quarta-feira, 9 de abril de 2008

Eduardo Galeano (A Literatura dos Conquistadores)

O fim das guerras dentro dos territórios ibéricos - Portugal e Espanha - a centralização política em torno de um Estado forte, as inovações da tecnologia marítima, o papel economicamente empreendedor de uma burguesia de origem judaica e a espetacular audácia de milhares de homens garantem a portugueses e espanhóis a primazia na grande expansão européia, iniciada no século XV e consolidada no século XVI.

Em nenhuma outra época houve movimento expansionista tão abrangente e avassalador. À conquista comercial dos países asiáticos e africanos soma-se a conquista direta do continente americano. Está se abrindo um processo civilizatório que durará mais de quinhentos anos, sob domínio ocidental, e que modificará radicalmente a face do mundo.

Trata-se de uma façanha épica sem precedentes. Um país como Portugal, que tinha apenas um milhão de habitantes, estende o seu domínio por vastos territórios. Nada parece deter essas frágeis caravelas e seus marinheiros que enfrentam calmarias, fome, sede, monstros marinhos, gigantes, sereias, e súbitos buracos, localizados nos confins do oceano para tragar as embarcações. Anima tais homens o espírito mercantilista - desejo de ouro, especiarias e quaisquer outros produtos que gerassem lucro. Por ele, todos os medos serão superados e todas as aventuras se tornarão possíveis. Em Mar português, Fernando Pessoa traduz essa admirável vocação de seu povo para as grandes navegações:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador*
Tem que passar além da dor.(...)

* Bojador: Cabo na África que foi durante muito tempo o limite geográfico das navegações européias. Em 1434, foi ultrapassado pelo português Gil Eanes.

O ENCONTRO COM OS NATIVOS

Civilizações díspares povoam as terras "descobertas" por portugueses e espanhóis. No lado hispânico, astecas, maias e incas apresentam surpreendentes níveis de organização social e de conhecimento científico e tecnológico. No lado luso, ao contrário, os nativos vivem na Idade da Pedra e costumam praticar o canibalismo.

Em regra geral, todos recebem os brancos com hospitalidade e oferendas, sem se dar conta da destruição que os aguarda. Uma destruição que não foi programada, mas que acontecerá tanto pela superioridade bélica dos europeus e as doenças que trazem quanto pela inocência dos indígenas. Entre estes, os que conseguirem escapar das doenças, da escravidão e dos arcabuzes, serão submetidos a um poderoso processo de deculturação, ou seja, perderão os seus valores culturais e, com isso, a sua identidade histórica, deixando de ser "índios" sem alcançar a condição de homens brancos.


A ocidentalização da América será feita, portanto, a ferro e fogo, num processo doloroso para os primitivos donos do território. Do ponto de vista histórico, este processo era dramaticamente inevitável, dada a ânsia imperialista dos países europeus e a incapacidade indígena de autodefesa.

LITERATURA INFORMATIVA

As primeiras manifestações literárias sobre a América estão delimitadas pelo seu caráter informativo. Expressam, sem maiores intenções artísticas, os contatos do europeu com o novo mundo. São documentos a respeito das condições gerais da terra conquistada. Neles se descrevem os problemas, as prováveis riquezas, as lutas de dominação, a paisagem física e humana, etc. As cartas de Hernán Cortez sobre a conquista do México são o exemplo mais famoso desse tipo de literatura.

A princípio, a visão européia é idílica. Dentro da tradição utópica do Renascimento, a América surge como o paraíso perdido, local de maravilhas e abundâncias. O país de Eldorado seduz a imaginação e os nativos aparecem sob tintas favoráveis. Porém, na segunda metade do século XVI, à medida que os índios começam a se opor aos desígnios imperiais, iniciando a guerra contra os invasores, a visão rósea transforma-se. A natureza continua exuberante - na ótica colonizadora - mas os habitantes da terra são pintados como seres boçais e animalescos.

A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

Entre os testemunhos deixados pelos portugueses no século XVI, sobre o Brasil, o mais importante é a Carta do escrivão Pero Vaz de Caminha, companheiro de viagem do almirante Cabral, em 1500. O texto tem um notável valor histórico - por ser o primeiro registro escrito sobre a realidade local - mas vale ainda mais pela agudeza com que Caminha revela a paisagem física e humana daquilo que ele julga ser uma imensa ilha.

