sexta-feira, 4 de abril de 2008

John Maxwell Coetzee (O Mestre de Petersburgo)

Gênero: Romance

Dostoievski é um dos maiores escritores da literatura universal, percursor de um novo estilo de escrita no escalpe psicológico dos personagens dos seus romances, sem limites nem tabus na prescrutação dos meandros mais obscuros e tantas vezes não aceites pela maioria das pessoas, que tanto ajudou na aceitação da plenitude do ser, e não apenas dos códigos educacionais e morais da sociedade em que cada indivíduo viveu ou vive. Inspirador de muitos escritores, como Kafka e Camus, de filósofos como Nietzsche, do pai da psicologia, Freud, e de toda uma corrente de filosofia existencialista, com expoentes em Heidegger e Sartre, Dostoievski continua a inspirar, sucessivamente, novos escritores, como foi o caso de Coetzee neste romance.

Dostoievski teve uma vida extremamente conturbada, numa luta interior intensa na procura da explicação da existência, deixando muitos espaços em branco na ampla diversidade dos seus escritos e ações. Tendo estado próximo dos circuitos revolucionários da Rússia do século XIX, que lhe valeram 10 anos de reclusão na Sibéria, após o que escreveu os seus maiores romances, constantemente fustigado pela dureza da sua vida e pelas contradições dos seus comportamentos e paixões, consegue exprimir nos seus romances facetas completamente divergentes de atitudes perante a vida, culminando com as 3 facetas da sua personalidade nos Irmãos Karamazov (o boêmio, o agnóstico racional e o religioso).

A partir de um personagem de características tão complexas como as de Dostoievski, Coetzee atreve-se, num trabalho extremamente audaz e que facilmente estaria condenado ao fracasso, a colocar-se dentro da mente de Dostoievski e seguir as malhas do seu próprio pensamento.

Em «O Mestre de Petersburgo», Dostoievski, na altura a residir na Alemanha, tem que voltar a Petersburgo em virtude da morte súbita e estranha do seu jovem enteado, Pavel. Hospedado no mesmo quarto onde Pavel residia, tentando encontrar explicações para a morte do seu filho (que era como o considerava), envolve-se com a mulher que lhe alugou o quarto, Ana, por via do seu desespero pela morte de Pavel, sentindo que em Ana encontrará a explicação que tanto procura, e o conciliar dos universos divergentes dele próprio e de Pavel, como o sentir de toda uma Rússia em toda a sua alma e mistério.

Em sucessivas tentativas e deambulações espirituais no desespero de chegar a Pavel, envolve-se num complexo enredo em que descobre o envolvimento de Pavel com um grande anarquista, Nechaiev. Os encontros com a polícia e com o próprio Nechaiev tornam-se inevitáveis, o que vai culminar em grandes momentos de discussão ideológica e espiritual, sintomático do estado de espírito em que Dostoievski deveria estar mergulhado quando escreveu «Os Possessos».

O desespero e angústia de Dostoievski é matriz de todo o romance, devido à morte de Pavel que lhe reabre vários compartimentos da sua alma que já estavam fechados, mais por comodismo ou conformismo da idade (Dostoievski já tinha mais de cinqüenta anos) do que por estarem completamente bem definidos, o que o leva a ter que se arriscar e com isso descobrir novos caminhos, não só dentro de si próprio, como de compreensão do pensamento e espírito dos outros personagens que interagem com ele e complementam os seus próprios pensamentos de forma progressiva, até uma plenitude que o confunde e o assusta, mas, acima de tudo, o eleva a um conhecimento da vida que o próprio tem dificuldade em aceitar, pelo horror da realidade que ele pensava já ter descortinado o suficiente nos seus escritos passados.

No entanto, «O Mestre de Petersburgo» está longe de ser apenas o hipotético mas ainda assim magistral debate de idéias e escalpe psicológico do mestre percursor do monólogo psicológico, mas o encontro do escritor (de qualquer bom escritor) consigo próprio, através da catarse da sua escrita, encontrando-se por fim nu perante si próprio, sozinho e sem alma perante o esvaziamento que se deu ao longo da sua carreira e vida de escritor, pagando o elevado preço que é o uso e esbanjamento da sua própria vida e alma na procura da explicação da existência da humanidade, por mais ínfimos traços de luz que encontre nos meandros da escuridão do ser.

Coetzee revela uma escrita extremamente madura e superior, quer a nível de estrutura da narrativa em si, quer na perfeição dos diálogos, dos tempos de ação, na caracterização das personagens, além de ter passado com distinção o rigoroso teste de entrar dentro da psicologia de um dos maiores escritores de todos os tempos, tornando-o como exemplo soberbo de ilustração do estado de alma de qualquer grande escritor, elevando-se, de certa forma, a esse estatuto só ao alcance de alguns.

Um livro de leitura obrigatória, mesmo para leigos em Dostoievski, pois a inteligente escrita de Coetzee relembra de forma concisa e pontual, e nos devidos tempos, aquilo que é necessário saber da vida do escritor por forma a se compreender melhor o romance.

No último capítulo do romance, dá-se a catarse final de Dostoievski na sua busca espiritual de Pavel, e o descobrimento ou revelação, do fantástico desfecho do cumprimento do destino solitário, simultaneamente divino e macabro, do grande escritor que Dostoievski foi, e aquilo que espera todo o grande escritor ou aquele que aspira a sê-lo. Coetzee, por o ter escrito, da forma que o fez, e ousando de forma temerária no exemplo que usou, arrisca-se a fazer jus a esse epíteto em relação a si próprio.

Fonte:
Paulo Neves da Silva Oeiras . In
http://www.citador.pt/

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