quarta-feira, 17 de abril de 2024

Nas águas da poesia n. 1


 Corrêa Junior

RECOMPENSA

Tenho no teu afeto a recompensa
dos meus dias de pobre sonhador;
e, artista obscuro, sinto a glória imensa
de ser, entre os cantores, teu cantor.

Assim, no doce enlevo desta crença,
viverei pelo amor e para o amor,
sem que a antiga tristeza hoje me vença,
no meu castelo de ilusões em flor.

Velha raiz, anônima, esquecida,
pelo húmus dos teus beijos renascida,
subo, cresço do solo, enfeito o chão... 

E, árvore nova, ramos no ar dispersos,
espalho, pelas flores dos meus versos,
todo o perfume do meu coração.
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Eugênio de Freitas

VIBRAÇÕES AMOROSAS

Se te revejo, Amada, após algum vazio
estágio de abandono, em que te sinto ausente,
a paz me volta ao peito, iludo-me e sorrio,
de súbito a sonhar, no ardor de antigamente.

O sol da juventude, afugentando o frio
que aos poucos me fustiga o coração e a mente,
compensa, num minuto, as lágrimas a fio,
ocultas, que verti: de novo estás presente.

Remoço no momento em que, feliz, te abraço;
e a festa natural de meus sentidos prova
que, perto de nós dois, extingue-se o cansaço.

Comigo, esta afeição a levarei à cova;
pois vibra, toda vez que por teu vulto passo,
fortíssima atração, que sempre se renova.
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Evandro Moreira

OCASO

Jovem parti, sequioso de aventura,
velas pandas, bandeira em altos mastros;
por instinto, tracei via segura,
conforme o vento e a posição dos astros.

Riquezas encontrei nessa procura.
Mas, cheios os porões com áureos lastros,
o barco da ilusão, em noite escura,
perdeu-se. Pobre e só, voltei de rastros.

Por pecados troquei a juventude,
ouro falaz que tanto nos ilude
e nos leva à velhice, que redime.

Talvez por isso eu sofra tão sereno,
certo de que o castigo é tão pequeno
quão pequeno eu julgava cada crime...
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Filgueiras Lima

É BOM SER BOM

Meu pai e meu amigo! eis-me a teu lado,
a rezar. Mas não ouves o que digo.
Eu tenho o coração despedaçado
de saudades, meu pai e meu amigo!

Fui, desde criança, todo o teu cuidado.
Cresci à sombra desse afeto antigo.
Afinal, era um só nosso passado,
porque, ó pai, envelheci contigo.

Sereno e justo, Deus te fez um forte,
ante as ingratidões de todo grau
que te feriram, sem mudar-te o norte.

Com a tua vida do mais puro tom,
tu me ensinaste quanto é mau ser mau
e me provaste quanto é bom ser bom!
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Inácio Moura

FILOSOFANDO...

Tudo que vinha dos teus lábios era
uma ilusão perfeita, um puro engano,
pois o que dizes numa primavera
não podes repetir depois de um ano.

A vida é assim; o tempo degenera
e mata em pouco o sentimento humano:
se não nos alimenta uma quimera,
também não nos devora um desengano!

Ai de nós todos se, por nossa face,
como se a nossa dor fotografando,
constantemente a lágrima rolasse!

Mas, felizmente, a lágrima não corre,
não desce mais dos nossos olhos, quando
a dor persiste e quando a crença morre.
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Jorge Azevedo

ESSAS COISAS DA VIDA...

Essas coisas da vida a gente nunca esquece. ..
Um longo beijo ao luar... uma mentira linda...
Num suspiro de amor... num sussurro de prece,
guardar de toda boca uma saudade infinda...

E então quando se é moço e o ardor não arrefece,
goza-se a mocidade enquanto ela não finda...
Da vida bem vivida o ocaso recrudesce
a tristeza de não poder mentir ainda...

E a minha mocidade em beijos se avigora,
encontra em toda boca uma esplendente aurora
e em todo amor um sol em que, febril, se aquece...

E na efemeridade em que ela se resume,
o consolo é lembrar... lembrar... pois ao perfume
dessas coisas da vida a gente refloresce.
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Vinicius de Carvalho

DANÇA ÁRABE

Trazes no corpo a graça das palmeiras
e o esplendor do luar de Ramadã.
Vem: minha tenda, a esta hora da manhã,
possui, na sombra, o odor das tamareiras.

Esquece, na maciez do meu divã,
o cansaço das tribos caminheiras.
Não procures miragens traiçoeiras:
— toda procura, neste mundo, é vã!

