As fadas... eu creio nelas! Umas são moças e belas, Outras, velhas de pasmar... [...] Quem as ofende...cautela! A mais risonha, a mais bela, Torna-se logo tão má, Tão cruel, tão vingativa! É inimiga agressiva, É serpente que ali está!
Antero de Quental
Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem? Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem?
Comecemos por afirmar que uma das principais marcas que ali circulam é o medo. Os nossos e eternos medos, quer individuais, quer coletivos. E aqui vale lembrar Jean Delumeau, na obra da História do medo no ocidente: .... não só os indivíduos tomados isoladamente, mas também as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidos num diálogo permanente com o medo.
Vivendo, portanto, assolado pelo medo, o homem procura uma compensação que o liberte dessa agonia.
É preciso que encontre respostas que preencham as angustiantes lacunas do seu dia-a-dia. É então que, movido pela necessidade de sonhar uma outra História, o homem cria suas utopias pois, como ensina Hilário Franco Jr., [....] utopia é negação de um presente medíocre e sufocante, é espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso a perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo.
Neste final de século – e de milênio –, quando heranças quer de um passado remoto, quer de um passado próximo misturam-se aos velozes progressos de uma moderna tecnologia, será necessário rever a História e repensar as utopias de ontem para entender os sonhos de hoje. E só assim seremos capazes de ter um amanhã.
Estudar as utopias de uma sociedade é lidar com o desejo dessa sociedade; é trabalhar com a falta e a esperança que circulam em seu imaginário. É preciso, então, revisitar a História que ali se viveu e ouvir as histórias que ali se contavam. E para tal há que se recorrer a determinadas pistas: aquelas deixadas pelos historiadores e pelos cronistas, pelos pintores e escultores, pelos poetas, romancistas e contistas.
Sendo assim, vamos encontrar nos contos de fada 3 as utopias que respondem aos eternos desejos da humanidade, pois como afirma Karl Mannheim, na obra Ideologia e Utopia,
Quando a imaginação não encontra sua satisfação na realidade existente, busca refúgio em lugares e épocas desiderativamente construídos. Mitos, contos de fada, promessas supraterrenas da religião, fantasias humanísticas, romances de viagens têm sido expressões, em contínua mutação, do que estava faltando na vida real. (o grifo é nosso)
Em busca da abundância, da justiça e do amor – sonhos que embalam o imaginário social através dos tempos –, as personagens dos contos de fada vivem suas histórias que funcionam como respostas aos eternos desejos da humanidade. E por isso os contos tornam-se atemporais, como ensina Pierre Mabille:
Os contos, repetidos de boca em boca, de geração a geração, seguem uma trajetória comparável à de um eco gigante que se prolonga ao infinito.
Assim entendidos, os contos de fada constituem documentos onde se inscrevem nossos medos e os mecanismos para neutralizá-los – as utopias. São eles que agora revisitaremos.
Contemporâneo de Luis XIV, o Rei-Sol, Charles Perrault (1628-1703) publica as suas Histórias ou contos dos tempos passados com algumas moralidades em 1697. A obra consta de oito contos de prosa: A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As Fadas, A Gata Borralheira, Henrique de Topete e O Pequeno Polegar. Cada um é encerrado com uma moralidade em verso. No frontispício, a obra apresenta uma gravura com a inscrição Contes de ma mère L'Oye (Contos da Mamãe Ganso).
O tempo é de contrastes na França de então; ao lado do extremo fausto da corte de Versailles, os camponeses vivem em alarmante penúria, como salienta Robert Darnton:
Para a maioria dos camponeses, a vida na aldeia era uma luta pela sobrevivência, e sobrevivência significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha da pobreza variava de lugar para lugar, de acordo com a extensão de terras necessária para pagar impostos, dízimos e tributos senhoriais; separar grãos suficientes para plantar no próximo ano;e alimentar a família.
Esse universo de fome e miséria inscreve-se em contos como O Gato de Botas e o O Pequeno Polegar. Para ajudar o terceiro filho de um pobre moleiro falecido, o Gato usa das mais refinadas trapaças e consegue para seu dono até um casamento com a filha do rei. Já o Polegar – sétimo filho de um lenhador também pobre –, após ser abandonado com seus irmãos, na floresta, pelos pais, consegue um lugar na corte, como correio, graças às botas que rouba do ogre; lá enriquece e emprega também toda a família. A lição dos contos é clara: num mundo onde as injustiças sociais e as diferenças econômicas são flagrantes, é preciso ser esperto para burlar o esquema e vencer.
Também nos contos dos irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863; Wilhelm, 1786-1859) vamos encontrar idênticas situações em que o fraco (pobre) vence o forte (rico): são situações que alimentam o desejo de prosperidade e de fartura das classes menos favorecidas. Desejo este substantivado na utopia da Terra da Cocanha à qual os Grimm dedicam um conto homônimo. Nessa terra de abundância, retrato do «mundo às avessas», ninguém precisa trabalhar, pois «um rio de mel escorria como água de um vale profundo no cume de uma montanha muito alta» e «em um pátio próximo, se achavam outros quatro cavalos debulhando milho e duas cabras acendiam um fogão, enquanto uma vaca assava pães no forno».
O ano da publicação dos Contos de criança e do lar dos irmãos Grimm é de 1812 e vamos encontrar a Europa vivendo sob o signo do Romantismo. Os contos fazem parte, portanto, de uma literatura que reflete as mudanças rápidas e profundas que a sociedade de então experimentava. Viajando pela Alemanha, os dois irmãos vão colhendo de diversos narradores as histórias que circulavam na boca do povo, cheias de tradições e, ao mesmo tempo, cheias de sonhos de renovação.
