Como já tive ocasião de contar (Aventura do Cotidiano - 4, em "A Falta que Ela me Faz"), eram três solteirões que viviam com o pai viúvo naquela casa do interior de Minas. Um dia o mais novo, e já não tão novo, conheceu uma moça, gostou da moça, acabou se casando com a moça.
Casou e mudou.
Tempos depois, indo visitar o pai e os irmãos, não escondeu seu entusiasmo:
— Gente, vocês não sabem como mulher é bom! Serve para tanta coisa...
Não deixa de ser uma definição do casamento, como era concebido antigamente. Hoje em dia, prevalece mais a que decorre do comentário feito por aquele outro, depois que se casou:
— Então quer dizer que casamento é isso? Ela lava e eu enxugo?
— Pois comigo agora vai ser diferente — pensava ela, ao deixar o trabalho. Em vez de ir direto para casa fazer o jantar do marido, foi ao cabeleireiro mudar o penteado.
Depois de vários meses sem cozinheira, chegara enfim o dia de não encostar a barriguinha no fogão, como ele costumava gracejar, aliás sem graça nenhuma
Em vão ela havia tentado avisar, telefonando-lhe para o escritório, que queria jantar fora naquela noite: não está na sala, está em reunião, ainda não chegou, já saiu. Onde diabo estaria? Nenhuma ponta de ciúme chegou a se manifestar na sua irritação por não encontrá-lo: parece até que está fugindo de mim, pensou apenas, indo finalmente para casa.
— Eu hoje quero jantar fora — foi declarando, categórica, quando ele lhe abriu a porta.
— Onde você andou? — perguntou ele, dando-lhe passagem.
— Fui ao cabeleireiro. E você? Tentei te avisar o dia todo.
— Me avisar o quê?
— Que eu queria jantar fora.
— Vim mais cedo para casa. Como não te encontrei...
— Nem podia encontrar, pois eu estava no cabeleireiro.
— Eu sei, você já falou. Não te encontrei, e estava com fome...
Que é que ele queria dizer? Que já havia jantado?
— Jantado, propriamente, não. Como estava com fome, fritei um ovo, e tinha um resto de arroz na geladeira... Não achei mais nada.
— Não achou nada porque eu não vim fazer o jantar.
— Estou sabendo. Foi ao cabeleireiro.
— Isso mesmo. Fui e hoje eu quero jantar fora — insistiu ela: — Não venha me dizer que você não vai me levar só porque comeu um ovo.
— Calma, minha filha — fez ele, evasivo: — Jantar onde? Você nem acabou de chegar da rua e já quer sair de novo. Que diabo de penteado é esse?
O comentário final foi a gota d'água — ela, que esperava dele um elogio pelo penteado.
— Não pensa que você me leva na conversa — protestou, indignada: — Eu quero saber se vai me levar para jantar. Se não vai, diga logo, que eu vou sozinha.
Um tanto temerária, aquela afirmativa, admitiu ela para si mesma: jantar sozinha como? onde? com quem? e pagar com quê?
— Estou com fome... — choramingou, para ganhar tempo.
Ele fora sentar-se diante da televisão, indiferente, enquanto ela ficava por ali, lamuriando a sua fome.
— Vê se encontra aí qualquer coisa para comer, como eu fiz — ele se limitou a dizer.
Ela botou as mãos na cintura e sacudiu com raiva a cabeça, ao risco de desmanchar o penteado:
— Olha bem para mim e vê se me acha com cara de arroz com ovo.
— Ovo, só tinha um — ele ria, o cínico! — E o arroz já era.
Num impulso de revolta, ela se voltou para a porta:
— Não preciso de você. Na casa da mamãe deve ter sobrado alguma coisa do jantar.
— Ridículo — ele se limitou a suspirar, e voltou a se distrair com a televisão.
Em vez de sair, ela partiu batendo os saltos em direção à cozinha. Pôs-se a remexer ruidosamente em tudo, devassando a geladeira, abrindo latas e destampando panelas. Acabou encontrando duas bolachas e, no armário sobre a pia, uma simples, única e solitária cebola. Começou a descascá-la, já em lágrimas, soluçando alto para que ele ouvisse lá da sala. Em pouco ele vinha bisbilhotar:
— Que é que você está fazendo? Está chorando por quê? Por causa dessa cebola?
— Não seja estúpido — reagiu ela, enxugando as lágrimas com as costas da mão: — Estou chorando porque estou sem comer! Quando me casei com você jamais pensei que ainda ia acabar passando fome.
