar a matemática nem entrar em abstrações teóricas avançadas; seu objetivo é a aplicação criativa e pedagógica do raciocínio numérico.

5) Ética, justiça social e caráter

- As resoluções matemáticas frequentemente têm efeito moral ou social: corrigem fraudes, garantem heranças justas, livram inocentes. Isso produz um laço direto entre a racionalidade e a justiça: o bom raciocínio é instrumento de equidade.  

- Beremiz encarna virtudes idealizadas: humildade, sabedoria aplicada ao bem comum, paciência e generosidade. A figura dele contrapõe-se tanto ao charlatanismo quanto à arrogância — ele usa o cálculo sem ostentação, para benefício coletivo mais do que para empáfia pessoal.  

- Há também crítica indireta a hierarquias iníquas: reis, juízes ou mercadores que errem são frequentemente corrigidos pelo poder do argumento lógico, sugerindo que o conhecimento técnico (matemática) pode subverter privilégios arbitrários.

6) Orientalismo e representação cultural

- A escolha de um cenário "árabe/islâmico" é literária e serve ao exotismo narrativo. Contudo, do ponto de vista crítico contemporâneo, é legítimo perguntar sobre orientalismo e apropriação cultural: Mello e Souza, brasileiro do século XX, constrói imagens e vozes que se apoiam em estereótipos e em um imaginário romantizado do Oriente.  

- Essa estética não busca fidelidade histórica ou antropológica; trata‑se de uma fábula universal com cenário exótico. Ainda assim, leitores modernos podem ler o livro tanto como homenagem (um tributo ao legado matemático muçulmano medieval) quanto como apropriação literária. O balanço entre admiração e estereótipo merece reflexão crítica.

7) Técnicas pedagógicas e literárias eficazes

- Concretude e narrativa: transformar problemas abstratos em pequenos dramas (divisão de heranças, julgamentos) torna a matemática relevante e emocionalmente envolvente.  

- Personificação da razão: fazer da lógica a ação eficaz de um personagem facilita a identificação do leitor com o método científico do cálculo.  

- Humildade metodológica: ao explicar passo a passo, com exemplos e repetições, o livro promove a aprendizagem implícita — o leitor aprende pelo envolvimento, não por formalismo seco.  

- Variedade de problemas: a seleção abrange simples truques numéricos, problemas de proporcionalidade, noções elementares de álgebra, lógica combinatória e puzzles, o que mantém o interesse e demonstra diferentes facetas do raciocínio.

8) Simbolismo e leituras metafóricas

- Beremiz como arquétipo: ele é o sábio prático, fórmula do intelectual que alia saber e ética — figura que insiste que o conhecimento serve ao bem comum. Isso remete ao ideal humanista do conhecimento aplicado.  

- Os problemas e suas resoluções funcionam metaforicamente: mostram como clareza de pensamento esclarece conflitos humanos e produz soluções justas, em oposição ao caos da ignorância e do interesse egoísta.  

- Viagem como metáfora do aprendizado: o percurso geográfico e cultural dos protagonistas espelha o trajeto do leitor pelo conhecimento — a cada parada, uma lição.

9) Limitações e críticas

- Superficialidade histórica/cultural: por adotar um cenário exótico sem aprofundamento, o livro pode ser acusado de romantizar e simplificar culturas e tradições alheias.  

- Simplicidade matemática: para leitores com formação matemática, os problemas podem parecer elementares ou anedóticos; o valor do livro é mais literário e pedagógico do que técnico‑científico.  

- Repetitividade estrutural: a fórmula narrativa (problema → demonstração → recompensa moral) pode parecer repetitiva após várias histórias. Contudo, essa repetição também atende ao propósito didático e ao formato de fábula.  

- Eventual didatismo moral: o tom ocasionalmente moralizante pode ser percebido como maniqueísta em algumas passagens.

10) Recepção e influência

- No Brasil, o livro teve enorme circulação e tornou-se livro de cabeceira para muitos estudantes e professores, inspirando o ensino lúdico da matemática. Beremiz virou figura emblemática da matemática aplicada ao cotidiano.  

- Internacionalmente, traduções e edições fizeram com que a obra alcançasse leitores de outras línguas, contribuindo para a imagem do autor como divulgador criativo.  

- Em educação, o livro é usado frequentemente para motivar crianças e jovens a apreciar problemas numéricos e raciocínio lógico, por sua combinação de narrativa e demonstração.

11) Leituras contemporâneas possíveis

- Como material pedagógico: permanece útil para estimular interesse na aritmética e no raciocínio lógico, sobretudo em contextos de ensino que valorizem atividades problematizadoras.  

- Como objeto literário: pode ser estudado por sua fusão de fábula, conto de viagens e didatismo, e por sua construção de personagem arquétipo.  