Não faz mal que, no Livro do Destino,
nosso amor seja um conto pequenino
que a mão do Tempo, trêmula, marcou;

pois a história de amor mais comovida
é a que deita raízes pela vida
quando tudo, afinal, já se acabou.
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Fonte> Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Recordando Velhas Canções (Diz que fui por aí)


Composição: Zé Keti/ H. Rocha

Se alguém perguntar por mim
Diz que fui por aí
Levando o violão debaixo do braço

Em qualquer esquina eu paro
Em qualquer botequim eu entro
Se houver motivo
É mais um samba que eu faço

Se quiserem saber se eu volto
Diga que sim
Mas só depois que a saudade se afastar de mim

Tenho um violão para me acompanhar
Tenho muitos amigos, eu sou popular
Tenho a madrugada como companheira

A saudade me dói, 
O meu peito me rói
Eu estou na cidade, 
Eu estou na favela
Eu estou por aí
Sempre pensando nela
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A Vida Boêmia em 'Diz Que Fui Por Aí'
A música 'Diz Que Fui Por Aí', interpretada por Nara Leão, uma das vozes mais expressivas da Bossa Nova, retrata a imagem de um boêmio que leva a vida de forma leve e descompromissada, com seu violão a tiracolo, simbolizando a arte e a música como companheiras constantes. A letra, que fala sobre andar sem destino, entrar em botequins e compor sambas, evoca a liberdade do espírito artístico e a cultura dos bares e esquinas, locais tradicionais de encontro e de expressão popular no Brasil.

A segunda estrofe da canção introduz um elemento de melancolia com a menção da saudade, um sentimento profundamente enraizado na cultura brasileira. A saudade aqui pode ser interpretada como a memória de um amor ou de um tempo passado que ainda afeta o narrador. A repetição do 'eu estou por aí' reforça a ideia de movimento e de não estar preso a um lugar ou a uma situação, apesar da presença constante da saudade.

A música também reflete sobre a popularidade e a aceitação social que o protagonista possui, destacando a madrugada como sua companheira, o que sugere uma vida noturna ativa e uma conexão com os aspectos mais boêmios da cultura urbana. A figura do narrador é a de alguém que, apesar de sentir saudade e dor, escolhe viver a vida de maneira itinerante e musical, sempre pensando naquilo que deixou para trás, mas sem se deixar paralisar por isso.

Aparecido Raimundo de Souza (Tudo o que é mal começado...)

NESSA MANHÃ ensolarada acordei suando em bicas.  Liguei a televisão no canal que assisto diariamente. O desgranhento do repórter jogou para cima de mim um caminhão de notícias sem eira nem beira. Se não sou esperto, acabava atropelado por um ônibus desgovernado na sua trajetória malfeita. O bruto, quase acabou com os cornos em um poste que morava numa calçada do passeio público. A armação de concreto, safa como um gato, deu um pulo fenomenal, deixando, entretanto, o transformador, lá no topo, com os bugalhos espantados de medo e terror. Sem mais delongas desliguei o aparelho, tomei um banho, me vesti e desci para a padaria onde tomo meu café matinal. A bebida, para início de conversa, estava deliciosa. O pão com gosto de recém-saído do forno, a manteiga sem ranço e a xícara –, novinha como saiu do ventre da caixa onde se abrigava. 

A xicara me encarou com uma tez indescritível. Não parou aí. O pires lavado com esmero, deu a impressão de que o responsável pela lavagem das louças lá nos cafundós da cozinha regurgitava de bom humor. Somente uma coisa não coadunava com o espírito gracioso do dia indubitável. Olhando do recinto para fora, o céu lá em cima me parecia ter esquecido de se vestir com nuvens de boas-vindas. Foi nesse começo de dia (um pouco antes das oito,) eu vi e não só vi, conheci a Bianca. Ela entrou estabanadamente no amplo salão com um guarda-chuva encharcado de calor pingando um amontoado de sorrisos tímidos pelos passos que imprimia sobre o chão de ladrilhos brancos. 

Seus olhos verdes como alfaces prontas para serem colhidas, se faziam inquietos. Num meio que distorcido, encontraram os meus por um breve instante. O sol, num instante fugaz, pareceu ter se infiltrado em sua alma, como um dardo no coração de um pobre coitado deixando-o vulnerável e desajeitado aos cuidados de um amor infinito que se afigurou pronto para leva-lo a um êxtase anunciado. Bianca, apesar da bagagem meio “mala sem alça,” trazia no rosto um enigma indecifrável. Suas palavras ao garçom soaram como notas musicais desafinadas saídas de um piano faltando teclas. Sua risada, uma mistura de nervosismo sem pátria destituído de qualquer tipo conhecido de gentileza. Enquanto esperava pelo pedido, abriu um livro. Percebi que gostava de poesias. O livro, um exemplar de Fernando Pessoa. 

