As notas referentes aos números colocados em algumas frases (em chaves sublinhadas) estão colocadas ao fim do artigo.
Foto: Tânia e Noll
João Gilberto Noll (1946) vale-se em sua escrita da palavra úmida.[1] O que podemos chamar de a literatura líquida do autor tem, como marca singular, a palavra a esvaziar o corpo, a secá-lo em sua linguagem, como símbolo de uma ausência, uma anomia, em que a vida se faz na transitoriedade do instante, ou seja, seus personagens ingerem e expelem pelos orifícios corporais os desencontros da vida.
Esse autor, em 1970, escreveu seu nome na historiografia da literatura brasileira como detentor de uma prosa poética aguçada, mas sua escrita proveniente de um “eu inflamado”[i], como ele mesmo a denomina, apresenta uma característica peculiar: produz um choque no leitor. Seu discurso dialoga entre cinema e literatura, entre ficção e mundo, desvela uma prosa viva e atualíssima, busca mostrar o homem no seu aqui-e-agora, no seu estar-no-mundo, que pela fôrma, revela de qualquer forma a si mesmo ou pela não-afirmação ou pela auto-deformação. No entanto, há uma história a contar, há uma experiência a narrar: a do esvaziamento do ser, do corpo[ii].
Noll foi um dos primeiros em nossas letras a levar a crítica a reconhecer uma mudança na forma e essência do romance contemporâneo como gênero híbrido e heterogêneo, mas nele não cabe somente a leitura pela imagem da dialética, pelo contrário, sua prosa requer sempre um desdobrar-se e desvendar-se do pensamento em idéias em cada texto para capturar o sentido e a interpretação.
Suas obras exemplificam plenamente o momento descorporificado em que o homem vive, quando tudo é fluido, sem sentido, indefinido e afeta a todos em qualquer condição social[iii]. Suas narrativas desfolham imagens que se esfacelam em segundos no estilo direto e sábio do escritor de dizer muito com poucas palavras. Uma narrativa sufocante que, ao mesmo tempo, que é leve, asfixia e comove. Nela encontram-se vivência, experimento e tentativa contínua de afetar leitores capazes de desafiar o mundo real pela representação, pela busca da compreensão do outro, pela interpretação da condição humana. Interpretar, neste caso, é a busca de encontrar no “quase-nada” da “contravida”[iv], quando pelo corpo e com o corpo expele o mundo, o indizível. Desvendar territórios, somar novas terras em cada página das obras desse autor, é reconhecer-se nas suas entrelinhas, revelar-se entre a capa e a palavra final na busca pelo desnudamento de tantas imagens literárias na travessia de tantos espaços para chegar ao homem sempre à deriva, à procura de algo que não sabe o que quer, mas o que não quer, no entanto, sabe muito bem, sabe que tudo é incerto, por isso mesmo repele o que não aceita.
Mostra o mundo de hoje, fagocitado, engolido autofagicamente pela velocidade do tempo e pela busca incessante da construção do “eu”. Apresenta a ressignificação do espaço e do tempo como território da inquietude e da peregrinação na infrutífera busca do relacionamento humano dissolvido no mundo. Desvela o homem em seu limite de suportabilidade entre o público e o privado, o local e o global, desejos e vontades, buscando um sentido para a vida, numa concreta e angustiante realidade produzida pelo momento, sobrevivendo entre a sina e o destino, mas em pleno desatino. Há, também, um traço político na escrita do autor. Um narrador nos diz: “eu seria escravo e agora por inteira vocação.” (NOLL, 2006, p. 45)
Neste artigo nos propomos a ler a relação entre corpo, escrita e excreção nas narrativas que compõem A máquina de ser (2006), última obra publicada pelo autor. Vamos ler quais são as representações que apontam para esse mundo caótico do presente nestes contos.
O escritor inglês Herbert Georges Wells publicou seu primeiro sucesso de ficção científica adaptado para o cinema A Máquina do Tempo, em 1895. Nesta produção seres andróides (meio-humanos e meio-robôs) estão em cena. João Gilberto Noll teve várias obras suas adaptadas para o cinema, em A máquina de ser não tem como propósito abordar personagens que viajam no tempo através de uma máquina (embora a narrativa não deixe de ser uma viagem!), mas chamar a atenção para a condição de deslocamento do homem, apontar como este age diante do caos da vida em seu cotidiano quando tudo se faz leve e fluido, passageiro e incerto sem perspectivas futuras. Na literatura líquida de João Gilberto Noll, o leitor “fabrica sua ilusão utilitária” (NOLL, 2006, p. 125).