- Como estudo crítico de representação cultural: suscita debates sobre apropriação cultural, orientalismo e representação do “Outro” na literatura ocidental/latino‑americana do século XX.  

- Como inspiração ética: promove a ideia de que o conhecimento técnico deve ser guiado por princípios morais e servir ao bem comum — uma leitura valiosa em tempos de tecnocracia e abuso de saber.

12) Conclusão interpretativa

"O Homem que Calculava" funciona em diferentes planos ao mesmo tempo: é divertimento de fábula, manual de raciocínio e manifesto pedagógico. Beremiz, o protagonista, materializa a união de inteligência técnica e sensibilidade ética. A eficácia do livro reside em sua capacidade de traduzir operações matemáticas em narrativas humanas — e, ao fazê-lo, de afirmar o valor social do conhecimento. Ao mesmo tempo, a construção exótica e a estilização oriental exigem leitura crítica contemporânea: reconhecer o mérito literário e didático, sem ignorar questões de representação cultural.

Fontes:
José Feldman (org.). Estante de livros. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. Disponível em Domínio Público. 

domingo, 26 de outubro de 2025

Asas da Poesia * 117 *


Sextilha de
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Quando menino, eu queria
Ser homem, com rapidez,
Porém, contabilizando
Tudo que o tempo me fez,
Hoje morro de vontade
De ser menino outra vez!
= = = = = = = = =  

Soneto de
SÉRGIO BERNARDO
Rio de Janeiro/RJ

Surdez urbana

Os grilos cantam… Vibram no ar ruídos,
atrapalhando-os nesta hora absurda.
Apenas eu, talvez, lhes dê ouvidos…
Os grilos cantam, mas a tarde é surda.

O rush é um monstro abrindo as negras asas
na rua que enlouquece de repente.
Seus gritos vão entrando pelas casas.
(E os grilos cantam nos jardins da frente.)

Tem fim mais uma cotidiana luta,
com sons vibrando em enervante alarde.
Pessoas se atropelam…Não se escuta

Que os grilos cantam no cair da tarde…
Já fui do bando de homens intranquilos…
Troquei buzinas pela voz dos grilos.
= = = = = = = = =  

Trova de
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal (1888 – 1935)

A rosa que se não colhe,
nem por isso tem mais vida.
Ninguém há que te não olhe,
que te não queira colhida.
= = = = = = = = =  

Poema de
SEBASTIÃO FERREIRA MACEDO
Londrina/PR

Teatro

Corpo e cara, cara e corpo à sua frente
evoluindo, ora lenta, ora freneticamente
as mãos, o aceno, um traço
o corpo, o equilíbrio, o espaço
os pés, o palco, o chão
a plateia, os aplausos, o coração
como um garçom sem rosto
com uma taça, um prazer, um gosto
é a paixão, é a peça, é a cena
é a oficina, o tablado, é a arena
é a expressão, é a voz, é o gesto
é a emoção, é a energia, é o manifesto
cara e corpo, no toque, no sentido, na ação
no momento experimentado
no sugar da satisfação
é o fato, espancado, derramado, espremido
é o ato, lavrado, suado, servido
para ser mais exato, a porção exaurida
eis o TEATRO, uma criação
uma forma intensa de vida
= = = = = = = = =  

Trova Popular

Os males que me circundam
são como as ondas do mar:
atrás de uma vêm outras,    
sem nunca poder cessar.
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA LUA
Nova Friburgo/RJ

Vestígios

De longos caminhos andados
trago vestígios na alma…

Cicatrizes de ternuras perdidas
nos aflitos desamores …
Marcas de lágrimas contidas
em noites de ausências…
Rugas de desejos congelados
nos rituais absurdos…
Sombras de saudades doídas
em luares de silêncios…
Rastros de sonhos partidos
em esquinas de desencontros…
Pegadas de naufrágios loucos
nos mares do coração…

De longos caminhos andados
trago vestígios na alma…
= = = = = = = = =  

Poema de
NADIR GIOVANELLI
São José dos Campos/SP

Ser Poeta

Ser poeta é gostar da poesia.
É observar, apreciar a natureza.
Encantar-se, ouvir seu ruído com euforia,
um suave encontro de rara beleza.
O poeta sentindo a vida, a música, a melodia,
consegue com as palavras brincar...
Canta em versos, deixa livre
o que se sente ou pensa, para questionar!...
Desabafa sua dor sem medo de errar.
A dor dói, mas a dor do outro, ninguém 
nem mesmo o poeta, pode expressar.
Quero me alimentar, beber da poesia,
de sonhos, de fantasias, semear flores do bem. 
Antes de tudo agradecer meu viver! 
Orar como Anjo, pois a oração é poesia, 
de súplica ou de gratidão, um círculo de alegria.
Quero me sentir leve, livre para me inspirar...
Ser poeta é viver para amar!
= = = = = = = = =  