Eu, pelo outro (meu lado,) preferia o silêncio denso e pesado dos romances de escritores dos tempos de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Nossos encontros a partir de então, passaram a ser somente ali na padaria. Esbarrões moldados ao sabor de xicaras e xícaras de café com leite, sob o pretexto de discutirmos literatura. Ele falava sobre Vinícius de Morais, Cora Coralina, Ferreira Gullar e, de roldão, emendava sobre o verdadeiro sentido da vida (qual seria?!), a juventude esquisita, os tempos difíceis, enquanto eu me perdia na textura do açúcar se dissolvendo nas bebidas costumeiras das engraçadas tiradas humorísticas de Luiz Fernando Veríssimo. Às vezes, as nossas mãos se tocavam num lançar quase acidental, e eu sentia um arrepio meio inteiro, um calafrio a percorrer desordenadamente a minha espinha – não só a dorsal. 

Nessa troca de poetas e escritores, entretanto, havia algo errado. Bianca nunca mencionava o futuro como uma coisa gostosa de se ver e sentir. Não falava sobre planos, sonhos ou o que poderia ser construído num vindouro às portas do nosso começo de conhecimento.  Ela vivia num presente envidraçado, como se o passado e o futuro fossem apenas sombras distantes por detrás de espessas coberturas de vidros. Eu, tolo, meio que atordoado, uma besta dos pés à cabeça e vice-versa, me deixei envolver por essa dança tresloucada de passos incertos e toques furtivos de dedinhos bobos em lugares consentidos. Nossos beijos se assemelhavam às chuvas de verão: intensos, efêmeros, e cheios de promessas que em nenhum momento tinham a satisfação de se fazerem verdadeiramente reais. 

Nessa coisa de pega, me larga, me esmaga e me domina, um engraçado detalhe me encafifava os fundilhos do peito. Quando o sol se escondia, Bianca se exauria. Mergulhava numa espécie de buraco sem fundo. De cabeça, a criatura afundava. Mirrava, esvanecia, como éter em recipiente sem tampa. Do nada, evaporava. Em seguida, não atendia minhas ligações, não respondia às mensagens via whatsapp. Passei a me sentir como uma folha seca levada pelo vento (igual aquela canção do Amado Batista). Sem rumo, sem destino, sem porto onde atracar meu jegue –, digo onde amarrar meu barco. Me resguardei. Dessa forma meio que insondada e curiosa –, ou dito de maneira mais abrangente –, alienígena e esquisita nosso relacionamento mal começado se arrastou por seis semanas. 

Eu, no calor da felicidade, esperava por ela, como quem se debruça na folha do próximo capítulo de um livro inédito, cujo final me parecia ser emocionante. Mas Bianca nunca se mostrou como uma personagem de carne e osso, bem escrito e com epílogo que deixasse saudade. A custo penoso, a poder de remédios com bulas de noites passadas às claras, cheguei à conclusão de que aquela pessoinha não ia além de um rascunho, ou de uma história incompleta. Assim foi até que num sábado (mesma mesa onde nos sentamos pela primeira vez) ela apareceu com um olhar de peixe morto, o semblante cheirando a robalo triste e uma carta nas mãos. “Preciso cair fora!” – disse. E emendou: “Ganhar o mundo. Me embrenhar por outros ares ainda não respirados pelo meu nariz.”’ Vomitou assim, na lata, sem rodeios. “Não sou uma excelência em finais felizes.”  

Cabisbaixa, o pranto rolando e fazendo sulcos na pele, Bianca foi-se. Perdão, Bianca se foi. Deixou-me como acompanhamento o gosto do café com leite não doce, mas amargo e a sensação do pão dormido e com manteiga estragada, e pior, a certeza de que o amor é como um texto inacabado: cheio de vírgulas, pontos de interrogação e reticências em lugares errados. Penso, agora, com meus "encafifamentos": talvez tenha sido melhor assim. Afinal, sem final, nem todas as histórias merecem um epílogo radiante, vestido à rigor, com desenlaces impecáveis. Desfechos neste patamar se enquadram mais para Lisa Kleypas, Julia Quinn e Ariano Suassuna. Nesse vácuo vazio, como o daquele dia de manhã ensolarada, me lembro de Bianca e seu guarda-chuva. 