Quando as narrativas elegem o terceiro irmão (o bobo) – ou ainda um simples caçador (como em Os dois irmãos) – para protagonizar a aventura e finalizá-la com sucesso (muitas vezes casando-se com a filha do rei, como no conto citado), parecem responder a determinadas expectativas do público. Num mundo que vivia os ideais da Revolução Francesa, os contos apontam para a necessidade de revisão de atitudes despóticas da nobreza e da aristocracia: mais importantes que a força e a linhagem são a bondade, a coragem e a temperança. E para confirmar tais lições, as narrativas incorporam características daquele momento literário. A vivência da Natureza, por exemplo, tão a gosto do espírito romântico, passa a constituir, nos contos de Grimm, importante marca para qualificar o herói. Lugar de refúgio ou de desamparo, a Natureza propicia muitas vezes ao personagem cenas de união e de compensação, como acontece com o caçador de Os dois irmãos. Auxiliado pela lebre, pelo urso, pelo lobo e pela raposa, casa-se com a filha do rei. É certo que tal união subverte a ordem, mas é muito bem aceita por um público que vive o sonho de «liberdade, igualdade e fraternidade». E esse final feliz alimenta, sem dúvida, a ilusão de ascensão econômica e social das classes menos favorecidas.
Mas se sonha com a ascensão social – desejo individual –, o homem sonha também com uma sociedade equilibrada, com uma terra regida por um soberano justo. Recorrendo a certos perfis já cristalizados no imaginário do ocidente cristão (como o Rei Arthur, o Imperador Carlos Magno, e até o fora-da-lei Robin Hood), as narrativas vão construindo heróis que satisfazem o eterno desejo das sociedades: o de um pai protetor.
Retrato da perfeição física e moral, o herói conta muitas vezes com a ajuda sobrenatural (de fadas, gnomos, objetos mágicos e até de animais encantados, como já salientamos anteriormente) para vencer o inimigo (muitas vezes também sobrenatural, como bruxas, ogres, anões malvados, dragões) e qualificar-se para ocupar o lugar de soberano. É o que acontece em Os dois irmãos. Assim como Arthur, personagem das histórias da Távola Redonda, o nosso herói – um caçador – é um predestinado para retirar a espada mágica de uma pedra:
Lá no alto, havia uma igreja e no altar havia três taças, cheias até a borda, e ao lado havia uma inscrição que dizia: «Quem esvaziar estas taças será o homem mais forte da terra e poderá brandir a espada que está enterrada ao lado de fora da porta». O caçador não bebeu. Saiu e achou a espada enterrada, mas não conseguiu arredá-la do lugar. Voltou e esvaziou as taças. Aí ficou bem forte, conseguiu tirar a espada do chão e manejá-la à vontade.
De posse da arma, luta com o dragão que todos os anos exigia uma donzela imaculada, mata-o e ganha a mão da princesa, sendo em seguida proclamado herdeiro do rei. Esse final feliz – que é muitas vezes repetido nos contos – aponta para o nascimento de uma sociedade mais justa. Coroado, o herói reina por muito tempo, com muita sabedoria. Cumpre-se utopia da justiça.
Mas se o dragão é desafio constante ao jovem herói, é verdade que há outro oponente que se lhe apresenta igualmente tenebroso: a bruxa. Figura diabólica, a bruxa espalha malefícios que atingem a todos: a nobres, a camponeses e a crianças perdidas na floresta.
Através dos séculos – através dos contos –, detalhes anatômicos vão sendo acrescentados a um retrato de mulher que o desejo rejeita: ela é velha, é feia, corcunda, sua pele é enrugada aponteada de verrugas. Seus dedos de ossos longos completam-se com unhas tortas e ponteagudas. Demonizada, ela representa o ser marginal que a ordem rejeita. Ela opõe-se à fada que o desejo almeja. Mas como chegamos a esses perfis tão distintos?
Ao revisitarmos a literatura dos séculos XII e XIII – principalmente aquela que aflora a chamada matéria de Bretanha, de substrato celta –, aprendemos, através do exame de alguns perfis femininos (como Isolda, Viviane, Morgana e Mab), que fada e bruxa são representações das duas faces de uma mesma história da mulher. Como grande fiandeira, reeditando o fazer de Láquesis, Cloto e Átropos, as três parcas da tradição clássica, a fada é aquela que tece o destino (fatum) do homem. Como a sábia alquimista que prepara mezinhas e conduz os partos, a bruxa é aquele agente perigoso que se atreve a penetrar nos segredos da ciência, invadindo, assim, os domínios masculinos. É na fala de Mercúrio, personagem da obra Romeu e Julieta de Shakespeare que melhor vemos apresentada essa bipolaridade:
Pelo que vejo, foste visitado Pela rainha Mab. Ela é a parteira Entre as fadas. E é tão pequenininha. Como a ágata do anel que os conselheiros usam no indicador.[....] É essa mesma Mab que, de noite, Entrança as crinas sujas dos cavalos E dá-lhes nós feéricos, os quais Enfeitiçam aqueles que os desatam. Ela é bruxa que aperta as raparigas Que se deitam de papo para o ar, E lhes ensina na primeira vez Como se hão de portar para agüentar a carga.
Com o passar dos séculos, cada uma dessas facetas vai ganhando autonomia, e fada e bruxa passam a ser representações distintas e antagônicas. Na obra dos Grimm, por exemplo, são abundantes os retratos de fadas e de bruxas e no conto João e Maria a descrição da bruxa muito se aproxima daquelas que foram feitas na Baixa Idade Média – séculos XIV e XV –, período em que a caça às bruxas atingiu o apogeu:
A velha, porém, apenas fingira ser boa. Na verdade era uma perversa feiticeira, que fizera aquela casa de pão doce, bolos e açúcar-cande com a intenção de atrair crianças. Quando uma criança caía em seu poder, ela a matava, cozinhava e devorava, pois, para ela, não havia um prato mais delicioso do que carne de criança.
As bruxas têm os olhos vermelhos e enxergam muito mal, mas por outro lado, têm um faro igual ao de certos animais e, mesmo sem vê-lo, percebem quando um ser humano se aproxima.