Verdadeiro homem do Renascimento, o escrivão da frota lusa transforma a Carta num monumento de curiosidade antropológica e de abertura intelectual à diversidade. O crítico Sílvio Castro aponta alguns dos aspectos mais significativos do texto:
- A atenção objetiva pelos detalhes.
-A simplicidade no narrar os acontecimentos.
- A disposição humanista de tentar entender os nativos.
- A capacidade constante de maravilhar-se.

Vejamos como ele descreve o primeiro contato com os índios:

A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco, do comprimento de uma mão travessa* e da grossura de um fuso de algodão. (...)
Os cabelos deles são corredios. E andam tosquiados, de tosquia alta (...) Quando eles vieram a bordo o Capitão (Cabral) estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar muito grande no pescoço e tendo aos pés, por estrado, um tapete. E eles entraram sem qualquer sinal de cortesia ou de desejo de dirigir-se ao Capitão ou a qualquer outra pessoa presente, em especial. Todavia, um deles fixou o olhar no colar do Capitão e começou a acenar para a terra, como querendo dizer que ali havia ouro. (...) Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo: pegaram-no logo com a mão e acenavam para a terra, como a dizer que ali os havia. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso dele; uma galinha: quase tiveram medo dela - não lhe queriam tocar, para logo depois pegá-la, com grande espanto nos olhos.
Deram-lhe de comer: pão e peixe cozido, confeitos, bolos, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada de tudo aquilo. E se provaram alguma coisa, logo a cuspiam com nojo. Trouxeram-lhes vinho numa taça, mas apenas haviam provado o sabor, imediatamente demonstraram não gostar e não mais quiseram.


A NUDEZ DAS ÍNDIAS

A imagem mais desconcertante para os marinheiros lusos é a da nudez das índias. Vindos de um mundo onde o corpo era censurado e reprimido, de acordo com as convicções medievais, eles não escondem o assombro diante do que vêem. Caminha traduz esse sentimento, mas com seu particular espírito renascentista, procura ver os corpos femininos desnudos dentro do quadro cultural da sociedade indígena:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e muitos gentis, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (...)

E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima, daquela tintura; e certamente era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha - que ela não tinha - tão graciosa que, a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, provocaria vergonha por não terem as suas como a dela. (...)

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano para que se cobrisse; e o puseram em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, com respeito ao pudor.

A MISTURA DE DANÇAS E MÚSICA

Um dos momentos mais curiosos da Carta é quando índios misturam suas danças com a música européia de um gaiteiro:

E do outro lado do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então, para além do rio, Diogo Dias, que fora tesoureiro da Casa Real em Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. Logo meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e o acompanhavam muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhe ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e o salto mortal, de que eles se espantavam muito e riam e folgavam.

O IDEAL SALVACIONISTA

A profunda religiosidade portuguesa - que é um dos móveis da conquista - mostra-se na possibilidade de conversão dos primitivos habitantes, admitida por Caminha e sugerida ao destinatário da Carta, o rei D. Manuel.

E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que nos entenderem (...) E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.

A VISÃO DO PARAÍSO

Como diz o crítico Sílvio Castro "o europeu, através da Carta, toma conhecimento da existência de um novo mundo. Concreto. Imediato. Rico de cores, calor, árvores, frutos, pássaros, cantos, frescura. A terra é ampla, imensa na linha do horizonte. O céu é limpo, os portos, seguros." A imagem é a do paraíso terral, como se percebe no final do texto de Caminha:

Essa terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até a outra ponta que contra o norte vem, que nós deste ponto temos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Tem, ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra por cima é toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia redonda, muito chã e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos - terra que nos parecia muito extensa.

Até agora não podemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem o vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares, frescos e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como de lá.

As águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!

Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.

RELATOS DE VIAJANTES

Durante todo o século XVI, o Brasil desperta grande fascínio entre os europeus. Além dos colonos portugueses e dos invasores franceses, outros europeus visitam a terra recém conquistada. Move-os a cobiça, o desejo de aventuras, a curiosidade sexual ou o ideário religioso. Alguns entre eles resolvem registrar suas andanças pelos trópicos e esses relatos obtêm êxito na Europa, onde alimentam a imaginação de leitores excitados pelos descobrimentos.