Poema de
DARLY O. BARROS
São Francisco do Sul/SC, 1941 - 2021, São Paulo/SP

Inexplicavelmente

Se, no mundo físico
as células do meu corpo
são a expressão concreta
viva e pulsante
da matéria fluida, etérea
de que são feitos os sonhos;
se o incorpóreo
ganha corpo em mim
aglutina-se
funde-se;
se, numa simbiótica autofagia
nós dois nos suprimos
simultaneamente
devorando-nos
alimentando-nos
um do outro;
se não somos partes de um inteiro
mas o todo
um cerne
um núcleo
uno
inexplicavelmente indissolúvel
eximir-me como de suspeição
ao falar de sonhos?...
= = = = = = = = =  

Poema de
RUBENS CAVALCANTI DA SILVA
Santo André/SP

Vamos!

Vamos repartir o pão
O chão, o céu

Vamos dividir o amor
A dor, o destino

Vamos cortar em vários pedaços
A tolerância, a esperança, o esplendor
E jogá-los ao povo que chora
Neste planeta

Vamos todos nos juntar
E depois de almoçar
Acabar com as guerras
Com as feras e com a feiura
Do preconceito.

Vamos?
= = = = = = = = =  

Soneto de
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG

Sonho cordial

Tenho na vida um sonho fraternal
que espero, em ânsias, vê-lo florescer
antes que Deus decrete o Seu final
na história pessoal do meu viver.

Sonho um mundo mais justo, mais leal,
onde a cordialidade possa ser
uma espécie de língua universal
na qual os homens possam se entender.

Que, independente às cores das bandeiras,
idiomas, línguas, crenças e fronteiras,
todos os homens possam dar-se as mãos.

Que prevaleçam sobre a Humanidade
os preceitos saudáveis da amizade,
e o mundo seja um mundo só de irmãos! 
= = = = = = = = =  

Soneto de 
ALBA HELENA CORRÊA
Niterói/RJ

Semeadura do bem

Imita o agricultor em tua vida;
verás o quanto é nobre semear.
Repara – sempre a terra agradecida,
com flores, frutos, vai recompensar.
.
O ser humano que na sua lida
espalha o bem sem disso se ufanar,
terá colheita farta, garantida,
e, lá, no céu, terá o seu lugar.
.
Sejamos, pois, fraternos lavradores;
sem esperar por glórias ou louvores,
plantemos, na existência, o bem-querer.
.
Qual árvores deixemos sombra amiga;
talvez o nosso esforço alguém bendiga
ao estender as mãos para colher!
= = = = = = = = =  

Pantum de
MIFORI
(Maria Inez Fontes Rico)
São José dos Campos/SP

Roda Viva

A suave brisa levando
o aroma da primavera...
Entre as folhagens soprando,
seu coração se acelera.

O aroma da Primavera,
as árvores farfalhando,
seu coração se acelera,
seus olhos claros brilhando!

As árvores farfalhando
folhas e flores incríveis,
seus olhos claros brilhando,
tão vivos e irresistíveis.

Folhas e flores incríveis
novos quadros vão formando,
tão vivos e irresistíveis
A suave brisa levando...
= = = = = = = = =  

Hino de 
São Bento/MA

São Bento meu doce berço de amor
São Bento minha vida te darei
No meu peito estarás onde for
Longe de ti saudades moverei

Tuas aves povoam minha alma
A esperança é o teu verde a tua luz
Tua terra é teu pão que me alimenta
O teu campo com flores me seduz

O saber é o ouro do teu povo
E a glória o futuro da cidade
Construíste com trabalho tua honra
Ilumina-te o sol da "Liberdade".
= = = = = = = = =  

Soneto de 
HÉRON PATRÍCIO
Ouro Fino/MG, 1931 – 2018, Pouso Alegre/MG

Colheita

É no riscar do solo, no trabalho
que torna o chão estéril em fecundo;
é na escolha do bom e melhor talho
que o arado irá ferir, de leve ou fundo…

É, do nascer do sol que seca o orvalho
até depois que o dia, moribundo,
busca da noite o fúnebre agasalho,
que o lavrador não para, um só segundo…

E é, juntando esperanças às sementes,
com chuva certa e sol – sempre presentes -,
que a recompensa vem, mais que perfeita,

pois o plantio, para Deus, é prece
que tem resposta pronta… quando a messe
transborda no celeiro, na colheita!…
= = = = = = = = =  

Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Estrela do meu céu
"Tu és bela, tu és formosa.” (Ct. 4.1)

No céu da minha vida,
Há uma rara estrela;
Na imensa nebulosa
Deslumbra-me em vê-la.

Do mundo nada almejo,
Se a tenho sempre bela;
É luz do meu caminho
A minha alva estrela.