O que Noll faz nesta narrativa aquosa pela solidão do homem do seu tempo e “engessado” na experiência da perda, é pensar o mundo pela palavra que fabrica. O escritor nos apresenta uma máquina-de-ser não a que tomou o lugar do homem na produção, mas o homem-ser-máquina, traduzindo existencialmente em seu comportamento: hábito e ação, na sua identidade de máquina, a transitoriedade absurda da vida, na sociedade consumista do imediatismo, em que os relacionamentos estão engendrados nessa rede de exigüidade e ausências de humanos em que tudo se transforma e transmuta em nada, em vazio e em segundos, tudo é descartável.
No entanto, tudo tem também o seu preço em meio a tantos avanços tecnocientíficos e biotecnológicos, o homem vê-se saturado de modernidade e paga com a corporeidade e o sacrifício do ser as conseqüências de sua utopia desenvolvimentista. Hoje o homem sem liberdade está destituído de pensar o futuro. No mundo consumista os seres humanos despem-se de si mesmos e vêem-se em contínuo abismo identitário, temporal e espacial, onde muitos não sabem aonde ir. A solução para sobrevivência futura ainda é um enigma e esbarra em algumas indagações a serem respondidas: como dividir o pouco que se tem com tantos que nada têm? Como fixar laços de relacionamentos? Voltaremos à época das tribos em que cada um convive com seu grupo ou já estamos nela?
Mas, em A Máquina de Ser, que homem integra essa fábrica que é a narrativa de João Gilberto Noll? O que se pode afirmar é que o autor fabrica sua escrita talvez ainda querendo acreditar em uma saída, em um consolo na potência afetiva do encontro com o “outro”, na busca contínua da tradução identitária pelo corpo, pela troca e pelo encontro de vários outros “eus”.
O primeiro conto obra-prima deste livro: No dorso das horas, aparece o narrador transformado em imagem e guiado rapidamente no tempo da luz pelo olhar de um homem através de uma câmara, corre ao encontro do que não sabe, até no escuro do espaço deparar-se com um corpo ao qual se une sexualmente, o corpo da filha.
Entre esse e o último conto da obra, que apresenta um alter-ego do autor, João, Noll mostra o quanto a travessia da escrita está pautada na idéia da solidão, da renúncia, demonstrando que no mundo em conflito e sem qualquer fronteira, segurança ou certezas, o corpo também é atingido pelo medo-cósmico (medo de tudo o que nem se sabe). Zygmunt Bauman alerta que “a demarcação entre o corpo e o mundo exterior está entre as fronteiras contemporâneas mais vigilantemente policiadas. Os orifícios do corpo (os pontos de entrada) e as superfícies do corpo (os lugares de contato) são agora os principais focos do terror e da ansiedade gerados pela consciência da mortalidade.” (BAUMAN, 2001, p. 210)
Em Noturnas doutrinas, o escritor diz que “uma umidade lacrimosa corria pelos prédios” (NOLL, 2006, p. 80) No entanto, é no conto que intitula a obra, A Máquina de Ser que João Gilberto Noll presenteia seu leitor com mais um narrador anônimo, andarilho em uma cidade estrangeira. Neste, entretanto, como em Lorde (2004)[v], demonstra talvez uma saída para a condição de vida do protagonista que quer escoar e extravasar a energia pulsional que traz dentro de si: “Lembrei que eu agora só sabia beber um cálice de vinho às portas da madrugada”. “Isso já me bastava para aventurar um pouco minhas idéias que logo retornavam porém a seu leito natural -, por onde as águas desciam em sua mansa sina, dando a funcionar mais uma vez minha máquina de ser.” (NOLL, 2006, p. 120)
Há nestas narrativas a presença de um moto contínuo a alimentar a máquina da criação. Na cidade imaginária de João Gilberto Noll, o estrangeiro em sua máquina de ser sofre uma metamorfose de andarilho a Messias, já que passa a buscar a mercadoria mais preciosa do planeta: trabalho; deseja sua própria morte, diz ter uma missão: pôr a “cabeça a trabalhar por uma causa útil, que naqueles tempos tinha a forma de sondagens em prol de um firme intercâmbio tecnológico entre os nossos dois povos.” (NOLL, 2006, p. 122) Imagina este protagonista a sua terra natal com “máquinas agrícolas novinhas.” Agora tinha uma razão para continuar, assinar papéis na Embaixada para que alguns funcionários tivessem motivo de voltar no dia seguinte. Uma prática redentora que mostra o senso de continuidade de uma função para manter o emprego do “outro”, quando o mercado local das grandes cidades se vê encolhido pelo desemprego, fruto das negociações comerciais globalizadas em que até o dinheiro é movente e está a serviço das “forças do mercado”.