Mas afinal, que motivos levaram uma sociedade – como a cristã medieval, da qual herdamos vários tabus e muitos medos – a alimentar esse amedrontador perfil feminino? É bem verdade que o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos. Por ter sido um constante enigma para o homem, a mulher sempre o amedrontou, como salienta Jean Delumeau:
Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Como não temer um ser que nunca é tão perigoso como quando sorri?
Mas se é verdade que o medo da mulher não é invenção do ascetismo cristão, é certo também que foi o cristianismo que muito cedo o integrou em seu ideário e trabalhou esse espantalho até o limiar do século XX. Se o indecifrado existe, se incomoda e amedronta, é preciso buscar um motivo que justifique sua perseguição e até, se possível, sua neutralização – a mais perfeita que se puder. E no que se refere à mulher, a Europa da Baixa Idade Média viveu, com toda violência, uma clima favorável a essa cena. É Jeffrey Richards, na obra Sexo, desvio e danação, quem sintetiza:
As pessoas do período medieval viviam num mundo de medo: medo de impostos, doença, guerra, fome, da morte e do inferno. Era uma sociedade que acreditava no sobrenatural,no poder das forças das trevas em ação de Satã e de seus demônios no mundo.Acreditava também na bruxaria, que era uma explicação conveniente tanto para as catástrofes naturais súbitas (fome, epidemias,tempestades, enchentes, destruição de safras e animais) quanto para problemas familiares recorrentes, tais como impotência,infidelidade, mortalidade infantil. [....]
As acusações de bruxaria eram geralmente levantadas por vizinhos indispostos contra mulheres específicas: as velhas, as solitárias, as impopulares, as neuróticas, as insanas, as mal-humoradas,as promíscuas, as praticantes de medicina popular ou parteiras, mulheres que, por motivos variados, haviam se tornado alvo do ódio local. [....]
As bruxas satânicas do final da Idade Média eram, assim, os bodes expiatórios perfeitos, uma minoria inventada, uma imagem compósita do mal, pronta para ser usada e aplicada a qualquer pessoa que discordasse dos dogmas da Igreja e que, pelo uso da tortura e do terror, se tornava realidade.
Autos de fé são comuns e a execução de bruxas na fogueira traz o aval das Escrituras: «Não deixarás viva uma feiticeira», diz o Êxodo, 22, v. 18. Infração cometida, castigo imposto. Castigo que se eterniza através dos séculos e que também se inscreve no universo dos contos de fada. É o que acontece, por exemplo, em Os dois irmãos, de Grimm, com a bruxa da floresta que encantava a todos que por lá passassem:
– Sua macaca velha! Devolve a vida imediatamente a meu irmão e a todas as criaturas que estão aí, ou então vai para o fogo!Ela pegou uma varinha e tocou as pedras. O irmão e os animais voltaram à vida. E muitos outros homens também, mercadores, artesãos, pastores. Todos se levantaram,agradeceram ao caçador e foram para casa. Os gêmeos se abraçaram e se beijaram, contentíssimos por se encontrarem novamente. Agarraram e amarraram a bruxa e a jogaram na fogueira.
E agora o nosso terceiro autor, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875). Imprimindo à sua obra marcas de sua hipersensibilidade, timidez, e de seu temperamento depressivo, Andersen publica seus Contos em 1835. Neles também desfilam personagens em busca de abundância, da justiça e do amor. É deste que trataremos agora.
Acossado pelo medo da diferença encarnada pelo outro, pelo medo, enfim de sua natureza seccionada (sexionada), o homem (a humanidade) responde com a utopia da androginia. Através do sonho de amor, homem e mulher buscam a unidade perdida, isto é, procuram reviver o tempo em que, como recorda Aristófanes em sua fala em O Banquete, de Platão, [....] nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não como agora, o masculino efeminino, mas também havia a mais um terceiro,comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa;andrógino era então um gênero distinto,tanto na forma como no nome comum aos dois,ao masculino e ao feminino...
Tais seres possuíam muita força e, presunçosos, voltaram-se contra os deuses. Zeus, para punir tal ousadia, delibera cortá-los ao meio, para enfraquecê-los. E assim, seccionados, viviam à procura da outra metade. E continua Aristófanes:
O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; e portanto ao desejo e procura do todo é que se dá o nome de amor.
Será, então, na expressão literária que o amor se imortaliza: na paixão vivida por Tristão e Isolda, por Romeu e Julieta e por tantos outros casais. São também muitos os contos de fada onde se lê a busca do par: A Bela Adormecida e a Gata Borralheira, nas versões de Perrault e Grimm; A Bela e a Fera, na versão de Madame Leprince de Beaumont (meados do século XIX); Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel, A Moça dos Gansos, na versão dos Grimm, dentre outros.
Já nos contos de Andersen essa busca não constitui tema recorrente; há narrativas em que o final é feliz – como em A Princesa e o Grão de Ervilha e Os Cisnes Selvagens –, mas certamente há outras em que se acentua o pessimismo em relação ao amor, como em Os Namorados. E em A Sereiazinha, que reedita, ainda que de maneira eufemizada, a eterna sedução das sereias, é trágico o final para a figura feminina: não conseguindo o amor do príncipe, e não desejando matá-lo, como recomendara a bruxa do mar, para reassumir sua antiga natureza de sereia, a Sereiazinha joga-se ao mar e transforma-se em espuma.
E em relação a esse final, vale ressaltar que é também trágico, em outras narrativas de Andersen, o destino das personagens femininas, como as dos contos Os Sapatinhos Vermelhos e A Menina dos Fósforos, por exemplo.
Encerrada a viagem através do universo literário dos três autores selecionados – Perrault, Grimm e Andersen – é importante lembrar, ainda, que o primeiro livro infantil publicado no Brasil data de 1894 e é de autoria de Figueiredo Pimentel (1869-1914): Contos da Carochinha. A ele somam-se Histórias da Avozinha e Histórias da Baratinha, do mesmo autor. Nessa trilogia são incluídos os contos clássicos, já presentes nas obras dos três autores mencionados, e muitos outros.