No abismo não te escondas,
- Adoro a minha estrela!
Perdido eu estaria,
Se não pudesse tê-la.

Sozinho, minha estrela,
O que podia eu ser?
- Seria escuridão
De eterno padecer.

Com vida de dez séculos,
Meu sonho nela eu pus;
A cada dia mais
Verei a sua luz.
= = = = = = = = =  

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Desassossego

Desassossega a rotina desse sossego
Atreve a tua voz feita de sonho e canto
Trespassa o muro transparente da ilusão
Alado ser de pés bem assentes no chão

Embriaga-te no dulcíssimo líquido fraternal
Ergue bem alto essa taça da amizade
Celebra a graça da vida a acontecer
Milagre aos olhos de quem souber ver

Se a desilusão te bater à porta
Recebe-a ainda assim e dá-lhe guarida
Acordarás ofuscado pela luz do sábio
Serás fonte inspiradora de júbilo e gáudio

Nada tenho, nada sou, serei pó um dia
Serei alma das palavras que escutares
Nesta vontade apaziguadora que me guia
Prece de esperança em mundo que porfia.
= = = = = = = = =  

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O tesouro e os dois homens

Um pobretão, enfim, um desgraçado,
Que a miséria mais negra padecia,
Achando a vida um fardo bem pesado,
Quis pôr um termo à existência um dia.

Compra um metro de corda, arranja um prego,
E sem mais reflexão, sem mais conselho,
Quer realizar o seu desejo cego
Numa parede dum casebre velho.

Oscila enfim o prego; e às marteladas
Esboroa-se todo o pardieiro,
E do buraco feito com as pancadas
Saem rios e rios de dinheiro!

«Oh, céus! — exclama bem contente, enfim —
Sou rico!... Sou feliz!... Quero viver!
Ao diabo o suicídio, hoje para mim
Tudo são festas, hinos e prazer!...

Mas chega horas depois o avarento,
Que vinha contemplar o seu tesouro;
E encontra, em vez dos seus punhados de ouro,
O muro aberto onde atravessa o vento.

E enforca-se por fim o desgraçado
À corda que do muro vê pender!…
É pois bem certo o popular ditado:
Guardado está o bocado
Para quem o há de comer.
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J. E. Hanauer (Sátira) 2


Os dias de jejum da Igreja ortodoxa Oriental representam mais de um terço de todos os dias do ano. Nestes dias evita-se comer qualquer coisa que seja de origem animal, inclusive ovos, leite e manteiga e tudo o que é cozido com estes ingredientes. Pois bem, em um destes dias de jejum, um monge passeava pelo mercado quando se aproximou de uma camponesa que vendia ovos. Mortalmente doente por não comer nada além de legumes, o homem comprou alguns ovos, levou-os secretamente à sua cela no convento e lá os escondeu até tarde da noite, esperando que todos os demais monges se deitassem. Então ele se levantou para cozinhar os ovos e comê-los. Como não tinha onde fervê-los, segurou um dos ovos com uma pinça e colocou-o por cima da chama de uma vela, até achar que estava pronto. Fez isso com todos os ovos, um por um. Um cheiro horrível de cascas de ovo queimadas espalhou-se pelo monastério e chegou até a cela do abade, que veio imediatamente até a cozinha do convento com uma vela na mão, mas encontrou-a vazia. Ele então andou para cima e para baixo por todos os corredores, cheirando porta depois de porta, até chegar à cela do culpado. Ao espiar pelo buraco da fechadura, o abade viu o monge assando o último dos seus ovos.

Então bateu à porta, ainda com o olho no buraco da fechadura. O monge pegou os ovos, escondeu-os sob o travesseiro, apagou a luz e roncou ruidosamente. O abade bateu novamente, desta vez com mais força, e pediu permissão para entrar. Finalmente os roncos cessaram e o monge perguntou, com voz de sono: “Quem está aí?”

“Sou eu, seu abade!”. A porta foi aberta rapidamente.

Sem levar em conta as desculpas do monge, o abade o acusou de cozinhar ovos dentro da sua cela. A acusação foi veementemente negada, e o odor típico foi explicado pelo fato de sua vela ter queimado por muito mais tempo que o habitual sem ser apagada, porque o monge, imerso em suas orações, esquecera-se de soprar a chama.

O abade então foi até a cama do monge e, ao apalpar sob o travesseiro, encontrou os ovos cobertos de fuligem. Incapaz de continuar negando a sua culpa, o monge reconheceu a sua transgressão, mas implorou clemência porque o próprio Diabo o levara a pecar. 