Recordo-me como se fosse hoje, de suas palavras desafinadas, do seu sorriso tímido. E percebo que, às vezes, os relacionamentos iniciados são como crônicas de um autor ao acaso: intensos, efêmeros e eternamente marcados em nossa memória por uma péssima sensação de que fomos esquecidos e ludibriados ou confusos. O mais degradante é que logo ali na próxima esquina, aparecerá um ônibus sem freio, à cata de um poste de luz atrelado a um transformador com a fuça de uma mula paralítica sem canja; de pobre sem picanha na mesa do almoço e fechando o ciclo. Nada além de uma formosura apodrecida em total e profunda caminhada a passos largos para a cidade dos que saboreiam capim pela raiz.    

Fonte> Texto enviado pelo autor 

terça-feira, 16 de abril de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 26

 

Arthur Thomaz (Angel of the Morning – O Azarão)

Nasci nas sofisticadas cocheiras de um famoso Jockey Club. Um garboso potrinho, orgulho de minha mãe. Deram-me um nome lindo em inglês, mas não entendia o porquê todos me chamarem um pouco tempo depois de “Azarão”.

Eu nasci bem cedinho em uma manhã fria, dando trabalho a um veterinário, que chegou mal humorado, então não sei se ironicamente ou não, me colocaram o nome de Angel of the Morning.

Como eu era muito forte e desenvolvido, quando chegou a época do treinamento, fui designado a um aprendiz de jóquei muito levinho e bom cavaleiro, o que me agradou bastante.

Treinávamos todos os dias e ele me deixava correr solto para depois me ensinar a poupar esforços em percursos de longa distância. Sempre após os treinamentos, ele me dava uma pequena cenoura, que furtava da cozinha do Jockey.

Na época em que fiquei apto à primeira corrida, estranhei um fato: não era o meu aprendiz que iria me conduzir, e sim um jóquei profissional. Querendo correr solto para ganhar o páreo, percebi que ele me retinha com as rédeas, não me impulsionando. Estranhei demais aquilo, mas como os leitores podem notar, eu não posso falar com os humanos, portanto, não pude reclamar com ele.

E isso repetiu-se por muitos páreos e eu nunca conseguia chegar à frente.

Quando se aproximou um famoso grande prêmio, eu notei a mudança de comportamento do jóquei, deixando-me correr solto e ganhar dois ou três páreos sem importância. Não podia imaginar que era para eu poder ter um handicap que me habilitasse ser inscrito em Grandes Prêmios, entrando como azarão na prova. Isso, em caso da minha vitória, faria render uma pule altíssima, o que ocasionaria muito lucro para esses desonestos do turfe.

Comecei a entender o que acontecia nos subterrâneos dos Jockeys Clubes.

Exigi ser montado pelo amigo aprendiz, derrubando todos os jóqueis que teimavam em subir em minha sela. 

No dia da grande corrida, acordei já com um plano traçado. Ganhei o páreo por uma cabeça, o que me transformou em celebridade. Meu amigo aprendiz também tornou-se um rico e prestigiado jóquei. Fui transferido para a maior e mais confortável baia do pavilhão das cocheiras.

Comecei a colocar meu plano em ação, decidido a não me prestar a essas falcatruas no mundo das corridas. No primeiro treino, simulei uma lesão na pata dianteira, começando a mancar. Pânico geral, com a imprensa vindo fazer reportagens. Equipes de veterinários, até estrangeiros, a examinar-me. Dezenas de exames radiológicos e ninguém conseguiu descobrir a razão da “patologia”.

Expliquei ao meu amigo que não se preocupasse comigo, pois tudo era parte de meu plano. Rimos muito da situação. Fui, então, retirado das corridas e colocado em um haras especializado em reprodução animal.

Hoje, corro solto pelas pradarias, sem preocupações, e de vez em quando, sou requisitado para a colheita do meu valiosíssimo sêmen. Recebo a visita constante de meu agradecido amigo, que mantém comigo longas conversas, acompanhadas das deliciosas cenouras que ele sempre traz para lembrar os velhos tempos.

Ah! Volto a mancar sempre que aparece por aqui, no haras, um veterinário do Jockey.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024. Enviado pelo autor 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXXI


CARAVELAS

MOTE:
Benza Deus as caravelas
soltas aos ventos de abril.
Portugal trouxe com elas
o seu lirismo ao Brasil!
A. A. de Assis
Maringá/PR

GLOSA:
Benza Deus as caravelas
que até nós, então, chegaram
e os portugueses, que nelas
muito, de seu, nos deixaram!

Nos mares se aventurando,
soltas aos ventos de abril,
foram chegando, chegando,
e trazendo sonhos mil!