— Amanhã te levo para jantar fora — concedeu ele.
— Não preciso de você. Se eu quiser, eu sei como encontrar alguém que me leve ainda hoje.
O sorriso irônico dele não animava a prosseguir nesse caminho: não encontraria ninguém, ainda mais assim de repente — nem ao menos uma amiga tão infeliz quanto ela. Descobrindo no armário um tablete de caldo de carne, animou-se e com deliberação pôs-se a preparar uma sopa de cebola, enquanto ele voltava para a televisão.
Levou a bandeja com a sopa para tomar na sala, com as duas bolachas, como se fosse o melhor dos jantares, esperando que o cheiro que dela emanava, realmente apetitoso, provocasse nele alguma fome. Se tal aconteceu, ele não deu mostras: em pouco desligava a televisão e, espreguiçando, ia para o quarto dormir.
Como era de esperar, passaram a noite de costas um para o outro. Pela manhã nenhum dos dois tomou a iniciativa de romper o silêncio. E em silêncio partiu cada um para o seu trabalho. O que mais doía nela era o detalhe do penteado-que fez questão de desfazer durante o banho.
Ao longo do dia não se telefonaram, como costumavam fazer.
À tarde, quando ela regressou, teve a surpresa de sua vida: encontrou a mesa posta, com o que havia de melhor a esperá-la para o jantar dos dois. Até mesmo, como sobremesa, aquela tortinha de mil-folhas de que gostava tanto.
Ao lado do prato, um bilhete: "Para que você hoje não passe fome."
— Como é que você fez tudo isso? — exclamou, ao vê-lo surgir do quarto.
— Encostando a barriguinha no fogão.
— Encomendou no restaurante — ela concluiu, encantada.
Ele a abraçou, afagou-lhe os cabelos:
— Ficam tão mais bonitos assim, ao natural.
Findo o jantar, ele quis levá-la em seguida para o quarto, mas ela pediu que esperasse: ia primeiro tirar a mesa e lavar os pratos.
— Eu lavo e você enxuga — disse, com doçura. Mais tarde, já na cama, ao tê-la nos braços, ele admitiria para si mesmo:
— Como mulher é bom! Serve para tanta coisa...
Fonte:
SABINO, Fernando. No Fim Dá Certo. Rio de Janeiro: Record, 1998, Disponível em http://www.releituras.com/fsabino_elalava.asp
Casou e mudou.
Tempos depois, indo visitar o pai e os irmãos, não escondeu seu entusiasmo:
— Gente, vocês não sabem como mulher é bom! Serve para tanta coisa...
Não deixa de ser uma definição do casamento, como era concebido antigamente. Hoje em dia, prevalece mais a que decorre do comentário feito por aquele outro, depois que se casou:
— Então quer dizer que casamento é isso? Ela lava e eu enxugo?
— Pois comigo agora vai ser diferente — pensava ela, ao deixar o trabalho. Em vez de ir direto para casa fazer o jantar do marido, foi ao cabeleireiro mudar o penteado.
Depois de vários meses sem cozinheira, chegara enfim o dia de não encostar a barriguinha no fogão, como ele costumava gracejar, aliás sem graça nenhuma
Em vão ela havia tentado avisar, telefonando-lhe para o escritório, que queria jantar fora naquela noite: não está na sala, está em reunião, ainda não chegou, já saiu. Onde diabo estaria? Nenhuma ponta de ciúme chegou a se manifestar na sua irritação por não encontrá-lo: parece até que está fugindo de mim, pensou apenas, indo finalmente para casa.
— Eu hoje quero jantar fora — foi declarando, categórica, quando ele lhe abriu a porta.
— Onde você andou? — perguntou ele, dando-lhe passagem.
— Fui ao cabeleireiro. E você? Tentei te avisar o dia todo.
— Me avisar o quê?
— Que eu queria jantar fora.
— Vim mais cedo para casa. Como não te encontrei...
— Nem podia encontrar, pois eu estava no cabeleireiro.
— Eu sei, você já falou. Não te encontrei, e estava com fome...
Que é que ele queria dizer? Que já havia jantado?
— Jantado, propriamente, não. Como estava com fome, fritei um ovo, e tinha um resto de arroz na geladeira... Não achei mais nada.
— Não achou nada porque eu não vim fazer o jantar.
— Estou sabendo. Foi ao cabeleireiro.
— Isso mesmo. Fui e hoje eu quero jantar fora — insistiu ela: — Não venha me dizer que você não vai me levar só porque comeu um ovo.