Pois bem, mas o que ele não esperava era que o Pai de todos os demônios passasse por ali naquele exato instante, e ao ouvir a desculpa do monge, deu um passo adiante e esbravejou:

“Isso é uma mentira deslavada! Eu nunca tentei este monge. Não havia necessidade. É verdade que passo meus dias tentando os incrédulos, mas à noite costumo vir para os conventos como um humilde aprendiz”.
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James (John) Edward Hanauer (Damasco/Síria, 1850–1938, Jerusalém) foi autor, fotógrafo e cônego de São. Catedral de Jorge em Jerusalém. Hanauer nasceu de pais judeus e suíços bávaros em Damasco e batizado em Jaffa (então Síria otomana); ele se mudou para Jerusalém ainda jovem. Seu pai, Christian Wilhelm Hanauer, nasceu na Baviera, em 1810, mas foi para Jerusalém e converteu-se do judaísmo ao cristianismo em 1843. J.E. Hanauer foi contratado para Expedição Arqueológica de Carlos Warren na Transjordânia, como tradutor e fotógrafo assistente, o início de seu interesse em pesquisas sobre as antiguidades e folclore da região o levaram ao seu envolvimento com o Fundo de Exploração da Palestina. Seus artigos e correspondência foram publicados no Declaração Trimestral da sociedade britânica depois de 1881, que também publicou seu livreto Tabela das Eras Cristã e Maometana em 1904; ele recebeu equipamentos fotográficos de alta qualidade para complementar suas produções. Algumas de suas coleções de fotografias foram reproduzidas em sua obra de 1910, Caminhadas sobre Jerusalém; seu irmão e o filho também atuavam neste campo. Em 1907 lança o Folclore da Terra Santa: muçulmano, cristão e judeu, publicado em Londres. Hanauer morreu em sua casa em Jerusalém em 1938. Foi posteriormente enterrado no Cemitério Protestante de Jerusalém, Cemitério Monte Sião.
Fontes:
J.E. Hanauer. Mitos, lendas e fábulas da Terra Santa. Publicado originalmente em 1907. Disponível em Domínio Público.  
Biografia = https://en.wikipedia.org/wiki/J._E._Hanauer
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 25 de outubro de 2025

Sammis Reachers (Longa vida ao Rádio!)


Lá se vão uns meses, mas me recordo bem. No dia 02 de março houve um baita problema nas linhas de transmissão elétrica da Enel. Resultado? Diversos bairros de Niterói e São Gonçalo sem luz.

Abri bem a janela de minha pequena sala, que recebia uma agradável brisa – benesse do outono, pois o verão só tem entregue dissabores... À luz inócua de uma pequena vela, me deitei no sofá, praticamente no escuro. Naquela pacata modorra, me lembrei de um objeto. E fiz algo que me catapultou a 30, 40 anos no passado: peguei um pequeno radinho de pilha que meu pai me havia presenteado, coloquei lá suas duas pilhas AA... E me espantei de que ainda houvessem rádios.

Que doce langor, que sensação aconchegante e melancólica ouvir a sucessão de frases e músicas naquele radinho. Já se vão duas décadas de YouTube, Deezer, e quase três de arquivos MP3. É tanto, mas tanto tempo ouvindo só o que se quer, só o programado na playlist, que de repente ouvir uma rádio, com sua seleção de músicas aleatória (nem tanto, diria o jabá), desconstrutivamente além de meu controle, minha curadoria... Foi bom. Uma cura que me curou, erva antiga, ali no escurinho da sala, no sofá velho mas ainda macio.

Desde sua invenção, por Guglielmo Marconi (surfando nas invenções de outras bel’almas), ou melhor, desde sua efetivação prática, como o conhecemos, em 1922, e sua popularização a partir dos anos 1930, são diversas gerações construindo suas histórias com o rádio. Eu nasci em parte devido ao rádio: Meu pai, paranaense do interior, veio tentar a sorte no Rio com sonhos de ator e também de atuar no radialismo. Conheceu aqui minha mãe, aqui ficou e o resto é história...

Estas últimas gerações (Z, de nascidos entre 1997-2012, e Alpha, a partir de 2013 até cerca de 2025) são as primeiras em quase cem anos a não ter uma história minimamente sólida – ou nenhuma – com este meio de comunicação, primeiro a realmente unificar o Brasil. Já nasceram no Youtube, Spotify e na nuvem.

A liberdade, a libertação de poder criar sua própria playlist, suas músicas preferidas, e tocá-las na sequência em que quiser e onde quiser, com a miniaturização dos aparelhos sonoros, foi realmente revolucionária, e incontornável. Mas, passadas essas duas décadas da libertação, é preciso aceitar que o rádio não pode morrer (um parênteses, antes que você fale: não, os podcasts não substituíram os programas de rádio. Um podcast geralmente reúne gente descansada falando por TEMPO DEMAIS de coisas que caberiam num minimalismo não enjoativo. E enjoativo é um termo do qual os podcasts lutam para se libertar).