Por traduzirem as eternas paixões humanas, os contos de fada tornam-se atemporais, como salientamos ao início. Sendo assim, tendo já visitado a produção clássica, cabe agora dirigir nosso olhar para a produção destas últimas décadas do século XX e observar como tais contos são recontados.
Reaproveitando o já escrito, os autores vão recontando as histórias ouvidas (ou lidas) aqui e ali e, nesse processo, vão descobrindo novos sentidos, multiplicando, assim, o já contado. É como salienta Marina Colasanti no conto Com voz de mulher da obra Longe como o meu querer:
Foi quando uma mulher que havia estado no estábulo passou a repetir as histórias de deus para outros habitantes da cidade. Repetir exatamente, não. Aqui e ali, acrescentava coisas, tirava outras e cada história, sendo a mesma, era outra. Mais que contar, recontava. Depois houve um rapaz, que também. E, o tempo passando, ninguém mais podia dizer com certeza de onde tinha vindo esta ou aquela história, e quem a havia contado primeiro.
Também nas narrativas agora produzidas vamos encontrar os mesmos medos de ontem: o medo da morte, da fome, da solidão, da doença, da injustiça. A forma de tratá-los é que é diferente. Em vez de narrativas que caminham para um final fechado (muitas vezes feliz), agora privilegia-se um final aberto, que conduz o leitor à reflexão. É o que acontece, por exemplo, em R, a Princesinha de Ziraldo, que retoma A Sereiazinha de Andersen. Em vez de transformar-se em espuma, como no conto clássico, a sereia transforma-se em reticências, que, sem dúvida, constituem o sinal de pontuação mais aberto que conhecemos... E é Nasuta, a bruxa, quem explica às irmãs da sereia:
Olha: no final de uma frase, as reticências significam que há ainda alguma coisa mais a dizer, certo? As letrinhas já tinham suas lágrimas quase secas.
Se colocarmos, porém, as reticências no princípio de uma frase, isto quer dizer que alguma coisa dita antes foi interrompida e vai começar, não é verdade, minhas...
Ééééé! ... queridas? Logo, as reticências fazem exatamente essa ligação entre o que foi e o que virá a ser. As irmãs se olharam, tentando descobrir se todas haviam compreendido a explicação da bruxa. E ela continuou:
Como a espuma do mar, sua irmãzinha vai voltar ...
E se, ainda, nos contos tradicionais imperava o claro esquema antitético entre Bem (fada) e Mal (bruxa), já agora tais opostos se mesclam, sugerindo que de fada e de bruxa todos nós temos um pouco. E é o que lemos em Uxa, ora fada, ora bruxa, de Silva Orthof; Onde tem fada tem bruxa, de Bartolomeu Campos Queirós; e Bruxa e fada: menina encantada, de Ieda Oliveira.
Como paródias (para = ao lado de; ode = canto), isto é, uma narrativa ao lado da outra, as produções atuais exigem do leitor um conhecimento prévio do texto clássico para que o entendimento se estabeleça. É o que propõem os Contos de Fadas Politicamente Corretos, de James Finn Garner, onde encontramos deliciosas paródias de Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve, dentre outras.
Ainda na esteira da paródia, podemos citar Ervilina e o Princês, de Silvia Orthof, que parodia o conto de Andersen A Princesa e Grão de Ervilha, mostrando que o destino da mulher não é mais o de ser escolhida, mas o de fazer sua própria escolha. E nessa linha de inauguração de uma nova história da mulher podemos ler também História meio ao contrário, de Ana Maria Machado; Mulheres de coragem, de Ruth Rocha; Heróis e guerreiras, de Heloísa Prieto; Doze reis e a moça no labirinto do vento, Entre a espada e a rosa, O lobo e o carneiro no sonho da menina e Ofélia, a ovelha – todos de Marina Colasanti.
Produzida sob o signo de uma cultura de propaganda, do consumo, da velocidade, a própria arte insere-se nessa rede de exigências. Narrativas curtas, à moda dos clips da linguagem televisiva, constituem a literatura ideal para o leitor de hoje. Assim é construída, em seis volumes, a coleção «Assim é se lhe parece» de Angela Carneiro, Lia Neiva e Sylvia Orthof. Cada volume contém três sketches que viram pelo avesso elementos e situações dos contos clássicos. No volume intitulado Chamuscou, não queimou, encontramos um dragão doente, casado com uma princesa indomada. Ao neutralizar o dragão como encarnação do Mal, a narrativa anula também o poder que o criou e a tradição que o manteve como sustentáculo do forte maniqueísmo repressor. O episódio final, à moda de um besteirol, conduz à perplexidade, perplexidade que é, enfim, a do próprio leitor num mundo estilhaçado como o desse final de século, onde até o amor é descartável. Desfazendo o seu casamento com o dragão, a princesa Marinalva volta para o castelo real, apaixona-se pelo sapo e depois pelo bode, levando o seu pai ao desespero:
O rei estava enfezado,e disse, assim assado:Perdôo só desta vez,ó filha, desajuizada,ficaste toda ensapada,estou danado! Marinalva se cuidou,desensapou. Aí ela viu um bode... vê se pode! Marinalva virou cabra? Abracadabra! Esta história é inventada, sou muito inventadeira, a história verdadeira por outros será contada. Eu brinco, rebolo, bolo, canto mentiras na feira, sou Orthofia, a feiticeira... quanta besteira!
A palavra irreverente que provoca o riso, como essa de Sylvia Orthof, é mais uma das características das narrativas da atualidade; e pode também funcionar como uma das mais eficazes estratégias para neutralizar os nossos medos...
E já que falamos de riso, vamos concluindo também de maneira irreverente o passeio através do mundo encantado dos contos de fada: «entrou por uma porta e saiu por outra, e quem quiser que conte outra».”