— Calma, minha filha — fez ele, evasivo: — Jantar onde? Você nem acabou de chegar da rua e já quer sair de novo. Que diabo de penteado é esse?
O comentário final foi a gota d'água — ela, que esperava dele um elogio pelo penteado.
— Não pensa que você me leva na conversa — protestou, indignada: — Eu quero saber se vai me levar para jantar. Se não vai, diga logo, que eu vou sozinha.
Um tanto temerária, aquela afirmativa, admitiu ela para si mesma: jantar sozinha como? onde? com quem? e pagar com quê?
— Estou com fome... — choramingou, para ganhar tempo.
Ele fora sentar-se diante da televisão, indiferente, enquanto ela ficava por ali, lamuriando a sua fome.
— Vê se encontra aí qualquer coisa para comer, como eu fiz — ele se limitou a dizer.
Ela botou as mãos na cintura e sacudiu com raiva a cabeça, ao risco de desmanchar o penteado:
— Olha bem para mim e vê se me acha com cara de arroz com ovo.
— Ovo, só tinha um — ele ria, o cínico! — E o arroz já era.
Num impulso de revolta, ela se voltou para a porta:
— Não preciso de você. Na casa da mamãe deve ter sobrado alguma coisa do jantar.
— Ridículo — ele se limitou a suspirar, e voltou a se distrair com a televisão.
Em vez de sair, ela partiu batendo os saltos em direção à cozinha. Pôs-se a remexer ruidosamente em tudo, devassando a geladeira, abrindo latas e destampando panelas. Acabou encontrando duas bolachas e, no armário sobre a pia, uma simples, única e solitária cebola. Começou a descascá-la, já em lágrimas, soluçando alto para que ele ouvisse lá da sala. Em pouco ele vinha bisbilhotar:
— Que é que você está fazendo? Está chorando por quê? Por causa dessa cebola?
— Não seja estúpido — reagiu ela, enxugando as lágrimas com as costas da mão: — Estou chorando porque estou sem comer! Quando me casei com você jamais pensei que ainda ia acabar passando fome.
— Amanhã te levo para jantar fora — concedeu ele.
— Não preciso de você. Se eu quiser, eu sei como encontrar alguém que me leve ainda hoje.
O sorriso irônico dele não animava a prosseguir nesse caminho: não encontraria ninguém, ainda mais assim de repente — nem ao menos uma amiga tão infeliz quanto ela. Descobrindo no armário um tablete de caldo de carne, animou-se e com deliberação pôs-se a preparar uma sopa de cebola, enquanto ele voltava para a televisão.
Levou a bandeja com a sopa para tomar na sala, com as duas bolachas, como se fosse o melhor dos jantares, esperando que o cheiro que dela emanava, realmente apetitoso, provocasse nele alguma fome. Se tal aconteceu, ele não deu mostras: em pouco desligava a televisão e, espreguiçando, ia para o quarto dormir.
Como era de esperar, passaram a noite de costas um para o outro. Pela manhã nenhum dos dois tomou a iniciativa de romper o silêncio. E em silêncio partiu cada um para o seu trabalho. O que mais doía nela era o detalhe do penteado-que fez questão de desfazer durante o banho.
Ao longo do dia não se telefonaram, como costumavam fazer.
À tarde, quando ela regressou, teve a surpresa de sua vida: encontrou a mesa posta, com o que havia de melhor a esperá-la para o jantar dos dois. Até mesmo, como sobremesa, aquela tortinha de mil-folhas de que gostava tanto.
Ao lado do prato, um bilhete: "Para que você hoje não passe fome."
— Como é que você fez tudo isso? — exclamou, ao vê-lo surgir do quarto.
— Encostando a barriguinha no fogão.
— Encomendou no restaurante — ela concluiu, encantada.
Ele a abraçou, afagou-lhe os cabelos:
— Ficam tão mais bonitos assim, ao natural.
Findo o jantar, ele quis levá-la em seguida para o quarto, mas ela pediu que esperasse: ia primeiro tirar a mesa e lavar os pratos.
— Eu lavo e você enxuga — disse, com doçura. Mais tarde, já na cama, ao tê-la nos braços, ele admitiria para si mesmo:
— Como mulher é bom! Serve para tanta coisa...
Fonte:
SABINO, Fernando. No Fim Dá Certo. Rio de Janeiro: Record, 1998, Disponível em http://www.releituras.com/fsabino_elalava.asp
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