Dois desses viajantes escrevem textos definitivos sobre a vida cotidiana e os costumes dos tupinambás que dominavam uma expressiva faixa litorânea do Brasil: o alemão Hans Staden e o francês Jean de Léry.

DUAS VIAGENS AO BRASIL

Sob este nome, Hans Staden publica na Alemanha, em 1557, um livro no qual descreve as suas aventuras em território brasileiro, especialmente os nove meses e meio em que esteve prisioneiro dos nativos. Em busca de aventuras (e dinheiro, provavelmente) o autor vai de Bremen para Lisboa e daí parte para o Brasil como artilheiro de uma nau portuguesa. A chegada dá-se em Pernambuco e logo está metido em batalhas contra índios inimigos. Esta primeira viagem encerra-se em seguida porque a caravela retorna à Europa.

A segunda viagem é a mais emocionante: Hans Staden participa de uma expedição que alcança a ilha de Santa Catarina, permanecendo no local por cerca de dois anos. Dirige-se então - sempre pelo mar e com outros marinheiros portugueses - a São Vicente, no litoral paulista. Ali, numa caçada, será feito prisioneiro pelos tupinambás. Levado à aldeia indígena, é obrigado a gritar para as mulheres, em língua tupi: "Estou chegando, eu, a vossa comida".

A ANTROPOFAGIA

Enquanto homens, mulheres e crianças fazem sinais para indicar a forma que o devorariam, o aventureiro alemão imagina como poderia fugir de seu destino. Ao mesmo tempo, observa com enorme curiosidade os costumes dos índios. Nos dias e meses seguintes alternará a observação meticulosa com tentativas de escapar do ritual antropofágico, ao qual está condenado. Sabedor, por fim, de que havia um navio francês nas imediações, ele convence o chefe - a quem fora presenteado - a levá-lo até lá. Usando de muita persuasão, astúcia e presentes, Staden livra-se de seus captores e acaba sendo resgatado pelos franceses.

A antropofagia é o motivo principal de seu livro, talvez até pelo interesse que o assunto despertava na Europa. Porém, tanto no texto principal quanto num relatório que acrescenta como arremate das Viagens, ele apresenta vivas descrições dos costumes indígenas: onde e como moram, como acendem o fogo, a maneira que cozinham e o que comem, seus utensílios, sua destreza no manejo do arco e flecha e de outros instrumentos, como preparam a bebida e com ela se embriagam, no que acreditam, suas formas de guerrear, etc.

Além disso, mostra aos leitores europeus os animais da terra, as árvores, a vegetação, pintando um quadro intenso e colorido da realidade brasileira de então, transformando o seu livro num notável êxito editorial do século XVI.

Vejamos como ele descreve a execução e a devoração de um inimigo pelos tupinambás:

Quando trazem para casa um inimigo, batem-lhe as mulheres e as crianças primeiro. A seguir colam-lhe ao corpo penas cinzentas, raspam-lhe as sobrancelhas, dançam em seu redor e amarram-no bem. Dão-lhe então uma mulher para servi-lo. Se tem dele um filho, criam-no até grande e o matam e o comem quando lhes vem à cabeça.

Dão de comer bem ao prisioneiro. Conservam-no por algum tempo e então se preparam. (...) Assim que está tudo preparado, determinam o tempo em que ele deve morrer e convidam os selvagens de outras aldeias para que venham assistir. Enchem de bebidas todas as vasilhas. Logo que estão reunidos todos os que vieram de fora, o chefe da choça diz: "Vinde agora e ajudai a comer o vosso inimigo". (...)

Quando principiam a beber, levam consigo o prisioneiro que bebe com eles. Acabada a bebida, descansam no outro dia e fazem para o inimigo uma pequena cabana no local em que deve morrer. Aí passa a noite, sendo bem vigiado. (...)

