ENTES E DUENDES DOS MEUS CINEMAS
Dentre tantas alegrias a vida reservou-me uma dor: ver a demolição de muitos cinemas: Rian, Ipanema, Pirajá, Astória, Azteca, aqueles dois da Praia do Flamengo, Alvorada, Ritz, Metro Copacabana, Metro Tijuca. Tantos... Demo-lição. Será o ato de demolir uma lição do demo, o (im) popular demônio? Uma demo-lição? Talvez. O demônio agita-se oculto no que tomba para ser trocado por algo de menor sentido. E cinema que acaba é alegria que roubada.
Em cada cinema que morreu eu vi, no último dia da demo-lição os olhos enormes de Maureen O’Hara a chorar saudades da beleza; a sedução de Greta Garbo; os ideais de Glauber, Cacá Diégues e Davi Neves; a cultura cinematográfica de Walter Lima Júnior; o mau humor do Arnaldo Jabor: Sinto a perda da pele e dos olhos das faces e das costas de Ingrid Bergman e ouço o grito da garotada quando o mocinho, enfim, superou a maldade do bandido. Sim, os fantasmas das atrizes e as luzes dos ideais dos cineastas perduram na atmosfera sofrida de um cinema que tomba comido pela voragem da especulação imobiliária ou substituído por salas pequeninas, telas apertadas, cheiro de desinfetante e o irritante barulho dos sacos de pipoca que a má educação contemporânea timbra em mastigar durante a projeção...
Pode ser que antes de cair a última pedra de um cinema que tomba, a alma dos celulóides dele escape de madrugada e possa haver um grande e generoso baile com quem habitou suas telas ou poltronas com emoção. Eu posso dançar a valsa com Ingrid Bergman e roçar, deslumbrado, os dedos em suas costas largas e sedutoras. Você poderá namorar à vontade Gary Grant, ó jovem cinqüentona de meus tempos, ou consolar o Marlon Brando pela perda machucante da filha. Quanta gente que ama cinema poderá se ver, rever, trocar idéias, o Paulo Perdigão com a Paulette Goddard. O Fernando Ferreira com o Frank Capra a conversar. Humberto Mauro a discorrer, generoso, sobre o que foi sentar as bases do cinema no Brasil. Glauber Rocha a proclamar sua última tese sobre as afinidades entre o céu e o inferno como síntese verdadeira de uma dualidade falsa que sempre atormentou a humanidade. Orizon Muniz poderá enfim namorar em paz a Ruth Roman. Arlindo Coutinho rever películas com a Alberta Hunter, João Luiz Albuquerque mudar o fim de "Casablanca", vale dizer, tudo o que sentimos de bom e melhor pelo cinema e seus personagens de sonho e realidade poderemos encontrar no grande baile noturno das últimas horas de cada um, onde todos juntos dançaremos ao som do La Valse de Ravel.
Só esta doce alegria imaginária compensa a dor de ver a cidade grande engolir os cinemas de meu amor e da nossa nostalgia.
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