Nas linhas finais da narrativa a solução: “Era só acionar a máquina de ser, que tinha no meu corpo um intérprete. E mandar ver... pronto para seguir vivendo... Era preciso, era preciso, a vida se fazia de minuto a minuto”. (...) Peguei um lenço do bolso. E limpei meu suor ...” O suor do fazer nascer a escrita, o suor do corpo a expelir. (NOLL, 2006, p. 122)
Em outros contos, como Na correnteza, encontra-se a presença dessa escrita que busca a identidade dos protagonistas, umedecida pela palavra: “eu tinha ficado ilhado e pronto”, ou ainda, “entrei no cinema, na tela tudo me estranhava. Não entendia bem a história, a razão de tantas escapadas, tantas pessoas se ferindo ao léu do enredo em correnteza.” O enredo em correnteza é também o narrar compulsivo de Noll, em que as cenas são rápidas, mas não se desgastam, pelo contrário, se encadeiam, mostram imagem após imagem, perfazendo uma narrativa frenética em que o olhar, o interpretar, a leitura e o leitor têm de correr atrás da narrativa para não perder o tempo da linguagem, do seu acontecer, quando o autor põe na voz do narrador o prazer de relatar, e de expor as experiências corporais. (NOLL, 2006, p. 144;147)
Mas neste caso, não só o corpo é intérprete, como o autor alude, mas também salvador do mundo através de sua excreção: “Essa parte da lida [mijou] se alongava mais e mais e sempre, como se ele, depois do beneplácito do banho involuntário, tivesse toda a água do mundo para devolver à terra”. (NOLL, 2006, p.129)
Em suma: o corpo é também linguagem e como tal vem sendo receptáculo de todas as interdições e espaço da escrita vivencial do homem. Uma escrita permeada pelo não-sentido da vida, pelo vazio do ser, pela fluidez da identidade e, sobretudo, pela insatisfação em existir, quando o homem desconhece o outro e até a si mesmo na estranha sensação de ser coisa-nenhuma.
Notas
[1] O título deste artigo provém do arcabouço-teórico do filósofo Zygmunt Bauman detentor do conceito de “modernidade líquida”. A relação deste conceito com a obra de João Gilberto Noll diz respeito à presença do líquido na linguagem do autor com a idéia de desfazimento, em plena interação com os corpos dos personagens desde seu primeiro romance. Um dos narradores anuncia: “Viu a virilha molhada. Notou que toda sua massa se diluía pelos poros. O corpo, ah, se desdobrava em córrego.” (2003, p. 106)
[i] Entrevista. In: Coleção autores gaúchos. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1998, v. 23.
[ii] O “esvaziamento do ser” na contemporaneidade é marcado pelo “desvanecimento do sujeito”. Foucault em “As palavras e as coisas” aponta o ocaso de uma forma histórica do sujeito, ou seja, a dissolução do “eu” preconizada pela modernidade. “Na representação, os seres não manifestam mais sua identidade, mas a relação exterior que estabelecem com o ser humano.” (2002, p. 431)
[iii] Consoante Zygmunt Bauman, em “Vidas desperdiçadas”, “a geração X (rapazes e moças nascidos na década de 1970) está polarizada de modo mais agudo que a precedente. É verdade que a desconcertante volatilidade da posição social, a redução de perspectivas, o viver ao deus-dará, [...] a imprecisão das regras – tudo isso assombra a todos eles sem discriminação, gerando ansiedade, destituindo todos os membros dessa geração, ou quase todos, da autoconfiança e da auto-estima. (2005, p. 23)
[iv] Palavras usadas em Mínimos, múltiplos, comuns (2003), p. 29
[v] Lorde é o último romance de João Gilberto Noll publicado pela Editora Francis. Nele, o autor aponta o processo de mutação de um escritor brasileiro que vai para Londres e vive a difícil experiência de conviver no estrangeiro sem negar sua identidade, nacionalidade, cor e religião.
