sexta-feira, 18 de abril de 2008

Ana Nobre de Gusmão (O clone do avô Jacinto)

O avô Jacinto ergueu-se com esforço, deu duas voltas à mesa e caiu redondo no chão, como se fulminado por uma arma invisível. Calculei que lhe tinha dado outra vez aquela coisa esquisita que o pusera tão diferente de repente e a minha primeira reacção foi aproveitar a situação para inspeccionar livremente o tesouro escondido debaixo da sua cama. Preparei-me para sair sorrateiramente da casa de jantar e subir silenciosamente as escadas quando um grito da minha mãe me paralisou — Paizinho – gritou ela a tapar a boca com as mãos — O que foi, paizinho?

Alertado pelo grito da minha mãe, o meu pai entrou a correr na casa de jantar, ajoelhou-se e encostou o ouvido ao peito do meu avô — O coração bate — anunciou — Chama uma ambulância, Teresa, é capaz de ser outra trombose, e diz à Rita que me traga um copo de água.

Pensei em lembrar-lhes que da outra vez que lhe dera aquilo o avô também ficara assim como morto uns momentos, e quis dizer-lhes que ia acabar tudo em bem, mas calculei que não me iam dar atenção nenhuma, ou que me mandariam calar, e achei melhor não dizer nada.

Muito pálida, a minha mãe segurou-me por um braço e arrastou-me para o corredor — Vai para o teu quarto — pediu num tom de voz sumido, irreconhecível.

Subi as escadas a correr, mas em vez de entrar no meu quarto continuei pé ante pé até ao quarto do avô Jacinto e à cautela abri devagar a porta, apreensivo com a perspectiva de poder sentir qualquer coisa estranha ou de ver qualquer coisa estranha o fantasma dele, o outro ele, a sua alma, uma luz difusa e misteriosa a pairar no ar, uma voz sussurrante, um gemido arrepiante, uma gargalhada sobrenatural, o cheiro indefinível da morte (como o cheiro do gato do vizinho que apareceu morto na garagem).

Mas não vi nem senti nada de estranho, o sol iluminava o cadeirão de cabedal onde antes daquilo acontecer ele se sentava sorumbático e inacessível a ler, a cortina ondulava ao sabor da leve brisa que entrava pela janela entreaberta, no ar pairava o vago cheiro a urina tudo era familiar, habitual e mais tranquilo entrei, levantei a franja da colcha e espreitei para debaixo da cama.

Desde que aquilo acontecera pela primeira vez que eu tinha a secreta convicção de que o avô Jacinto fora clonado por extraterrestres, mas que algo não correra como devia ou seja, se o corpo era o mesmo, embora um pouco mais trôpego, a sua mente rebelara-se e transformara-o num linguareiro mordaz e libidinoso, sempre a gabar-se das namoradas e das amantes que tivera e a meter-se com a Rita (a empregada entretanto contratada pelos meus pais para tomar conta dele), a chamá-la ao quarto por tudo e por nada, a ordenar-lhe que se chegasse mais perto dele com uma desculpa qualquer para poder apalpá-la, a pedir-lhe um beijo, ou a convidá-la para sair e outras coisas do género, graçolas brejeiras e isso.

Ela ria-se, mas depois à socapa olhava para mim e levava o indicador à testa que era como quem dizia que o coitado estava meio passado e não sei, se calhar até estava, mas a mim não me parecia. Cá na minha ele sabia muito bem quem era e o que queria, só que quem era e o que queria era agora diferente de quem fora e do que quisera antes de ser clonado. Como se o engano dos extraterrestres lhe tivesse dado a hipótese de uma segunda chance.

E eu, que nunca tivera uma existência significativa para ele, tornei-me uma das suas companhias favoritas (aliás, a única, se exceptuarmos a Rita). Aliciava-me com descrições pormenorizadas dos seus encontros amorosos, ensinava-me truques para me tornar irresistível a qualquer mulher, dava-me lições de anatomia e de psicologia feminina, explicava-me os sistemas contraceptivos, as doenças venéreas, os tipos de beijo e as posições no coito, tudo desenhado e esquematizado num bloco que tinha sempre ao alcance da mão.

— Vê lá se não está uma pantufa minha debaixo da cama — pediu-me um dia com um ar cândido — Não a consigo encontrar em lado nenhum.

Eu deitei-me no chão, levantei a franja da colcha e enfiei a cabeça debaixo da cama — Aqui só há revistas, avô.

E intrigado — São de quê? Posso ver?

Ele riu-se — Traz cá uma que eu mostro.

Tirei a que estava no topo da pilha, recuei de bruços até sentir que já não batia com a cabeça na trave da cama e olhei aparvalhado para a fotografia de uma morena mamalhuda e seminua estampada na capa da revista (e que ainda por cima parecia retribuir-me o olhar).

— Então, rapaz, estás a olhar para quê, traz cá isso — chamou ele impaciente.

E riu-se outra vez.