 Sua cultura, sua variedade, seu jogo de aleatoriedade/previsibilidade são salutares para o cérebro e o espírito. Depois do livro, essa salvação milenar, esse barco que nos ensinou e ensina a nadar, o rádio foi o primeiro construto em séculos a verdadeiramente debelar um bocado das chamas de solidão que costumam lamber o lombo e torrar a penugem de nossa espécie tombada.

Em dias de IA se aproximando da singularidade, de Alexa e Siri mimando os pequenos reis performáticos (você e eu, meu consagrado), escravos do breve e do boleto, é preciso proclamar: Longa vida ao rádio!
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Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes:

Geraldo Pereira (Um Mar Tão Grande)


Melhor que a criança, ninguém pode definir as coisas da natureza! A criança tem o sentimento livre, é livre para amar e liberada para não gostar!

“Um mar tão grande, com ondas tão pequenas!”, foi como Ana Carolina, a caçula aqui de casa, definiu a praia de Nossa Senhora do Ó. Admirou-se, nadando na imensidão atlântica, com a paz das águas que não se mexiam quase, naquele domingo de férias do mês de janeiro.

É assim mesmo a Praia do Ó, entre Pau Amarelo e Conceição. O mar vem a todo instante beijar as areias brancas e ainda limpas, mas o faz levemente, deixando o ósculo a se espraiar com o alvo das espumas. É amante à moda antiga, capaz de acariciar com a mão espalmada e a leveza de uma pluma, a face da amada.

No Ó, logo cedo, dobra o sino da paróquia, convidando a gente simples – os nativos e os veranistas, que forasteiros não são –, para a integralidade do contato com o Criador e a natureza. A Missa e depois a praia!

Um misto de mar e campo é a praia do Ó! O peixe chegando fresquinho em jangadas carcomidas de tantas viagens mar adentro, o camarão vermelhinho vendido nas portas contrasta com o gado pastando, pachorrento ou o beija-flor rabo-de-tesoura sugando rápido o néctar das papoulas e o mel das rosas. Lagostas aos montes, bulindo, quase vivas ainda ou o caju novinho, amarelo ou vermelho forte, fresco, ao gosto do poeta que foi Mauro Mota ou em passas, como gostamos nós, os mortais e incapazes do verso fácil.

Em dias de semana, em tempos de trabalho, aqui e ali, uma alma perdida toma o sol por padroeiro. Raramente uma mulher amorenada da tez e arabizada de face, como disse Gilberto Freyre, deixa o corpo mais livre. Aos sábados e domingos não precisa a caminhada, basta sentar na frouxidão da areia e admirar a passagem de gente toda bonita, de gente que é paisagem misturada à imensidão do mar.

Gente urbana curtindo o sol e gente rural com ares citadinos, vermelha feito um tição, gente que é do mar e é rural, catando a mariscada que na panela vai dá, ao coco ou ao azeite, prato pra toda a família.

(Texto escrito quando Ana Carolina, a filha caçula, tinha entre 3 e 5 anos de idade)
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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.
Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

José Feldman (Maya)


Foste uma amiga, uma irmã,
foste uma luz… o calor.
No despertar da manhã
foste simplesmente… amor.


 Há lembranças que se enraízam como árvores antigas: elas crescem, fazem sombra e, quando o vento passa, deixam cair uma folha cuja textura a gente reconhece sem precisar olhar. Maya é uma dessas árvores na minha memória — uma presença que ocupou quintais, ruas, abraços e um pedaço enorme do nosso coração. Nasceu em São Paulo, capital, em 1997. Veio da mão de uma amiga, entregue como quem confia a chave de casa a alguém que sabe cuidar. E cuidar, com ela, foi aprender a grande lição de que os animais chegam para ensinar a amar.

No começo éramos ruins em cuidar de cachorros; confessar isso hoje é confessar uma ingenuidade que me envergonha e encanta ao mesmo tempo. Eu cheguei a fazer um cartaz numa venda perto de casa: doava-se a cadela, tomada numa mistura de desespero e de inexperiência. Coloquei-o ali como se arrancar o problema resolvesse também o afeto que já começava a crescer. Na manhã em que um senhor apareceu interessado, Maya chorou como quem pede para não ser trocada por um ponto final. Chamou a manhã inteira — um choro que parecia questionar a nossa lógica.

Quando um senhor tentou se aproximar, ela adotou uma postura defensiva e quase atacou; ele, visivelmente assustado, desistiu. Foi nesse instante que entendemos: ela não era de dar, era de ficar. E ficamos. Mais tarde encontramos o senhor novamente — nas ruas do bairro — e, Maya, que na manhã anterior parecera pronta a atacar, lambeu a mão dele com a mesma simplicidade com que dá à vida um sopro de perdão. A natureza dela tinha essa contradição doce: firmeza e ternura, proteção e entrega.

