sexta-feira, 4 de abril de 2008

John Maxwell Coetzee (Elizabeth Costello)

Gênero: Romance

Uma escritora em fim de vida encontra-se numa catarse de debate de idéias e conceitos através da sua participação numa série de palestras onde com alguma dificuldade e cansaço expõe e defende posições éticas e morais controversas, presa da amplitude de horizontes que o caráter subjetivo da profissão literária lhe impõe, enfrentando ainda confrontos com familiares e pessoas que lhe são próximas, até culminar num surreal juízo final às portas do céu que põe à prova as bases da sua identidade e das suas convicções, num limbo onde todas as certezas desabam uma a uma para encontrar aquela que afinal nunca deixou de a ser.

Nas várias situações por que passa, Elizabeth faz uma palestra sobre o realismo, onde utiliza a alegoria de Kafka em que um macaco disserta perante uma academia, colocando a questão da percepção do real; participa numa discussão sobre o âmago do romance e como este deve alcançar o seu público através do exemplo mal sucedido do romance africano; disserta em outra palestra, muito controversa, sobre os direitos dos animais e a equiparação daquilo que se faz a estes com o que sucedeu no Holocausto, evocando ainda através da poesia o ser intangível que existe em cada animal; participa noutra palestra onde a sua irmã, missionária em África, ao receber o doutouramento honoris causa em Humanidades coloca em causa o papel das Humanidades hoje em dia, vendo esvaziado o seu sentido face à morte da procura do divino e à industrialização da interpretação racionalista dos textos; finalmente, como conseqüência da sua palestra sobre os animais, Elizabeth é convidada para uma palestra sobre o Mal, onde se vai deparar num beco sem saída ao criticar outro escritor por expor o Mal de forma tão cruel (e realista) num romance que publicou, pondo em causa o papel da escrita na sua missão.

O homem e a sua relação com o divino, os deuses da mitologia grega e as questões existenciais que se lhes deparavam e que motivavam as suas relações com os humanos, a tênue fronteira entre o expoente humano e a eternidade, a beleza do ideal grego versus o trilho religioso que deu origem ao nascimento da disciplina das Humanidades, são temas que Elizabeth explora como conseqüência dos debates e confrontos em que participou, levando-a a uma cada vez mais complexa, conquanto lúcida, plataforma de contemplação do ideal da existência do ser humano ao longo de toda a História.

De insegurança em insegurança, apesar da sua entrega real e sincera ao debate de todas as questões com uma mente muito aberta e humilde, absorvendo rapidamente e de forma construtiva todos os pontos de vista divergentes, Elizabeth sofre a glória solitária e a angústia do pensamento do escritor que tudo relativiza, excelente perceptor do real mas transmissor muitas vezes incompreendido até por si próprio, num enigma com desfecho revelador na carta que encerra o livro.

Num romance onde a filosofia, nos seus aspectos mais práticos, se encontra bastante presente, a versatilidade e vivacidade do debate de idéias contagia o leitor, que, apesar da densidade de algumas páginas que o obrigam a parar periodicamente para reflexão, faz com que a curiosidade sobre o destino de Elizabeth o prenda até à última página, sendo presenteado no final com uma autêntica tese acerca do significado e amplitude da existência humana, e em particular sobre o fatalismo e armadilha em que cai todo o escritor digno desse nome.
Extrato :

- O futuro do romance não é um assunto que me interesse sobremaneira - começa ela, tentando surpreender quem a ouvia. - Aliás, o futuro em geral não me interessa sobremaneira. Afinal, o que é o futuro senão uma estrutura de esperanças e expectativas? Reside na mente; não é real.

«É claro que podem dizer que o passado também é uma ficção. O passado é história, e o que é a história senão uma história feita de ar que contamos a nós próprios? Contudo, há algo de milagroso no passado que o futuro não tem. O que há de milagroso no passado é que conseguimos... sabe Deus como... fazer milhares e milhões de ficções individuais, ficções criadas por seres humanos individuais, suficientemente articuladas para nos dar o que parece ser um passado comum, uma história partilhada.»

«O futuro é diferente. Não possuímos uma história partilhada do futuro. A criação do passado parece ter esgotado as nossas energias criativas, coletivas. Comparada com a nossa ficção do passado, a nossa ficção do futuro é algo de esquemático, exangue, como costumam ser as visões do céu. Do céu e até do inferno.»

«O romance, o romance tradicional» continua ela a dizer, «é uma tentativa de se compreender o destino humano caso a caso, compreender como é que uma pessoa, tendo começado no ponto A e tido as experiências B, C, D chega ao ponto Z. Tal como a história, o romance é, portanto, um exercício para se tornar o passado coerente. Tal como a história, explora as várias contribuições do caráter e circunstâncias para a formação do presente. Ao fazê-lo, o romance sugere como podemos explorar a capacidade do presente para produzir o futuro. É por isso que temos esta coisa, esta instituição, este meio chamado romance.»

Fonte:
Paulo Neves da Silva Oeiras. In http://www.citador.pt/

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