O guerreiro que vai matar o prisioneiro diz para o mesmo: "Sim aqui estou eu, quero te matar, pois tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos". Responde-lhe o prisioneiro: "Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão me vingar". Depois, ele é golpeado na nuca, de modo que lhe saltem os miolos, e de imediato as mulheres arrastam o morto para o fogo, raspam-lhe toda a pele, tornando-o totalmente branco e tapando-lhe o ânus com uma madeira, a fim de que nada dele se escape.

Depois de esfolado, um homem o pega e lhe corta as pernas acima dos joelhos e os braços junto ao corpo. Vêm então quatro mulheres que apanham quatro pedaços, correndo com eles em torno das cabanas, fazendo grande alarido, em sinal de alegria. (Costume indígena já referido em outra página por Staden) Separam após as costas, junto com as nádegas, da parte dianteira. Repartem isso entre eles. As vísceras são dadas às mulheres. Fervem-nas e com o caldo fazem uma papa rala que se chama mingau que elas e as crianças sorvem. Comem também a carne da cabeça. As crianças comem os miolos, a língua e tudo o que podem aproveitar.

Quando tudo foi partilhado, voltam para casa, levando cada um o seu quinhão.

VIAGEM À TERRA DO BRASIL

Igualmente centrado no cotidiano da vida indígena, o livro do calvinista francês Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, revela uma percepção histórica mais apurada dos costumes nativos pelo fato do autor ser um homem culto, de formação humanista e, portanto, aberto às diferenças entre as civilizações.

Léry permanece no país durante um ano(1557), como enviado do líder religioso Calvino, para servir a Villegagnon, fundador de uma colônia francesa na futura cidade do Rio de Janeiro. Ali tem a oportunidade de conviver (em liberdade) com os tupinambás, fazendo uma série de anotações interessantíssimas a respeito de sua existência.

Movido por um espírito universalista, encara com simpatia os índios, relativizando moralmente certos hábitos que na Europa passavam por bárbaros. Essa compreensão revela-se, por exemplo, na análise da nudez feminina:

Quero responder aos que dizem que a convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as mulheres, incita à lascívia e à luxúria. Direi que (...) a nudez grosseira das mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam. Os atavios, cabelos encrespados, golas de rendas, anquinhas, sobre-saias e outras bagatelas que as mulheres de cá (européias) se enfeitam e de que jamais se fartam, são causas de males incomparavelmente maiores do que a nudez habitual das índias.

Além de detalhar um significativo conjunto de costumes religiosos, medicinais, sociais (casamentos, funerais, educação dos filhos, etc.) e de mostrar certas práticas desconhecidas na época, entre os quais a preparação e o uso do cauim e do fumo, o viajante francês descreve com minúcias o ímpeto guerreiro dos homens tropicais, vendo as batalhas entre as tribos de forma quase poética.

Obviamente também a antropofagia é um dos temas predominantes da obra, sendo mostrada com uma riqueza de detalhes em muito superior à obra de Hans Staden. Observe-se esta cena, ocorrida logo após a morte do prisioneiro:

Em seguida, as mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas de carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros, chegam com água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o esquartejam com tal rapidez que não faria melhor um açougueiro ao esquartejar um carneiro.

E então - incrível crueldade - assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torná-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos, uns após outros, e lhes esfregam o corpo, os braços e as pernas com o sangue inimigo a fim de torná-los mais valentes.

Em seguida, todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, (ver ilustração), em torno do qual as mulheres, principalmente as velhas gulosas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira. Em seguida exortam os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos e lambem os dedos e dizem iguatu, o que quer dizer "está muito bom!"

Tais exemplos de crueldade dos índios para com seus inimigos são, contudo, abrandados pelo relativismo moral que Léry estabelece:

É útil, entretanto, que ao ler sobre semelhantes barbaridades, os leitores não se esqueçam do que se pratica entre nós. Em boa e sã consciência acho que excedem em crueldade aos selvagens os nossos usurários (agiotas) que, sugando o sangue e o tutano, comem vivos órfãos, viúvas e outras criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim lentamente.