Maya era grande, uma mistura nobre entre Akita e Pastora Belga Albina. Eu brincava que ela era uma “Akitora” — um nome que juntava o porte imponente com a pelagem clara que lembrava neve. Majestade era, aliás, uma palavra que lhe caía bem. Caminhava como quem foi feita para ocupar espaço: passos largos, cabeça erguida, olhar que media situações. E ao mesmo tempo que era imponente, era dócil como poucas criaturas que já conheci. As crianças do bairro a adoravam. Entravam no quintal para brincar, deitavam-se ao lado dela, corriam e riam, e Maya aceitava tudo com paciência de rainha misericordiosa.

Havia, porém, um ódio irrefreável por bêbados que passavam em frente ao portão. Não tolerava esse tipo de presença; o latido que soltava nessas ocasiões não era infantil, era uma reprimenda, quase uma convocação à ordem. Quando havia algazarra de cachorros na rua, era Maya quem impunha silêncio: bastava um latido seu que as vozes mais altas pareciam se dissolver. Em todas as casas por onde vivemos — Taboão da Serra, Curitiba, Ubiratã e finalmente Maringá — ela se tornou referência para os cães da região: Maya latia, e o bairro escutava.

Em Curitiba, teve um episódio que virou lenda entre os vizinhos. Numa época em que estávamos viajando, houve uma invasão: um ladrão subiu o muro da casa para roubar. Maya pegou esse ladrão no muro mesmo. Simples assim. Haviam rastos de sangue do ladrão no muro, com certeza no desespero de tentar se salvar. Não foi uma cena de filme; foi a realidade exemplar de uma cachorra que assumiu seu posto de guardiã com firmeza. O nome dela correu as ruas: “a Maya pegou o ladrão” — e a sensação foi de uma vitória coletiva. O mesmo ladrão, sabíamos depois, havia roubado outras casas naquela sequência de dias. Mas quando encontrou a Maya na frente, a história mudou. Ela era destemida quando necessário.

Era também uma mãe dedicada. Cruzou com um Border Collie em Curitiba e teve sete filhotes. A casa encheu de patas, de olhos curiosos e de filhotes que tinham fila para adotá-los. Ficamos com um deles; os outros foram-se rápido, porque quem a conhecia sabia que ter um filhote dela seria um privilégio. Ser mãe foi mais um dos papéis que ela desempenhou com naturalidade: havia nela uma mistura de disciplina e afeto, um código que os filhotes aprenderam rápido.

As caminhadas com ela eram, na verdade, passeios em que ela nos levava. Entre risos, sempre digo isso: era ela quem ditava o ritmo, quem escolhia o caminho, quem parava para cheirar a vida. Numa dessas ocasiões lembro de um dia em que ela disparou, e mesmo presa ao enforcador — que eu segurava firme — arrastei-me até colidir com uma árvore. Saí daquele encontro com o joelho raspado e o riso envergonhado, enquanto Maya, impassível, já queria seguir adiante. Era fiel: fazia o que queria, mas fazia junto.

Inteligente ao extremo, ela aceitava uma trapaça uma vez — talvez duas — mas não mais. Eu podia enganá-la uma vez, e ela ficaria olhando com curiosidade; na segunda vez, o olhar era de reprovação quase cômica, como se dissesse: “Qual é? Acha que sou tonta e caio outra vez?” Tinha um senso de justiça fantástico. Essa inteligência fazia dela não só uma companhia, mas uma interlocutora silenciosa: seus olhos avaliavam, ponderavam, perdoavam ou censuravam de modo claro.

O tempo foi passando e, por anos, Maya foi nossa sombra, nossa mesa redonda, nossa segurança. Em 2012 sua saúde começou a declinar. Ela ficou, aos poucos, mais quieta; os passeios diminuíram, as corridas tornaram-se raras, e ela passou a deitar mais tempo do que antes. Os sinais da velhice vinham com a mesma dignidade com que vivera: sem grande dramatização, apenas um corpo pedindo repouso. No dia 19 de abril de 2013, em Maringá, ela partiu: 16 anos que pareciam ter passado tão depressa e, no entanto, deixavam uma lenta bagagem de saudade.

Maya morreu de falência dos órgãos. Foi um fim que doeu, não apenas pela violência do corpo que se entrega, mas pela concretude da despedida depois de tantos anos de presença constante. Ela deixou descendentes: Fluffy, um Border Collie que morreu aos 10 anos em Ubiratã por doença desconhecida, e Mel, que viveu até 2019 e partiu aos 16 anos em Maringá. A linhagem dela seguiu, em parte, como quem carrega a tocha adiante.