Nas caravelas, aquelas
em fantástica viagem
Portugal trouxe com elas
a verdadeira coragem!

Navegando em emoções
nos mares da cor do anil,
trouxeram nos corações
o seu lirismo ao Brasil!
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VIVER... MORRER...

MOTE:
Saudade – doce transporte
da alma adejante e ferida...
- É viver dentro da morte!
- É morrer dentro da vida!
Adelmar Tavares
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Saudade – doce transporte,
que traz de volta o passado,
nos faz perder nosso norte
no mar do pranto chorado!

Saudade, tu és companheira
da alma adejante e ferida...
És a guia feiticeira
dessa nau, que está perdida!

É preciso ser bem forte,
pois contigo conviver
- É viver dentro da morte!
sem nessa vida morrer!

Saudade, tu és, então,
a sobra da despedida,
levar-te no coração
- É morrer dentro da vida!
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CANÇÃO NA MADRUGADA

MOTE:
Sozinho nas madrugadas,
em noites de solidão;
ouço as notas magoadas
das cordas de um violão!
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

GLOSA:
Sozinho nas madrugadas,
cheio de tristeza e dor,
choro lágrimas salgadas
relembrando o nosso amor!

O frio entra em minha alma,
em noites de solidão
e a saudade tira a calma,
e machuca o coração!

Ao lembrar tristes baladas
em noite, assim, tão dorida,
ouço as notas magoadas
de uma música esquecida!

Embevecido e tristonho
escuto aquela canção,
dedilhada, no meu sonho:
das cordas de um violão!
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PÉS NA AREIA

MOTE:
Meus pés descalços na areia,
o mar soluçando ao vento,
é a saudade que passeia
nas ondas do pensamento.
Fernando Câncio de Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

GLOSA:
Meus pés descalços na areia,
pisando a areia molhada
encontram uma sereia
bela, linda , enamorada!

O seu canto parecia
o mar soluçando ao vento,
misto de dor e alegria,
de lembrança e esquecimento!

Minha alma, no amor, vagueia,
mãos dadas com a solidão...
é a saudade que passeia
no mar do meu coração!

Na areia, deixo as pegadas,
digitais do sentimento
e sinto as águas salgadas
nas ondas do pensamento.
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MEU ABISMO

MOTE:
No meu abismo medonho
se despenha mudamente
a catarata do sonho
do mundo eterno e presente.
Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

GLOSA:
No meu abismo medonho
aceitando o desafio,
com coragem, me proponho
a sorrir, e então, sorrio!

Num silêncio misterioso
se despenha mudamente
meu passado doloroso
em prantos, profundamente!

Vejo formar-se, tristonho,
diante de mim, majestosa,
a catarata do sonho
imensa, forte e formosa!

Eu me sinto enfraquecer
e nessa queda silente,
vejo tudo se perder,
do mundo eterno e presente.
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LOUCOS

MOTE:
Sei que os motivos são poucos,
sei que as razões também são,
mas este amor nos faz loucos
e loucos não têm razão!!!
Gerson César de Souza
São Mateus do Sul/PR

GLOSA:
Sei que os motivos são poucos,
muito poucos, mesmo assim,
vou fazendo ouvidos moucos,
quando estás junto de mim!

São tantas contradições,
sei que as razões também são,
pois são fortes emoções
que brotam do coração!

Imensos são os caboucos*
que, em nossa alma, o amor faz,
mas este amor nos faz loucos
e nos tira até a paz!

Vivemos a fantasia
curtindo nossa paixão,
como loucos, cada dia,
e loucos não têm razão!!!
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caboucos = (variação de cavoucos) covas, valas
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Fonte> Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXVIII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Julho de 2005.

Recordando Velhas Canções (Gabriela)


Composição: Tom Jobim

Vim do norte vim de longe
De um lugar que já nem há
Vim dormindo pela estrada
Vim parar neste lugar
Meu cheiro é de cravo
Minha cor de canela
A minha bandeira
É verde e amarela
Pimenta de cheiro
Cebola em rodela
Um beijo na boca
Feijão na panela
Gabriela
Sempre Gabriela

Passei um café inda escuro
E logo me pus a caminho
Eu quero rever Gabriela
De novo provar seu cheirinho
Manhã bem cedinho na mata
O sol derramou seu carinho
Um brilho na folha da jaca
Pensei em rever meu benzinho
Gabriela