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Sobre a Autora do Artigo:
Tânia T. S. Nunes
Professora de Letras e Literatura, aluna do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu, Mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense – UFF
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Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - n. 83 - abril de 2008 - ano VII
http://www.espacoacademico.com.br/
Esse autor, em 1970, escreveu seu nome na historiografia da literatura brasileira como detentor de uma prosa poética aguçada, mas sua escrita proveniente de um “eu inflamado”[i], como ele mesmo a denomina, apresenta uma característica peculiar: produz um choque no leitor. Seu discurso dialoga entre cinema e literatura, entre ficção e mundo, desvela uma prosa viva e atualíssima, busca mostrar o homem no seu aqui-e-agora, no seu estar-no-mundo, que pela fôrma, revela de qualquer forma a si mesmo ou pela não-afirmação ou pela auto-deformação. No entanto, há uma história a contar, há uma experiência a narrar: a do esvaziamento do ser, do corpo[ii].
Noll foi um dos primeiros em nossas letras a levar a crítica a reconhecer uma mudança na forma e essência do romance contemporâneo como gênero híbrido e heterogêneo, mas nele não cabe somente a leitura pela imagem da dialética, pelo contrário, sua prosa requer sempre um desdobrar-se e desvendar-se do pensamento em idéias em cada texto para capturar o sentido e a interpretação.
Suas obras exemplificam plenamente o momento descorporificado em que o homem vive, quando tudo é fluido, sem sentido, indefinido e afeta a todos em qualquer condição social[iii]. Suas narrativas desfolham imagens que se esfacelam em segundos no estilo direto e sábio do escritor de dizer muito com poucas palavras. Uma narrativa sufocante que, ao mesmo tempo, que é leve, asfixia e comove. Nela encontram-se vivência, experimento e tentativa contínua de afetar leitores capazes de desafiar o mundo real pela representação, pela busca da compreensão do outro, pela interpretação da condição humana. Interpretar, neste caso, é a busca de encontrar no “quase-nada” da “contravida”[iv], quando pelo corpo e com o corpo expele o mundo, o indizível. Desvendar territórios, somar novas terras em cada página das obras desse autor, é reconhecer-se nas suas entrelinhas, revelar-se entre a capa e a palavra final na busca pelo desnudamento de tantas imagens literárias na travessia de tantos espaços para chegar ao homem sempre à deriva, à procura de algo que não sabe o que quer, mas o que não quer, no entanto, sabe muito bem, sabe que tudo é incerto, por isso mesmo repele o que não aceita.
Mostra o mundo de hoje, fagocitado, engolido autofagicamente pela velocidade do tempo e pela busca incessante da construção do “eu”. Apresenta a ressignificação do espaço e do tempo como território da inquietude e da peregrinação na infrutífera busca do relacionamento humano dissolvido no mundo. Desvela o homem em seu limite de suportabilidade entre o público e o privado, o local e o global, desejos e vontades, buscando um sentido para a vida, numa concreta e angustiante realidade produzida pelo momento, sobrevivendo entre a sina e o destino, mas em pleno desatino. Há, também, um traço político na escrita do autor. Um narrador nos diz: “eu seria escravo e agora por inteira vocação.” (NOLL, 2006, p. 45)
Neste artigo nos propomos a ler a relação entre corpo, escrita e excreção nas narrativas que compõem A máquina de ser (2006), última obra publicada pelo autor. Vamos ler quais são as representações que apontam para esse mundo caótico do presente nestes contos.
O escritor inglês Herbert Georges Wells publicou seu primeiro sucesso de ficção científica adaptado para o cinema A Máquina do Tempo, em 1895. Nesta produção seres andróides (meio-humanos e meio-robôs) estão em cena. João Gilberto Noll teve várias obras suas adaptadas para o cinema, em A máquina de ser não tem como propósito abordar personagens que viajam no tempo através de uma máquina (embora a narrativa não deixe de ser uma viagem!), mas chamar a atenção para a condição de deslocamento do homem, apontar como este age diante do caos da vida em seu cotidiano quando tudo se faz leve e fluido, passageiro e incerto sem perspectivas futuras. Na literatura líquida de João Gilberto Noll, o leitor “fabrica sua ilusão utilitária” (NOLL, 2006, p. 125).