Ainda hoje, quando fecho os olhos, a lembrança de Maya vem com cheiro de grama, de poeira da estrada e de pelo macio. Vejo sua cabeça grande encostada na minha perna, o olhar que pedia nada e dava tudo, as crianças correndo ao redor, e lembro do cartaz que pus na venda, uma prova da nossa inexperiência, e da lição que isso nos deu: não se dá alguém como Maya, ela se conquista e te conquista de volta.

Sinto falta das pequenas coisas: o jeito que ela levantava o olhar para pedir um pedaço do comida, como acompanhava cada passo quando estávamos no quintal, como deitava de lado para que as crianças subissem e se aninhassem. Sinto falta de vê-la chupando manga que pegava de nossa árvore onde moravamos, e não é que a danada pegava sempre as melhores mangas. Sinto falta das tardes que os nossos gatos brincavam com ela no quintal de casa, fazendo-a de boba. Geralmente vinha pra mim, chorosa, com um arranhado no corpo, de algum gato provavelmente. Sinto falta da segurança que a presença dela trazia nas noites, quando a casa parecia menor por fora mas completa por dentro. Sinto falta do respeito que impunha e do conforto que oferecia.

Em dias de vento forte, eu imaginava Maya no portão, vendo os bêbados passarem e decidindo, com um latido seco, que aquilo não ficaria ali. Em dias de sol, a via sendo acariciada pela luz, um corpo branco que brilhava como se tivesse pegado o próprio verão. E quando me lembro da sua inteligência e do seu humor — da soberania com que assumia as manhas e o humor com que aceitava as regras — percebo a sorte que tivemos em tê-la por perto.

Há uma saudade que é como um caminho conhecido: a gente passa por ele sempre que quer encontrar uma presença. Para mim, essa estrada leva direto a Maya. Às vezes, preso num dia comum, me surpreendo sorrindo ao lembrar da cena em que ela lambeu a mão do senhor que antes despertara seu instinto de defesa, ou do dia em que mordeu o ladrão ou ainda da vez em que a casa inteira ficou em silêncio por causa de um único latido. Essas memórias são pequenas vitórias contra o esquecimento.

Maya era muito mais do que a soma de suas ações; ela era um personagem que alterou nossa narrativa familiar. Nos ensinou a cuidar, nos policiou, fez-nos rir e, sobretudo, foi um porto. Depois que se foi, aprendemos a medir espaços: um banco na sala que parece maior, um canto do quintal que ecoa as patas, uma coleira que agora é só lembrança. A vida, com sua dureza e sua ternura, seguiu — mas com a marca dela cravada em cada gesto de cuidado que depois demos.

Escrever sobre Maya é trazer à tona não só a história de uma cadela exemplar, mas a própria história de quem aprendeu com ela. É confessar que já fomos melhores e piores, e que, diante de um animal assim, o melhor de nós e também a nossa impotência frente às vicissitudes da vida aparece. É também uma forma de agradecer: por ela ter escolhido ficar quando nossas mãos hesitaram, por ter sido dócil com as crianças, implacável com ladrões, e por ter ensinado que a lealdade é prática diária e silêncio cúmplice.

Hoje, quando falo dela, lembro-me da akitora, a raça que lhe denominei. Em seu nome, há reverência. Em qualquer lembrança, há saudade. Mas há também consolo: ela viveu muito, viveu bem, e deixou herança material e espiritual. Fluffy e Mel foram pedaços do legado; as histórias que lembramos continuam a circular; e dentro de nós, o modo de amar transformado por ela segue ativo.

Maya era majestade e afeto, cidade e quintal, guarda e companhia. Era o tipo de presença que nos ensina por imitação: você olha para ela e entende como se cuida, como se espera e como se protege. Sua vida foi um mapa de gestos que inaugurou muitos de nossos modos de agir com os animais. E a saudade — ah, a saudade — é essa árvore que inclino a cabeça para lembrar e, geralmente, chorar, um choro triste e um choro alegre. É também um carinho antigo que me aquece inesperadamente em dias frios.

Se penso em algo final que ela me deixou, é a convicção de que cuidar transforma. Fomos péssimos no início, aprendemos no caminho, e Maya foi sempre generosa com nossas falhas. Quando morreu, restou o aprendizado e o espaço que nunca mais seria igual. Hoje, aqui sentado, escrevo e vejo o sol atravessando a cortina, e, por um segundo, o brilho parece o mesmo do pelo dela. Sorrio, deixo a saudade me dominar — porque saudade, no final das contas, é prova de que houve amor, e que esse amor valeu cada passo que ela nos fez a dar ao seu lado.

Oh, minha querida Maya. Que saudade!!!
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, etc. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".

Fonte:
José Feldman. Minhas irmãs de quatro patas. Floresta/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul (em construção)
Fotos e montagem por JFeldman