Se ainda sobrasse um dinheiro
Podia comprar-te um vestido
E mais um vidrinho de cheiro
Contar-te um segredo no ouvido
Te trouxe um anel verdadeiro
Sonhei que era teu preferido
Pensei, pensei tanta coisa
Ah, me deixa ser teu marido
Pensei, pensei tanta coisa
Queria casar-me contigo
Gabriela
Gabriela
Todos os dias esta saudade
Felicidade cadê você
Já não consigo viver sem ela
Eu vim à cidade pra ver Gabriela

Tenho pensado tanto na vida
Volta bandida mata essa dor
Volta pra casa, fica comigo
Eu te perdoo com raiva e amor
Chega mais perto, moço bonito
Chega mais perto meu raio de sol
A minha casa é um escuro deserto
Mas com você ela é cheia de sol
Molha a tua boca na minha boca
A tua boca é meu doce é meu sal

Mas quem sou eu nesta vida tão louca?
Mais um palhaço no teu carnaval
Casa de sombra vida de monge
Quanta cachaça na minha dor
Volta pra casa, fica comigo
Vem que eu te espero tremendo de amor

Em noite sem lua, pulei a cancela
Cai do cavalo, perdi Gabriela
Oh lua de cera, oh lua singela
Lua feiticeira cadê Gabriela?

Ontem vim de lá do Pilar
Inda ontem vim lá do Pilar
Já tô com vontade de ir por aí
Ontem vim de lá
Inda ontem vim de lá
Já tô com vontade de ir por aí
E na corda da viola todo mundo sambar
E na corda da viola todo mundo sambar
Todo mundo sambar
Todo mundo sambar quebra pedra.…
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Saudade e Amor na Canção 'Gabriela' de Tom Jobim
A música 'Gabriela', composta por Tom Jobim, é uma obra que evoca sentimentos de saudade e amor, características marcantes na música popular brasileira. A letra narra a história de um homem que viaja de longe, possivelmente do norte do Brasil, para encontrar Gabriela, a mulher amada. A descrição de sua jornada e o desejo de reencontrar Gabriela são permeados por elementos típicos da cultura brasileira, como o cravo, a canela e a bandeira nacional.

O eu lírico expressa um profundo anseio por Gabriela, mencionando detalhes como o cheiro de café e a luz do sol na mata, que o fazem lembrar dela. A canção também revela um desejo de compromisso e intimidade, sugerido pela vontade de casar-se com Gabriela e compartilhar segredos. A repetição do nome 'Gabriela' ao longo da música enfatiza a obsessão e a intensidade dos sentimentos do narrador.

A música termina com uma nota de melancolia e incerteza, refletindo a natureza volátil do amor e da vida. O narrador menciona a lua, um símbolo poético frequentemente associado à mudança e ao mistério, e questiona seu próprio papel na 'vida tão louca', comparando-se a um 'palhaço no teu carnaval'. A canção 'Gabriela' é, portanto, um retrato lírico da paixão ardente e da saudade que acompanha a separação, elementos universais que ressoam com ouvintes de todas as culturas.

Estante de Livros (“O Analista de Bagé”, de Luís Fernando Veríssimo)

Como muitos textos de Luís Fernando Veríssimo, O Analista de Bagé fez sua estreia em periódicos (revistas e jornais impressos em papel para quem não lembrar). Devido ao sucesso, virou livro pela L&PM, mas este primeiro volume não trazia só as histórias do analista, trazia outras crônicas de temáticas variadas e cotidianas do autor. Um pouco mais tarde, o Analista também viraria peça de teatro de grande sucesso.

O Analista de Bagé é uma sátira bem embasada e estudada da psicanálise. Ele se diz Freudiano mais ortodoxo que rótulo de Maizena, mas possui técnicas polêmicas como o joelhaço, trocou o divã pelo pelego e o vivente é obrigado a deitar por estar incluído no preço.

Apesar da fama, o Analista dividiu espaço com outras histórias do Luís Fernando Veríssimo; protagonizando dois livros – O Analista de Bagé e Outras do Analista de Bagé – e sendo um convidado ilustre em A Velhinha de Taubaté. Depois d´A Velhinha de Taubaté, o Analista não teve mais novas histórias (em prosa) contadas pelo Veríssimo.

Os demais contos de Veríssimo tratam de cotidiano, costumes, fatos engraçados da vida e da política da época. Sim, há política nessa mistura, e até nas histórias e declarações do analista. Sobretudo em A Velhinha de Taubaté, Luis Fernando Veríssimo se mostra um afiado crítico do poder e da ditadura militar.

O próprio Analista de Bagé critica a psicanálise. Afinal, nem todos os problemas são internos e pessoais. Muita coisa deve ser resolvida aqui fora, no social. Quando a psicanálise diz que tudo é interno, ela culpabiliza a todos e se torna cúmplice, afinal, gengiva não morde, mas segura os dentes.