A visão abrangente e humanista do viajante francês leva-o não apenas compreender o nativo, mas também a apreciar a terra brasileira como um paraíso terreal:

Por isso, quando a imagem desse novo mundo, que Deus me permitiu ver, se apresenta a meus olhos, quando revejo assim a bondade do ar, a abundância de animais, a variedade de aves, a formosura das árvores e das plantas, a excelência das frutas e, em geral, as riquezas que embelezam essa terra do Brasil, logo me acode a exclamação do profeta no salmo 104: "Senhor Deus, como tuas diversas obras são maravilhosas em todo o universo! ..."

OUTROS VIAJANTES

Ainda dentro de uma linha de exaltação da terra, ao lado de registros realistas dos primeiros esforços de colonização, encontramos a História da Província de Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gadavo (1576), Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Souza e Tratados da terra e gente do Brasil, de Fernão Cardim.

LITERATURA JESUÍTICA

Os impérios ibéricos contêm em sua expansão uma profunda ambigüidade. Ao espírito capitalista-mercantil associam um forte ideal religioso, definido por Darcy Ribeiro como salvacionista. Dezenas de padres acompanham as expedições a fim de converter os gentios.

O racionalismo capitalista, dando aos negócios autonomia frente à religião, não triunfará por completo em Portugal e Espanha. Nesses países, a burguesia comercial e financeira (normalmente judaica) se vê impedida de impor a sua visão leiga de mundo. Pelo contrário, desde 1536, em Lisboa, funciona o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, perseguindo judeus, protestantes, bruxas e demais "hereges".

Contrária à Ciência, às Artes e tudo aquilo que representasse liberdade de expressão e de idéias, a Inquisição estabelece o terror nos países católicos, estimulando a delação, promovendo a tortura e o assassinato dos inimigos, admitindo apenas o pensamento único e celebrando um bárbaro retorno ao mundo medieval. A ordem dos dominicanos sobressai-se na tarefa de satanizar e punir os rebeldes, servindo de grande inquisidora na guerra santa contra o Mal.

O resultado desse sombrio processo de opressão não é apenas o retrocesso científico, mas a desgraça econômica que se abaterá sobre a Península Ibérica em função do expurgo das forças modernizadoras, representadas pela burguesia judaica. Sem uma classe empresarial audaciosa e empreendedora, Portugal e Espanha afundam, já no fim do século XVI, numa decadência secular. Enquanto isso, os judeus expulsos transferem-se majoritariamente para os Países Baixos. Lá iriam exercer papel decisivo na transformação da Holanda em grande potência mundial.

A CONTRA-REFORMA E OS JESUÍTAS

A Contra-Reforma - desencadeada pelo papa Paulo III, no célebre Concílio de Trento de 1545 - intensifica o combate contra os protestantes, ao mesmo tempo que amplia a missão evangelizadora dos padres em terras americanas.

A mais importante entre as ordens religiosas dedicadas à conversão dos gentios é a jesuítica. Fundada alguns anos antes da Contra-Reforma por Ignácio de Loyola, a Companhia de Jesus sempre primou pelo alto nível intelectual, pelo ardor místico, pela disciplina e pela fé inquebrantável de seus componentes. Caberia a ela o papel de ponta-de-lança da irradiação do catolicismo. Desde a década de 1540, os Soldados de Cristo (jesuítas), como apóstolos sem medo e sem mácula, se lançarão a mundos desconhecidos, no intuito de apontar aos povos de outros continentes as excelências do catolicismo.

OS SOLDADOS DE CRISTO NO BRASIL

Os primeiros jesuítas desembarcam no Brasil em 1549, juntamente com o governador Tomé de Sousa. Além do trabalho catequético, vão criar os primeiros colégios no país: Bahia (15 ); São Paulo (1554); Rio de Janeiro (1568) e Olinda (1576). Iniciam desta forma um domínio absoluto sobre o sistema educacional, - interrompido por sua expulsão de Portugal e demais colônias em 17 - de sorte que todas as manifestações culturais da sociedade brasileira, nos três primeiros séculos nascem sob a órbita do jesuitismo.

Já o seu trabalho com os índios até hoje gera discussões. De um lado, os admiradores; de outro, os detratores. Todos (a seu modo) com razão. Os que defendem os jesuítas alegam:
A denúncia contínua dos massacres cometidos contra os nativos.
A resistência contra a escravidão indígena levada a cabo pelos colonos.
A luta para organizar os índios em aldeamentos e missões, dulcificando a sua vida, numa espécie de sociedade comunista cristã primitiva.
A transmissão da fé católica aos indígenas garante a estes um lugar no mundo ( e no além-mundo), já que o contato com os brancos traz a morte de seus deuses e de sua cultura, deixando-os numa terrível orfandade que só o catolicismo preenche.