Fonte:
www.leiabrasil.org.br/doc/doc_suporte/fada_medos_sonhos.doc
Antero de Quental
Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem? Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem?
Comecemos por afirmar que uma das principais marcas que ali circulam é o medo. Os nossos e eternos medos, quer individuais, quer coletivos. E aqui vale lembrar Jean Delumeau, na obra da História do medo no ocidente: .... não só os indivíduos tomados isoladamente, mas também as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidos num diálogo permanente com o medo.
Vivendo, portanto, assolado pelo medo, o homem procura uma compensação que o liberte dessa agonia.
É preciso que encontre respostas que preencham as angustiantes lacunas do seu dia-a-dia. É então que, movido pela necessidade de sonhar uma outra História, o homem cria suas utopias pois, como ensina Hilário Franco Jr., [....] utopia é negação de um presente medíocre e sufocante, é espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso a perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo.
Neste final de século – e de milênio –, quando heranças quer de um passado remoto, quer de um passado próximo misturam-se aos velozes progressos de uma moderna tecnologia, será necessário rever a História e repensar as utopias de ontem para entender os sonhos de hoje. E só assim seremos capazes de ter um amanhã.
Estudar as utopias de uma sociedade é lidar com o desejo dessa sociedade; é trabalhar com a falta e a esperança que circulam em seu imaginário. É preciso, então, revisitar a História que ali se viveu e ouvir as histórias que ali se contavam. E para tal há que se recorrer a determinadas pistas: aquelas deixadas pelos historiadores e pelos cronistas, pelos pintores e escultores, pelos poetas, romancistas e contistas.
Sendo assim, vamos encontrar nos contos de fada 3 as utopias que respondem aos eternos desejos da humanidade, pois como afirma Karl Mannheim, na obra Ideologia e Utopia,
Quando a imaginação não encontra sua satisfação na realidade existente, busca refúgio em lugares e épocas desiderativamente construídos. Mitos, contos de fada, promessas supraterrenas da religião, fantasias humanísticas, romances de viagens têm sido expressões, em contínua mutação, do que estava faltando na vida real. (o grifo é nosso)
Em busca da abundância, da justiça e do amor – sonhos que embalam o imaginário social através dos tempos –, as personagens dos contos de fada vivem suas histórias que funcionam como respostas aos eternos desejos da humanidade. E por isso os contos tornam-se atemporais, como ensina Pierre Mabille:
Os contos, repetidos de boca em boca, de geração a geração, seguem uma trajetória comparável à de um eco gigante que se prolonga ao infinito.
Assim entendidos, os contos de fada constituem documentos onde se inscrevem nossos medos e os mecanismos para neutralizá-los – as utopias. São eles que agora revisitaremos.
Contemporâneo de Luis XIV, o Rei-Sol, Charles Perrault (1628-1703) publica as suas Histórias ou contos dos tempos passados com algumas moralidades em 1697. A obra consta de oito contos de prosa: A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As Fadas, A Gata Borralheira, Henrique de Topete e O Pequeno Polegar. Cada um é encerrado com uma moralidade em verso. No frontispício, a obra apresenta uma gravura com a inscrição Contes de ma mère L'Oye (Contos da Mamãe Ganso).
O tempo é de contrastes na França de então; ao lado do extremo fausto da corte de Versailles, os camponeses vivem em alarmante penúria, como salienta Robert Darnton:
Para a maioria dos camponeses, a vida na aldeia era uma luta pela sobrevivência, e sobrevivência significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha da pobreza variava de lugar para lugar, de acordo com a extensão de terras necessária para pagar impostos, dízimos e tributos senhoriais; separar grãos suficientes para plantar no próximo ano;e alimentar a família.
Esse universo de fome e miséria inscreve-se em contos como O Gato de Botas e o O Pequeno Polegar. Para ajudar o terceiro filho de um pobre moleiro falecido, o Gato usa das mais refinadas trapaças e consegue para seu dono até um casamento com a filha do rei. Já o Polegar – sétimo filho de um lenhador também pobre –, após ser abandonado com seus irmãos, na floresta, pelos pais, consegue um lugar na corte, como correio, graças às botas que rouba do ogre; lá enriquece e emprega também toda a família. A lição dos contos é clara: num mundo onde as injustiças sociais e as diferenças econômicas são flagrantes, é preciso ser esperto para burlar o esquema e vencer.
Também nos contos dos irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863; Wilhelm, 1786-1859) vamos encontrar idênticas situações em que o fraco (pobre) vence o forte (rico): são situações que alimentam o desejo de prosperidade e de fartura das classes menos favorecidas. Desejo este substantivado na utopia da Terra da Cocanha à qual os Grimm dedicam um conto homônimo. Nessa terra de abundância, retrato do «mundo às avessas», ninguém precisa trabalhar, pois «um rio de mel escorria como água de um vale profundo no cume de uma montanha muito alta» e «em um pátio próximo, se achavam outros quatro cavalos debulhando milho e duas cabras acendiam um fogão, enquanto uma vaca assava pães no forno».
O ano da publicação dos Contos de criança e do lar dos irmãos Grimm é de 1812 e vamos encontrar a Europa vivendo sob o signo do Romantismo. Os contos fazem parte, portanto, de uma literatura que reflete as mudanças rápidas e profundas que a sociedade de então experimentava. Viajando pela Alemanha, os dois irmãos vão colhendo de diversos narradores as histórias que circulavam na boca do povo, cheias de tradições e, ao mesmo tempo, cheias de sonhos de renovação.