A obra é uma coletânea de crônicas, mas a maioria das histórias é protagonizada pelo analista de Bagé, um psicanalista irreverente, que criou uma terapia revolucionária e inovadora: a Terapia do Joelhaço. Seu divã e sua sala de atendimento, assim como sua relação com a secretária, são abordados constantemente no livro.

O psicanalista fica tão famoso e requisitado que resolve criar um método de triagem, aceitando apenas casos graves ou difíceis. Sempre oferece chimarrão a seus pacientes e os convida a se deitarem em seu pelego (tapete gaúcho, feito de pele de carneiro ou ovelha, usado em arreios), que substitui o divã tradicional.

Alguns personagens são estereotipados, o que causa certo desconforto nos(as) leitores(as). Além disso, o protagonista faz muitas piadas machistas e apresenta um tom homofóbico. Não se sabe, contudo, se a obra tinha como objetivo provocar uma reflexão crítica sobre esses assuntos ou se realmente era a opinião do autor.

De qualquer forma, trata-se de uma leitura fluida, trazendo elementos do sul do país que são pouco conhecidos. O personagem se autointitula ortodoxo, mas tem uma maneira bem própria de aplicar os fundamentos da psicanálise.

Quando o paciente é homem, ele o recebe com um joelhaço, método que consiste em atingir as partes íntimas do analisado em questão. Assim, o leitor se diverte e se espanta com as histórias exageradas e as relações amorosas deste psicanalista.

Análise do estilo das histórias na obra

O Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo, destaca-se por retratar a relação analista/paciente de forma jocosa, fazendo alusões ao regionalismo, à intelectualidade e à política nacional. A obra apresenta a identidade do homem gaúcho estereotipado, desde os costumes aos preconceitos, e, ao mesmo tempo, aborda temas de relevância mundial, como é o caso da psicanálise.

O protagonista da obra é o maior representante disso, pois se trata de um psicanalista que se pretende freudiano ortodoxo, mas com hábitos e intervenções marcadas por sua origem, Bagé. Curiosamente, Bagé é um município brasileiro do pampa gaúcho que faz fronteira com o Uruguai, o que, de certa forma, indica a linha tênue entre “regional” e “mundial” apresentada na obra.

Os contrastes tornam a narrativa intrigante, por exemplo, a imagem que se faz de um psicanalista, supostamente sério e intelectual, é quebrada ao encontrar um profissional que usa como técnica o “joelhaço” e como divã, o pelego. Nesse sentido, Veríssimo não só desmistifica a psicanálise como também aproxima o(a) leitor(a) de sua obra.

Ao usar uma linguagem acessível e acontecimentos do cotidiano mesclados ao humor, estrutura característica da crônica, o autor sentencia o próprio sucesso. O Analista de Bagé foi reeditado inúmeras vezes, transformado em quadrinhos e encenado no teatro.

Fontes>
– Texto de Rodrigo Rosas Campos para o blog Literakaos!

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Artur de Azevedo (In extremis)

O Major Brígido era viúvo e tinha uma filha de vinte anos. lindíssima, que fazia muita cabeça andar à roda; entretanto, o coração da rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal.

Quero dizer que Gilberta - era este o seu nome - se enfeitiçou justamente pelo mais insignificante de quantos a requestavam - pelo Teobaldo Nogueira, sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem condição certa que lhe desse o direito de constituir família, mendigando aqui e acolá, no comércio, pequenas comissões, corretagens, e lambujens (pequenos lucros) adventícias.

O Major Brígido, cheio de senso prático, vendo com maus olhos essa inclinação desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que, apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu conselheiro, o oráculo reservado para as grandes emergências da vida.

- Deixe-a! – opinou o Viegas. – Se você a contraria, aquilo fica de pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua escolha poderia ser melhor... Não ataque de frente a questão!... Não bata com o pé... não invoque a sua autoridade de pai...

O Major Brígido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se à janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os cumprimentou.

O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita afabilidade. Pareceu ao major que o momento não podia ser mais propício para uma explicação; tratou de aproveitá-lo.

- Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa amiudadas vezes por nossa casa, e não creio que seja pelos meus bonitos olhos...

Gilberta corou e sorriu.