O que Noll faz nesta narrativa aquosa pela solidão do homem do seu tempo e “engessado” na experiência da perda, é pensar o mundo pela palavra que fabrica. O escritor nos apresenta uma máquina-de-ser não a que tomou o lugar do homem na produção, mas o homem-ser-máquina, traduzindo existencialmente em seu comportamento: hábito e ação, na sua identidade de máquina, a transitoriedade absurda da vida, na sociedade consumista do imediatismo, em que os relacionamentos estão engendrados nessa rede de exigüidade e ausências de humanos em que tudo se transforma e transmuta em nada, em vazio e em segundos, tudo é descartável.
No entanto, tudo tem também o seu preço em meio a tantos avanços tecnocientíficos e biotecnológicos, o homem vê-se saturado de modernidade e paga com a corporeidade e o sacrifício do ser as conseqüências de sua utopia desenvolvimentista. Hoje o homem sem liberdade está destituído de pensar o futuro. No mundo consumista os seres humanos despem-se de si mesmos e vêem-se em contínuo abismo identitário, temporal e espacial, onde muitos não sabem aonde ir. A solução para sobrevivência futura ainda é um enigma e esbarra em algumas indagações a serem respondidas: como dividir o pouco que se tem com tantos que nada têm? Como fixar laços de relacionamentos? Voltaremos à época das tribos em que cada um convive com seu grupo ou já estamos nela?
Mas, em A Máquina de Ser, que homem integra essa fábrica que é a narrativa de João Gilberto Noll? O que se pode afirmar é que o autor fabrica sua escrita talvez ainda querendo acreditar em uma saída, em um consolo na potência afetiva do encontro com o “outro”, na busca contínua da tradução identitária pelo corpo, pela troca e pelo encontro de vários outros “eus”.
O primeiro conto obra-prima deste livro: No dorso das horas, aparece o narrador transformado em imagem e guiado rapidamente no tempo da luz pelo olhar de um homem através de uma câmara, corre ao encontro do que não sabe, até no escuro do espaço deparar-se com um corpo ao qual se une sexualmente, o corpo da filha.
Entre esse e o último conto da obra, que apresenta um alter-ego do autor, João, Noll mostra o quanto a travessia da escrita está pautada na idéia da solidão, da renúncia, demonstrando que no mundo em conflito e sem qualquer fronteira, segurança ou certezas, o corpo também é atingido pelo medo-cósmico (medo de tudo o que nem se sabe). Zygmunt Bauman alerta que “a demarcação entre o corpo e o mundo exterior está entre as fronteiras contemporâneas mais vigilantemente policiadas. Os orifícios do corpo (os pontos de entrada) e as superfícies do corpo (os lugares de contato) são agora os principais focos do terror e da ansiedade gerados pela consciência da mortalidade.” (BAUMAN, 2001, p. 210)
Em Noturnas doutrinas, o escritor diz que “uma umidade lacrimosa corria pelos prédios” (NOLL, 2006, p. 80) No entanto, é no conto que intitula a obra, A Máquina de Ser que João Gilberto Noll presenteia seu leitor com mais um narrador anônimo, andarilho em uma cidade estrangeira. Neste, entretanto, como em Lorde (2004)[v], demonstra talvez uma saída para a condição de vida do protagonista que quer escoar e extravasar a energia pulsional que traz dentro de si: “Lembrei que eu agora só sabia beber um cálice de vinho às portas da madrugada”. “Isso já me bastava para aventurar um pouco minhas idéias que logo retornavam porém a seu leito natural -, por onde as águas desciam em sua mansa sina, dando a funcionar mais uma vez minha máquina de ser.” (NOLL, 2006, p. 120)
Há nestas narrativas a presença de um moto contínuo a alimentar a máquina da criação. Na cidade imaginária de João Gilberto Noll, o estrangeiro em sua máquina de ser sofre uma metamorfose de andarilho a Messias, já que passa a buscar a mercadoria mais preciosa do planeta: trabalho; deseja sua própria morte, diz ter uma missão: pôr a “cabeça a trabalhar por uma causa útil, que naqueles tempos tinha a forma de sondagens em prol de um firme intercâmbio tecnológico entre os nossos dois povos.” (NOLL, 2006, p. 122) Imagina este protagonista a sua terra natal com “máquinas agrícolas novinhas.” Agora tinha uma razão para continuar, assinar papéis na Embaixada para que alguns funcionários tivessem motivo de voltar no dia seguinte. Uma prática redentora que mostra o senso de continuidade de uma função para manter o emprego do “outro”, quando o mercado local das grandes cidades se vê encolhido pelo desemprego, fruto das negociações comerciais globalizadas em que até o dinheiro é movente e está a serviço das “forças do mercado”.