Quando as narrativas elegem o terceiro irmão (o bobo) – ou ainda um simples caçador (como em Os dois irmãos) – para protagonizar a aventura e finalizá-la com sucesso (muitas vezes casando-se com a filha do rei, como no conto citado), parecem responder a determinadas expectativas do público. Num mundo que vivia os ideais da Revolução Francesa, os contos apontam para a necessidade de revisão de atitudes despóticas da nobreza e da aristocracia: mais importantes que a força e a linhagem são a bondade, a coragem e a temperança. E para confirmar tais lições, as narrativas incorporam características daquele momento literário. A vivência da Natureza, por exemplo, tão a gosto do espírito romântico, passa a constituir, nos contos de Grimm, importante marca para qualificar o herói. Lugar de refúgio ou de desamparo, a Natureza propicia muitas vezes ao personagem cenas de união e de compensação, como acontece com o caçador de Os dois irmãos. Auxiliado pela lebre, pelo urso, pelo lobo e pela raposa, casa-se com a filha do rei. É certo que tal união subverte a ordem, mas é muito bem aceita por um público que vive o sonho de «liberdade, igualdade e fraternidade». E esse final feliz alimenta, sem dúvida, a ilusão de ascensão econômica e social das classes menos favorecidas.
Mas se sonha com a ascensão social – desejo individual –, o homem sonha também com uma sociedade equilibrada, com uma terra regida por um soberano justo. Recorrendo a certos perfis já cristalizados no imaginário do ocidente cristão (como o Rei Arthur, o Imperador Carlos Magno, e até o fora-da-lei Robin Hood), as narrativas vão construindo heróis que satisfazem o eterno desejo das sociedades: o de um pai protetor.
Retrato da perfeição física e moral, o herói conta muitas vezes com a ajuda sobrenatural (de fadas, gnomos, objetos mágicos e até de animais encantados, como já salientamos anteriormente) para vencer o inimigo (muitas vezes também sobrenatural, como bruxas, ogres, anões malvados, dragões) e qualificar-se para ocupar o lugar de soberano. É o que acontece em Os dois irmãos. Assim como Arthur, personagem das histórias da Távola Redonda, o nosso herói – um caçador – é um predestinado para retirar a espada mágica de uma pedra:
Lá no alto, havia uma igreja e no altar havia três taças, cheias até a borda, e ao lado havia uma inscrição que dizia: «Quem esvaziar estas taças será o homem mais forte da terra e poderá brandir a espada que está enterrada ao lado de fora da porta». O caçador não bebeu. Saiu e achou a espada enterrada, mas não conseguiu arredá-la do lugar. Voltou e esvaziou as taças. Aí ficou bem forte, conseguiu tirar a espada do chão e manejá-la à vontade.
De posse da arma, luta com o dragão que todos os anos exigia uma donzela imaculada, mata-o e ganha a mão da princesa, sendo em seguida proclamado herdeiro do rei. Esse final feliz – que é muitas vezes repetido nos contos – aponta para o nascimento de uma sociedade mais justa. Coroado, o herói reina por muito tempo, com muita sabedoria. Cumpre-se utopia da justiça.
Mas se o dragão é desafio constante ao jovem herói, é verdade que há outro oponente que se lhe apresenta igualmente tenebroso: a bruxa. Figura diabólica, a bruxa espalha malefícios que atingem a todos: a nobres, a camponeses e a crianças perdidas na floresta.
Através dos séculos – através dos contos –, detalhes anatômicos vão sendo acrescentados a um retrato de mulher que o desejo rejeita: ela é velha, é feia, corcunda, sua pele é enrugada aponteada de verrugas. Seus dedos de ossos longos completam-se com unhas tortas e ponteagudas. Demonizada, ela representa o ser marginal que a ordem rejeita. Ela opõe-se à fada que o desejo almeja. Mas como chegamos a esses perfis tão distintos?
Ao revisitarmos a literatura dos séculos XII e XIII – principalmente aquela que aflora a chamada matéria de Bretanha, de substrato celta –, aprendemos, através do exame de alguns perfis femininos (como Isolda, Viviane, Morgana e Mab), que fada e bruxa são representações das duas faces de uma mesma história da mulher. Como grande fiandeira, reeditando o fazer de Láquesis, Cloto e Átropos, as três parcas da tradição clássica, a fada é aquela que tece o destino (fatum) do homem. Como a sábia alquimista que prepara mezinhas e conduz os partos, a bruxa é aquele agente perigoso que se atreve a penetrar nos segredos da ciência, invadindo, assim, os domínios masculinos. É na fala de Mercúrio, personagem da obra Romeu e Julieta de Shakespeare que melhor vemos apresentada essa bipolaridade:
Pelo que vejo, foste visitado Pela rainha Mab. Ela é a parteira Entre as fadas. E é tão pequenininha. Como a ágata do anel que os conselheiros usam no indicador.[....] É essa mesma Mab que, de noite, Entrança as crinas sujas dos cavalos E dá-lhes nós feéricos, os quais Enfeitiçam aqueles que os desatam. Ela é bruxa que aperta as raparigas Que se deitam de papo para o ar, E lhes ensina na primeira vez Como se hão de portar para agüentar a carga.
Com o passar dos séculos, cada uma dessas facetas vai ganhando autonomia, e fada e bruxa passam a ser representações distintas e antagônicas. Na obra dos Grimm, por exemplo, são abundantes os retratos de fadas e de bruxas e no conto João e Maria a descrição da bruxa muito se aproxima daquelas que foram feitas na Baixa Idade Média – séculos XIV e XV –, período em que a caça às bruxas atingiu o apogeu:
A velha, porém, apenas fingira ser boa. Na verdade era uma perversa feiticeira, que fizera aquela casa de pão doce, bolos e açúcar-cande com a intenção de atrair crianças. Quando uma criança caía em seu poder, ela a matava, cozinhava e devorava, pois, para ela, não havia um prato mais delicioso do que carne de criança.
As bruxas têm os olhos vermelhos e enxergam muito mal, mas por outro lado, têm um faro igual ao de certos animais e, mesmo sem vê-lo, percebem quando um ser humano se aproxima.