Por seu turno, os inimigos dos jesuítas argumentam com idéias antagônicas:
A implacável destruição de valores culturais dos indígenas como a poligamia, a antropofagia e a nudez.
A impugnação das crenças das tribos, apontadas como mentirosas e demoníacas.
A substituição da vida nômade pela vida de aldeamentos, onde os índios se tornam presas mais fáceis dos bandeirantes e capitães de mato.
A adoção de uma religiosidade que não podem compreender e que domestica seus instintos de defesa.

Independentemente de tais posicionamentos, o trabalho de catequese dos jesuítas acaba se realizando. Também a incansável luta contra a escravidão dos índios torna-se a marca registrada dos discípulos de Loyola, a um ponto que os colonos manifestarão ódio visceral aos padres da Companhia de Jesus.

O que se pode afirmar hoje é que - apesar de todos os erros - a ação jesuítica acabou produzindo uma ideologia protetora das comunidades indígenas e impedindo a destruição completa dos antigos habitantes da terra.

JOSÉ DE ANCHIETA

Boa parte da literatura escrita pelos padres possui uma dimensão meramente informativa. Enviam aos superiores notícias da obra catequética e dos problemas da ordem. Simultaneamente, surgem os primeiros religiosos dispostos a elaborar uma tosca literatura, destinada à conversão dos indígenas.

Avulta então o nome de José de Anchieta. Dotado de sólida formação religiosa e com senso artístico acima do comum, ele criará simultaneamente:
Uma produção refinada: poemas e monólogos em latim que parecem destinadas a satisfazer suas necessidades espirituais mais profundas;
Uma produção didática - hinos, canções e especialmente autos*, que visavam infundir o pensamento cristão nos índios.

OS AUTOS

Interessa-nos hoje, sobretudo, a obra teatral de Anchieta. Nela, o autor intenta conciliar os valores católicos com os símbolos primitivos dos habitantes da terra e com os aspectos da nova realidade americana.

Os elementos sagrados do catolicismo europeu ligam-se aos mitos indígenas, sem que isso signifique uma contradição maior, pois as idéias que triunfam nos espetáculos são evidentemente as do padre. As crendices e superstições dos nativos acabam vinculadas ao pecado e seu poderoso agente, Satanás.

Neste confronto perpétuo entre o bem e o mal, o primeiro é defendido por santos e anjos, os quais expressam o cristianismo e subjugam o segundo, constituído por deuses e pajés dos nativos, misturados com os demônios da tradição católica. Desta forma, os índios (sobremodo os curumins) percebem que os seus valores são falsos e corruptos e aceitam de melhor grado os princípios cristãos.
Do ponto de vista da encenação dos autos, - conforme depoimentos de época - a liberdade formal salta aos olhos: o teatro anchietano pressupõe o lúdico, o jogo coreográfico, a cor, o som. É algo arrebatador, de enorme fascínio visual. Dirige-se mais aos sentidos do que à razão, apelando para a consciência mítica dos nativos. Santos e demônios duelam; desencadeiam-se milagres e apocalipses; alternam-se elementos históricos e fictícios, religiosos e profanos; pequenos sermões musicados irrompem no meio das cenas. Perante essa festa para as emoções e o coração, o indígena vacila em suas crenças.

Alegrem-se os nossos filhos
Por Deus os ter libertado
Guaixará vá para o inferno
Guaixará, Aimbiré, Saravaia
Vão para o inferno.

Os autos anchietanos contribuem para deculturar os índios, que assim perdem a sua identidade. Desajustados ante a nova ordem social e psicológica, irão se ver, como disse José Guilherme Merquior, "dolorosamente arrancados à cultura materna e dolorosamente desarmados ante a bruta realidade da experiência colonial."