Nas linhas finais da narrativa a solução: “Era só acionar a máquina de ser, que tinha no meu corpo um intérprete. E mandar ver... pronto para seguir vivendo... Era preciso, era preciso, a vida se fazia de minuto a minuto”. (...) Peguei um lenço do bolso. E limpei meu suor ...” O suor do fazer nascer a escrita, o suor do corpo a expelir. (NOLL, 2006, p. 122)
Em outros contos, como Na correnteza, encontra-se a presença dessa escrita que busca a identidade dos protagonistas, umedecida pela palavra: “eu tinha ficado ilhado e pronto”, ou ainda, “entrei no cinema, na tela tudo me estranhava. Não entendia bem a história, a razão de tantas escapadas, tantas pessoas se ferindo ao léu do enredo em correnteza.” O enredo em correnteza é também o narrar compulsivo de Noll, em que as cenas são rápidas, mas não se desgastam, pelo contrário, se encadeiam, mostram imagem após imagem, perfazendo uma narrativa frenética em que o olhar, o interpretar, a leitura e o leitor têm de correr atrás da narrativa para não perder o tempo da linguagem, do seu acontecer, quando o autor põe na voz do narrador o prazer de relatar, e de expor as experiências corporais. (NOLL, 2006, p. 144;147)
Mas neste caso, não só o corpo é intérprete, como o autor alude, mas também salvador do mundo através de sua excreção: “Essa parte da lida [mijou] se alongava mais e mais e sempre, como se ele, depois do beneplácito do banho involuntário, tivesse toda a água do mundo para devolver à terra”. (NOLL, 2006, p.129)
Em suma: o corpo é também linguagem e como tal vem sendo receptáculo de todas as interdições e espaço da escrita vivencial do homem. Uma escrita permeada pelo não-sentido da vida, pelo vazio do ser, pela fluidez da identidade e, sobretudo, pela insatisfação em existir, quando o homem desconhece o outro e até a si mesmo na estranha sensação de ser coisa-nenhuma.
Notas
[1] O título deste artigo provém do arcabouço-teórico do filósofo Zygmunt Bauman detentor do conceito de “modernidade líquida”. A relação deste conceito com a obra de João Gilberto Noll diz respeito à presença do líquido na linguagem do autor com a idéia de desfazimento, em plena interação com os corpos dos personagens desde seu primeiro romance. Um dos narradores anuncia: “Viu a virilha molhada. Notou que toda sua massa se diluía pelos poros. O corpo, ah, se desdobrava em córrego.” (2003, p. 106)
[i] Entrevista. In: Coleção autores gaúchos. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1998, v. 23.
[ii] O “esvaziamento do ser” na contemporaneidade é marcado pelo “desvanecimento do sujeito”. Foucault em “As palavras e as coisas” aponta o ocaso de uma forma histórica do sujeito, ou seja, a dissolução do “eu” preconizada pela modernidade. “Na representação, os seres não manifestam mais sua identidade, mas a relação exterior que estabelecem com o ser humano.” (2002, p. 431)
[iii] Consoante Zygmunt Bauman, em “Vidas desperdiçadas”, “a geração X (rapazes e moças nascidos na década de 1970) está polarizada de modo mais agudo que a precedente. É verdade que a desconcertante volatilidade da posição social, a redução de perspectivas, o viver ao deus-dará, [...] a imprecisão das regras – tudo isso assombra a todos eles sem discriminação, gerando ansiedade, destituindo todos os membros dessa geração, ou quase todos, da autoconfiança e da auto-estima. (2005, p. 23)
[iv] Palavras usadas em Mínimos, múltiplos, comuns (2003), p. 29
[v] Lorde é o último romance de João Gilberto Noll publicado pela Editora Francis. Nele, o autor aponta o processo de mutação de um escritor brasileiro que vai para Londres e vive a difícil experiência de conviver no estrangeiro sem negar sua identidade, nacionalidade, cor e religião.
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Sobre a Autora do Artigo:
Tânia T. S. Nunes
Professora de Letras e Literatura, aluna do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu, Mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense – UFF
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Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - n. 83 - abril de 2008 - ano VII
http://www.espacoacademico.com.br/
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