Mas afinal, que motivos levaram uma sociedade – como a cristã medieval, da qual herdamos vários tabus e muitos medos – a alimentar esse amedrontador perfil feminino? É bem verdade que o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos. Por ter sido um constante enigma para o homem, a mulher sempre o amedrontou, como salienta Jean Delumeau:
Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Como não temer um ser que nunca é tão perigoso como quando sorri?
Mas se é verdade que o medo da mulher não é invenção do ascetismo cristão, é certo também que foi o cristianismo que muito cedo o integrou em seu ideário e trabalhou esse espantalho até o limiar do século XX. Se o indecifrado existe, se incomoda e amedronta, é preciso buscar um motivo que justifique sua perseguição e até, se possível, sua neutralização – a mais perfeita que se puder. E no que se refere à mulher, a Europa da Baixa Idade Média viveu, com toda violência, uma clima favorável a essa cena. É Jeffrey Richards, na obra Sexo, desvio e danação, quem sintetiza:
As pessoas do período medieval viviam num mundo de medo: medo de impostos, doença, guerra, fome, da morte e do inferno. Era uma sociedade que acreditava no sobrenatural,no poder das forças das trevas em ação de Satã e de seus demônios no mundo.Acreditava também na bruxaria, que era uma explicação conveniente tanto para as catástrofes naturais súbitas (fome, epidemias,tempestades, enchentes, destruição de safras e animais) quanto para problemas familiares recorrentes, tais como impotência,infidelidade, mortalidade infantil. [....]
As acusações de bruxaria eram geralmente levantadas por vizinhos indispostos contra mulheres específicas: as velhas, as solitárias, as impopulares, as neuróticas, as insanas, as mal-humoradas,as promíscuas, as praticantes de medicina popular ou parteiras, mulheres que, por motivos variados, haviam se tornado alvo do ódio local. [....]
As bruxas satânicas do final da Idade Média eram, assim, os bodes expiatórios perfeitos, uma minoria inventada, uma imagem compósita do mal, pronta para ser usada e aplicada a qualquer pessoa que discordasse dos dogmas da Igreja e que, pelo uso da tortura e do terror, se tornava realidade.
Autos de fé são comuns e a execução de bruxas na fogueira traz o aval das Escrituras: «Não deixarás viva uma feiticeira», diz o Êxodo, 22, v. 18. Infração cometida, castigo imposto. Castigo que se eterniza através dos séculos e que também se inscreve no universo dos contos de fada. É o que acontece, por exemplo, em Os dois irmãos, de Grimm, com a bruxa da floresta que encantava a todos que por lá passassem:
– Sua macaca velha! Devolve a vida imediatamente a meu irmão e a todas as criaturas que estão aí, ou então vai para o fogo!Ela pegou uma varinha e tocou as pedras. O irmão e os animais voltaram à vida. E muitos outros homens também, mercadores, artesãos, pastores. Todos se levantaram,agradeceram ao caçador e foram para casa. Os gêmeos se abraçaram e se beijaram, contentíssimos por se encontrarem novamente. Agarraram e amarraram a bruxa e a jogaram na fogueira.
E agora o nosso terceiro autor, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875). Imprimindo à sua obra marcas de sua hipersensibilidade, timidez, e de seu temperamento depressivo, Andersen publica seus Contos em 1835. Neles também desfilam personagens em busca de abundância, da justiça e do amor. É deste que trataremos agora.
Acossado pelo medo da diferença encarnada pelo outro, pelo medo, enfim de sua natureza seccionada (sexionada), o homem (a humanidade) responde com a utopia da androginia. Através do sonho de amor, homem e mulher buscam a unidade perdida, isto é, procuram reviver o tempo em que, como recorda Aristófanes em sua fala em O Banquete, de Platão, [....] nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não como agora, o masculino efeminino, mas também havia a mais um terceiro,comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa;andrógino era então um gênero distinto,tanto na forma como no nome comum aos dois,ao masculino e ao feminino...
Tais seres possuíam muita força e, presunçosos, voltaram-se contra os deuses. Zeus, para punir tal ousadia, delibera cortá-los ao meio, para enfraquecê-los. E assim, seccionados, viviam à procura da outra metade. E continua Aristófanes:
O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; e portanto ao desejo e procura do todo é que se dá o nome de amor.
Será, então, na expressão literária que o amor se imortaliza: na paixão vivida por Tristão e Isolda, por Romeu e Julieta e por tantos outros casais. São também muitos os contos de fada onde se lê a busca do par: A Bela Adormecida e a Gata Borralheira, nas versões de Perrault e Grimm; A Bela e a Fera, na versão de Madame Leprince de Beaumont (meados do século XIX); Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel, A Moça dos Gansos, na versão dos Grimm, dentre outros.
Já nos contos de Andersen essa busca não constitui tema recorrente; há narrativas em que o final é feliz – como em A Princesa e o Grão de Ervilha e Os Cisnes Selvagens –, mas certamente há outras em que se acentua o pessimismo em relação ao amor, como em Os Namorados. E em A Sereiazinha, que reedita, ainda que de maneira eufemizada, a eterna sedução das sereias, é trágico o final para a figura feminina: não conseguindo o amor do príncipe, e não desejando matá-lo, como recomendara a bruxa do mar, para reassumir sua antiga natureza de sereia, a Sereiazinha joga-se ao mar e transforma-se em espuma.
E em relação a esse final, vale ressaltar que é também trágico, em outras narrativas de Andersen, o destino das personagens femininas, como as dos contos Os Sapatinhos Vermelhos e A Menina dos Fósforos, por exemplo.
Encerrada a viagem através do universo literário dos três autores selecionados – Perrault, Grimm e Andersen – é importante lembrar, ainda, que o primeiro livro infantil publicado no Brasil data de 1894 e é de autoria de Figueiredo Pimentel (1869-1914): Contos da Carochinha. A ele somam-se Histórias da Avozinha e Histórias da Baratinha, do mesmo autor. Nessa trilogia são incluídos os contos clássicos, já presentes nas obras dos três autores mencionados, e muitos outros.