— Isto é um segredo que fica entre nós — avisou a abanar a revista com um ar ameaçador — E só tens autorização de ver as páginas que eu te mostrar não te quero para aí a folhear a teu bel-prazer e a topares com coisas que ainda não podes entender ou que possas interpretar mal.

A partir daí passei a entrar-lhe no quarto todas as tardes com um só fito — Chamaste, avô?

— Eu — perguntava ele a simular surpresa — Eu não, porque é que havia de te chamar?

— Pareceu-me — dizia eu.

— Não chamei — repetia ele.

E fechava os olhos a fingir que dormitava.

Eu não arredava pé e o jogo prolongava-se até ter finalmente coragem para perguntar:

— Posso ir buscar uma revista, avô?

Ele abria os olhos, sorria trocista e apontava para mim o dedo torto — Também me saíste cá um bom malandro, vá, vai lá buscar outra, mas já sabes, quem ta mostra sou eu.

E eu mergulhava debaixo da cama e escolhia uma ao calhas porque já as tínhamos visto todas pelo menos uma vez e, com as orelhas a arder e o coração a bater mais forte, depositava-lha nas mãos como se de um tesouro se tratasse.

Ele pousava a revista no colo, tirava os óculos, limpava as lentes ao casaco de malha, inspeccionava-as com um ar sério, voltava a empoleirar os óculos na ponta do nariz e só então começava calmamente a folheá-la — Como é que ela consegue pôr-se nesta posição – murmurava a abanar a cabeça - O raio da mulher deve ser contorcionista.

E eu, roído de curiosidade — Deixa ver, avô — Esta não — dizia ele a afastar a revista — Demasiado explícita para a tua idade.

Atento e de respiração suspensa, estiquei o braço e tacteei o soalho debaixo da cama quando ouvi a voz da minha mãe a meio das escadas — Vou meter um pijama, meias, roupa interior e a escova de dentes numa mala, nunca se sabe.

Levantei-me num sobressalto, corri para a porta e dei de caras com a palidez dela — O que é que estás aqui a fazer — perguntou desconfiada.

— Nada — balbuciei a encolher os ombros — O avô já acordou?

Ela olhou para mim e duas lágrimas rolaram-lhe pela face — Não — balbuciou — Por favor vai para o teu quarto, deixa-me aqui sozinha um minuto.

Com o aparato de nave espacial, a ambulância chegou pouco depois e da janela do quarto vi-o sair numa maca, tapado até ao pescoço por um cobertor tão cinzento como a pele do seu rosto.

Estupidamente acenei-lhe.

Vi o meu pai entrar na ambulância depois de olhar para cima e esboçar um sorriso contristado ao qual não eu correspondi.

A minha mãe voltou a subir as escadas e ouvi-a fechar a porta do quarto do meu avô à chave.

Depois entrou de mansinho no meu quarto e colocou as mãos nos meus ombros – O teu avô teve outra trombose – começou numa voz embargada, mas a emoção obrigou-a a calar-se a meio.

— Não te preocupes, mãe — pedi — Os extraterrestres clonaram-no mal da primeira vez e por isso têm de repetir.

Ela olhou para mim com os olhos vermelhos — Os extraterrestres — repetiu surpreendida a afagar-me a face.

Dez dias depois outro clone do avô Jacinto voltou para casa ou melhor dito, metade de um clone do avô voltou para casa porque a outra metade ficou para sempre em parte incerta, um lado do corpo descaído e a mente envolta numa espécie de torpor do qual saía de vez em quando para proferir numa voz arrastada e com inesperada vivacidade no olho mortiço — Rm rm rm — a esticar o braço bom e a apontar na direcção da cama.

E eu ia buscar uma revista, colocava-a no colo dele, tirava-lhe os óculos, limpava-lhes as lentes, voltava a colocar-lhos com cuidado e finalmente abria a revista e virava as páginas, uma a uma, devagar.

Às vezes o seu dedo torto seguia o contorno de uma coxa, de umas mamas, de umas nádegas — Rm, rm, rm, rm — proferia agitado, a tentar arrancar da mão da Rita o lenço de papel onde ela enxugava o fio de saliva que lhe escorria do canto mole da boca.
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Sobre a Autora:
Ana Nobre de Gusmão nasceu em Dezembro de 1952, em Lisboa. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e Design no ARCO. Vive em Portugal e na Suiça. Colabora regularmente nas revista "Elle Portugal" e na "Storm-Magazine". Sua obra encontra-se traduzida na Alemanha. Livros publicados:

Delito sem corpo - Editora Presença, 1996 (Prêmio Máxima Revelação)
Não é o fim do mundo – Editora Presença, 1996
Aves do paraíso – Asa Editora, 1997
Onda de choque – Asa Editora, 1999
Das tripas coração – Asa Editora, 2000
Até que a vida nos separe – Asa Editora, 2002
O pintor – Asa Editora, 2004

Fonte:
http://www.releituras.com/

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