O PAPEL DE ANCHIETA EM NOSSA LITERATURA

O crítico Afrânio Coutinho sustenta que a literatura teria nascido, no Brasil, pelas mãos dos jesuítas. Assim, José de Anchieta seria o nosso primeiro escritor. Tal argumentação é refutada pela maioria dos estudiosos, pois o padre possui uma visão de mundo tipicamente européia. Por isso, os elementos culturais indígenas presentes em seu teatro são destruídos - dentro da ação dramática - com pleno apoio do autor que se serve deles apenas para reafirmar um sistema de idéias alheio ao universo dos próprios índios.

Além disso, a sua obra teatral não tem seguidores. Não inicia qualquer tradição no gênero dramático brasileiro. Não deixa nenhum rastro. A originalidade de Anchieta consiste na criação de objetos culturais com fins religiosos para um público que jamais teria acesso à produção estética dos homens brancos. Fora essa circunstância, sua importância no panorama da literatura nacional é insignificante.

O LADO BRUTAL DA CONQUISTA

Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais, engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas nativas conhecia o ferro ou o arado, nem o vidro, nem a pólvora. A civilização que se abateu sobre estas terras vivia a explosão criadora do Renascimento: a América aparecia como uma invenção a mais, incorporada à da pólvora, da imprensa, do papel e da bússola. o desnível de desenvolvimento entre ambos os mundos explica a relativa facilidade com que sucumbiram as civilizações nativas. Fernando Cortez desembarcou em Vera Cruz acompanhado por apenas 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16 cavalos, 10 canhões de bronze e alguns arcabuzes, mosquetões e pistolas. Isso lhes bastou. E, no entanto, a capital dos astecas, Tenochtitlán, era na época cinco vezes maior que Madri e duplicava a população de Sevilha, a maior das cidades Espanholas. Francisco Pizarro, por seu lado, entrou em Cajamarca com 180 soldados, 37 cavalos e encontrou um exército de 100 mil índios.

Os indígenas foram também derrotados pelo assombro. O imperador Moctezuma recebeu em seu palácio as primeiras notícias: um morro grande andava movendo-se pelo mar. Outros mensageiros chegaram depois. Os estrangeiros traziam "veados que os carregavam tão alto como nos tetos". Por toda a parte os seus corpos estavam vestidos, "somente apareciam suas caras. São brancas como se fossem de cal". Moctezuma acreditou que era o deus Quetzalcóalt que voltava.(...) Os deuses vingativos que regressavam para acertar contas com seus povos traziam armaduras e cotas de malha, brilhantes capacetes que devolviam os dardos e as pedras; suas armas lançavam raios mortíferos e obscureciam a atmosfera com fumos irrespiráveis. Os conquistadores praticavam também, com refinamento e sabedoria, a técnica da traição e da intriga. Souberam aliar-se aos tlaxcaltecas contra Moctezuma e explorar com proveito a divisão do império incaico entre dois irmãos inimigos. Mas outros fatores trabalhavam objetivamente para a vitória dos invasores. Os cavalos e as bactérias, por exemplo.

Os cavalos, como os camelos, haviam sido originários da América, porém tinham se extinguido nestas terras. Introduzidos na Europa por ginetes árabes, prestaram imensa utilidade militar e econômica. Quando reapareceram na América através da conquista, contribuíram para dar forças mágicas aos invasores. Atahualpa viu chegar os primeiros soldados espanhóis, montados em briosos cavalos ornamentados e que corriam num rastro de pó com seus cascos velozes; presa de pânico, o inca caiu de costas no chão. O cacique Tecum, à frente dos maias, degolou com a sua lança o cavalo de Pedro de Alvarado, convencido de que o mesmo formava parte do conquistador: Alvarado se levantou e o matou. Poucos cavalos, cobertos de arreios de guerra, dispersavam as massas indígenas e semeavam o terror e a morte.

As bactérias e os vírus foram, contudo, os aliados mais eficientes. Os europeus traziam consigo, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. "Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que acendia a febre a decompunha as carnes?" Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham defesas ante as novas enfermidades. Aqueles que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro estima que mais da metade da população aborígene da América morreu contaminada logo ao primeiro contato os homens brancos.

Fonte:
GALEANO, Eduardo. A literatura dos conquistadores. In As veias abertas da América Latina. Disponível em http://educaterra.terra.com.br/

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