Por traduzirem as eternas paixões humanas, os contos de fada tornam-se atemporais, como salientamos ao início. Sendo assim, tendo já visitado a produção clássica, cabe agora dirigir nosso olhar para a produção destas últimas décadas do século XX e observar como tais contos são recontados.
Reaproveitando o já escrito, os autores vão recontando as histórias ouvidas (ou lidas) aqui e ali e, nesse processo, vão descobrindo novos sentidos, multiplicando, assim, o já contado. É como salienta Marina Colasanti no conto Com voz de mulher da obra Longe como o meu querer:
Foi quando uma mulher que havia estado no estábulo passou a repetir as histórias de deus para outros habitantes da cidade. Repetir exatamente, não. Aqui e ali, acrescentava coisas, tirava outras e cada história, sendo a mesma, era outra. Mais que contar, recontava. Depois houve um rapaz, que também. E, o tempo passando, ninguém mais podia dizer com certeza de onde tinha vindo esta ou aquela história, e quem a havia contado primeiro.
Também nas narrativas agora produzidas vamos encontrar os mesmos medos de ontem: o medo da morte, da fome, da solidão, da doença, da injustiça. A forma de tratá-los é que é diferente. Em vez de narrativas que caminham para um final fechado (muitas vezes feliz), agora privilegia-se um final aberto, que conduz o leitor à reflexão. É o que acontece, por exemplo, em R, a Princesinha de Ziraldo, que retoma A Sereiazinha de Andersen. Em vez de transformar-se em espuma, como no conto clássico, a sereia transforma-se em reticências, que, sem dúvida, constituem o sinal de pontuação mais aberto que conhecemos... E é Nasuta, a bruxa, quem explica às irmãs da sereia:
Olha: no final de uma frase, as reticências significam que há ainda alguma coisa mais a dizer, certo? As letrinhas já tinham suas lágrimas quase secas.
Se colocarmos, porém, as reticências no princípio de uma frase, isto quer dizer que alguma coisa dita antes foi interrompida e vai começar, não é verdade, minhas...
Ééééé! ... queridas? Logo, as reticências fazem exatamente essa ligação entre o que foi e o que virá a ser. As irmãs se olharam, tentando descobrir se todas haviam compreendido a explicação da bruxa. E ela continuou:
Como a espuma do mar, sua irmãzinha vai voltar ...
E se, ainda, nos contos tradicionais imperava o claro esquema antitético entre Bem (fada) e Mal (bruxa), já agora tais opostos se mesclam, sugerindo que de fada e de bruxa todos nós temos um pouco. E é o que lemos em Uxa, ora fada, ora bruxa, de Silva Orthof; Onde tem fada tem bruxa, de Bartolomeu Campos Queirós; e Bruxa e fada: menina encantada, de Ieda Oliveira.
Como paródias (para = ao lado de; ode = canto), isto é, uma narrativa ao lado da outra, as produções atuais exigem do leitor um conhecimento prévio do texto clássico para que o entendimento se estabeleça. É o que propõem os Contos de Fadas Politicamente Corretos, de James Finn Garner, onde encontramos deliciosas paródias de Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve, dentre outras.
Ainda na esteira da paródia, podemos citar Ervilina e o Princês, de Silvia Orthof, que parodia o conto de Andersen A Princesa e Grão de Ervilha, mostrando que o destino da mulher não é mais o de ser escolhida, mas o de fazer sua própria escolha. E nessa linha de inauguração de uma nova história da mulher podemos ler também História meio ao contrário, de Ana Maria Machado; Mulheres de coragem, de Ruth Rocha; Heróis e guerreiras, de Heloísa Prieto; Doze reis e a moça no labirinto do vento, Entre a espada e a rosa, O lobo e o carneiro no sonho da menina e Ofélia, a ovelha – todos de Marina Colasanti.
Produzida sob o signo de uma cultura de propaganda, do consumo, da velocidade, a própria arte insere-se nessa rede de exigências. Narrativas curtas, à moda dos clips da linguagem televisiva, constituem a literatura ideal para o leitor de hoje. Assim é construída, em seis volumes, a coleção «Assim é se lhe parece» de Angela Carneiro, Lia Neiva e Sylvia Orthof. Cada volume contém três sketches que viram pelo avesso elementos e situações dos contos clássicos. No volume intitulado Chamuscou, não queimou, encontramos um dragão doente, casado com uma princesa indomada. Ao neutralizar o dragão como encarnação do Mal, a narrativa anula também o poder que o criou e a tradição que o manteve como sustentáculo do forte maniqueísmo repressor. O episódio final, à moda de um besteirol, conduz à perplexidade, perplexidade que é, enfim, a do próprio leitor num mundo estilhaçado como o desse final de século, onde até o amor é descartável. Desfazendo o seu casamento com o dragão, a princesa Marinalva volta para o castelo real, apaixona-se pelo sapo e depois pelo bode, levando o seu pai ao desespero:
O rei estava enfezado,e disse, assim assado:Perdôo só desta vez,ó filha, desajuizada,ficaste toda ensapada,estou danado! Marinalva se cuidou,desensapou. Aí ela viu um bode... vê se pode! Marinalva virou cabra? Abracadabra! Esta história é inventada, sou muito inventadeira, a história verdadeira por outros será contada. Eu brinco, rebolo, bolo, canto mentiras na feira, sou Orthofia, a feiticeira... quanta besteira!
A palavra irreverente que provoca o riso, como essa de Sylvia Orthof, é mais uma das características das narrativas da atualidade; e pode também funcionar como uma das mais eficazes estratégias para neutralizar os nossos medos...
E já que falamos de riso, vamos concluindo também de maneira irreverente o passeio através do mundo encantado dos contos de fada: «entrou por uma porta e saiu por outra, e quem quiser que conte outra».”
Fonte:
www.leiabrasil.org.br/doc/doc_suporte/fada_medos_sonhos.doc
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