- Não quero nem de leve contrariar as tuas inclinações, casar-te-ás com o homem, seja quem for que escolheres para marido. O teu coração pertence-te: dispõe dele à vontade. Entretanto, o meu dever de pai e amigo é abrir-te os olhos para não dares um passo de que mais tarde te arrependas amargamente. Não me parece que este homem te convenha, não tem posição social definida, não ganha bastante para tomar sobre os ombros quaisquer encargos de família, e - deixa que teu pai seja franco - não é lá muito bem visto no comércio... Não és uma criança nem uma tala, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas de um homem! Não és rica, mas bonita, inteligente, boa como és, não te faltarão pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira.

Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os lábios e não disse palavra.

De nada valeram os conselhos paternos.

Daí por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mês depois, quando o pai se preparava para impingir-lhe novo sermão, ela atalhou-o declarando peremptoriamente que amava aquele homem, com todos os seus defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro!

Consultado o oráculo Viegas, este aconselhou uma estação de águas que distraísse a moça. O Major Brígido sacrificou-se em pura perda.

Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca.

Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento, depois de fazer uma exposição deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em que ganhava para cima de três contos de réis. Já tinha posto alguma coisa de parte e contava mais dia menos dia, estabelecer-se definitivamente. Se fosse um especulador, um aventureiro mal intencionado, procuraria casamento vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor.

O casamento ficou assentado.
* * *

O Major Brígido sofreu com isto um grande desgasto, agravado em seguida pela súbita enfermidade do Viegas, o seu melhor amigo, o seu oráculo, que caiu de cama e em menos de uma semana ficou às portas da morte.

Dois médicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises (expectoração de sangue) eram frequentes, esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em sangue.

Nesta situação extrema, o Viegas chamou para junto do seu leito o Major Brígido, e disse-lhe:

- Meu velho, eu vou morrer...

- Deixa-te de asneiras!

- Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senão de ti e de tua filha? Bem sabes que não tenho ninguém... Meu irmão, que não vejo há vinte anos, é um patife, um bandido, que está, dizem, milionário, e que, sabendo do meu estado, não me vem visitar... Minha irmã, que reside em Paris, é uma mulher perdida, uma desgraçada, que sempre me envergonhou...

- Não se lembre agora disso!

- Não fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma coisa que por minha morte irá para as mãos dessas duas criatura... Lembrei-me de fazer testamento, mas um testamento poderia dar lugar a uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com 100 contos de réis, isto é, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas jurídicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienável... tu bem me entendes... Ela tem um noivo, mas este não se oporá, talvez, a uma fortuna da qual participará mais tarde. A situação desse homem será modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com uma moça solteira, casar-se-á com uma senhora viúva...

E acrescentou:

- Viúva e virgem.

O Major Brígido recalcitrou; que haviam de dizer? Seriam capazes de inventar até que ele abusara de um agonizante! Mas o Viegas insistiu, apresentando, com extraordinária lucidez, todos os argumentos imagináveis, inclusive aquele de que a última vontade de um moribundo é
sagrada.

Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a proposta do Viegas, e disse logo que não se prestava a esta comédia fúnebre, mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrário, instou com ela para que aceitasse, e defendeu calorosamente a piedosa ideia do tuberculoso.

A moça ressentiu-se dessa falta de escrúpulos, mas disfarçou o seu sentimento e disse:

- Meu pai, faça o que entender!
* * *

Alguns dias depois havia em casa do Viegas um vaivém de pretores, padres, testemunhas, escrivãos, tabeliões, sacristãos, etc.; mas todo esse movimento, longe de fazer com que o enfermo piorasse, ajudou-o a voltar à vida.

As hemoptises tinham cessado.

Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tão bem que desconfiou dos seus médicos e mandou chamar um dos nossos príncipes da Ciência, para examiná-lo.

Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnóstico dos colegas.

- Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor é tão tuberculoso como eu! Aquele sangue era do estômago... Trate do seu estômago que este desvio é grave.

- Mas as hemoptises...

- Que hemoptises, que nada. Hematêmeses (vômitos de sangue da mucosa gástrica), isso sim!

Pouco depois o Viegas, completamente restabelecido, empreendeu uma grande viagem à Europa com sua mulher. Era preciso por uma barreira entre ela e o Teobaldo, - e que barreira melhor que o Atlântico?
* * *

A viagem durou dois anos. O Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha, nascida na Itália.

Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas.

Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brígido notícias do Teobaldo Nogueira.

- Está na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava reservado para minha filha, se não fosse a sua generosidade!

- Quando nos casamos, já ela não gostava dele pelo empenho interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadáver que valia cem contos...

Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se do marido e disse-lhe:

- E creia, Viegas, que se você houvesse morrido, a minha viuvez seria eterna.

Fonte> Artur de Azevedo. Contos Cariocas. Publicado em 1928. Disponível em Domínio Público http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000080.pdf