Livro retrata modernidade da obra de Vinicius de Moraes
A obra sobre Vinicius, assinada pelo também poeta Eucanaã Ferraz, busca abranger com equilíbrio a poesia escrita e a poesia cantada, formadas pelas letras de música vinicianas.
Clássicos como "O Dia da Criação" e "A Bomba Atômica" são observados a partir das relações entre seus jogos internos, suas faturas e seus sentidos, em interpretações objetivamente elucidadoras de seus mistérios. O mesmo se dá na detida exegese que ganham os versos que fizeram de Vinicius o maior sonetista brasileiro do século 20.
Clássicos como "O Dia da Criação" e "A Bomba Atômica" são observados a partir das relações entre seus jogos internos, suas faturas e seus sentidos, em interpretações objetivamente elucidadoras de seus mistérios. O mesmo se dá na detida exegese que ganham os versos que fizeram de Vinicius o maior sonetista brasileiro do século 20.
Eucanaã Ferraz, poeta e professor de literatura da UFRJ, lista ainda discografia e bibliografia do grande poeta e das parceria com Tom Jobim, com quem criou alguns clássicos da bossa-nova, e com Baden Powell, com quem criou os afro-sambas.
Eucanaã Ferraz é autor de "Martelo" (1997), "Desassombro" (2002), "Rua do Mundo" (2004), entre outros livros de poesia. Organizou "Letra Só", livro de letras de Caetano Veloso (2002), e "Poesia Completa e Prosa", de Vinicius de Moraes (2003).
"Folha Explica Vinicius de Moraes"
Autor: Eucanaã Ferraz
Editora: Publifolha
Páginas: 114
Quanto: R$ 17,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha
Vinicius de Moraes (1913-80) é o caso típico do artista que, ao longo do tempo, foi sendo sobreposto à própria obra. Fala-se muito do poeta, mas lê-se insuficientemente sua poesia; sabemos de cor alguns de seus versos antológicos, mas não raro estancamos ali, sem seguir adiante, ou, se avançamos com a atenção devida, nem sempre nos arriscamos em textos menos consagrados; ao ouvir suas canções, somos tomados por uma tal beleza que nos parece desnecessário pensar sobre elas; repetimos uma série de opiniões de tal modo cristalizadas que parecem prescindir do confronto com a apreciação crítica da obra.
Acumulam-se casos sobre o personagem e, nesse sentido, Vinicius de Moraes é um poeta sob muitas histórias. Assim, chegar até ele exige atravessar a densa camada de narrativas que acabou por constituir uma espécie de mitologia: o homem e suas emoções desenfreadas, os muitos casamentos, os numerosos amigos, a boemia, seu desprendimento, seu romantismo, seus diminutivos carinhosos, seu desprezo pela gravata e por toda formalidade. Há os que se comovem e aderem ao mito; há os que o rejeitam. É necessário, no entanto, muito mais que isso.
Sem grande esforço, podemos considerar que tal mitologia resulta simplesmente da popularidade de Vinicius, e que esta é menos uma conseqüência de seu trabalho como poeta que o resultado de sua atuação como letrista. Em grande medida, a avaliação está correta. Valeria a pena observar, porém, que a popularidade foi o resultado excelente de um projeto interno da obra de Vinicius, que refez o curso inicial de sua poesia --marcada por certo isolamento aristocrático de ordem intelectual e moral-- em direção a uma abertura afetiva e estética, próxima de seu tempo e de sua verdadeira inclinação para o diálogo.
Observando-se algumas opções dessa poesia já madura e decididamente moderna, e situando-a no quadro mais amplo da modernidade, concluímos que a poética de Vinicius preza mais a clareza que o hermetismo; não há uma busca pela inovação formal ininterrupta, mas a incorporação de formas e temas caros à tradição lírica ocidental; a fuga da realidade convive com o apreço pela experiência comum; o distanciamento da língua usual não impede, como contrapartida, a absorção de traços coloquiais, do vocabulário e da sintaxe correntes.
Seria um engano, porém, inferir que tais escolhas redundam num simples pacto de reconhecimento com o leitor, como se nos poemas nos assegurássemos do já sabido; ao contrário, a palavra de Vinicius instala um necessário processo de singularização das coisas, do tempo, do espaço, dos afetos, exigindo, por isso, uma percepção aguda e demorada. Mas também é certo que essa palavra, tanto no poema quanto na canção, reinstala o mundo de modo tão generoso e acolhedor que logo nos abrigamos nele, sem nos darmos conta, por vezes, de que estamos dentro de uma invenção, de uma linguagem para sempre nova, na qual predominam a imaginação e a transformação. E, de fato, corremos o risco de fruir apenas o que na paisagem nos parece confortável, sem atentar para o que ali é estranhamento, novidade, construção. Este risco, porém, é a conseqüência, ainda que não pretendida, de uma série de fatores e opções que alcançaram o seu ponto máximo de realização. Poetas que fizeram escolhas opostas às de Vinicius e chegaram à excelência ambicionada correram outros riscos. Enfim, toda leitura exige que se desconfie da comodidade.
Se o encaminhamento para a canção popular não era previsível, foi, no mínimo, bastante coerente com a atuação artística e intelectual de Vinicius de Moraes. E se a partir daí tudo se converteria em popularidade, sua figura tornou-se mais complexa, na medida em que frustrava expectativas, desmontava hierarquias socioculturais e fundia estratos diferenciados da cultura. A bossa nova e seus desdobramentos não tardariam, no entanto, a ratificar o alcance das escolhas de Vinicius, tendo em vista o quanto a canção popular incorporaria uma inteligência sofisticada, em diálogo com as experiências antes restritas à literatura. Hoje, quando avaliamos em conjunto a música brasileira e acumulamos um número expressivo de trabalhos críticos e teóricos voltados para a sua compreensão, praticamente perdemos de vista o destemor do poeta ao se converter em letrista e os juízos que despertou então.
A popularidade do compositor-cantor deve-se ainda, é preciso acrescentar, à sua presença em shows e nos meios de comunicação de massa, sobretudo nos anos 70. À época, quando a chamada MPB esteve intimamente associada ao movimento estudantil --alvos permanentes da vigilância dos órgãos de repressão da ditadura militar-- Vinicius, ao lado de seu parceiro Toquinho, lotava os auditórios universitários. Boates, cervejarias e casas de espetáculo nacionais e internacionais também faziam parte do circuito da dupla, que instaurava, em meio às sombras daqueles tempos, um rastro de liberdade e alegria por onde passasse.
Este breve livro tenta uma visão equilibrada, focalizando a palavra do poeta nos poemas (capítulo 1) e nas canções (capítulo 2). No primeiro caso, abrindo mão de quadros amplos, fases, influências, vão-se examinar determinadas constantes e/ou variantes temáticas e formais, privilegiando-se a leitura de poemas. No segundo, a atenção estará voltada para determinados traços caracterizadores do cancioneiro de Vinicius, com destaque para os momentos que solidificaram sua prática composicional. A abordagem interpretativa privilegia, desse modo, pequenos sinais, elementos mínimos nos quais esperamos reconhecer alguns marcos de entrada na vasta obra de Vinicius. O convite, afinal, foi ele próprio quem nos fez, a todos, em "Poética (II)": "Entrai, irmãos meus!".
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