terça-feira, 21 de maio de 2024

Figueiredo Pimentel (As aventuras do Zé Galinha)

José Joaquim de Souza e Silva veio da terra e foi para Jacarepaguá, onde se estabeleceu, protegido pelo Manoel da Venda, seu primo. Aí dedicou-se ao comércio de aves domésticas e ovos, que comprava em porção, enviando-os em seguida à Praça do Mercado e outros pontos da cidade. A sua lida com a criação, desde a manhã até a noite, durante anos, sempre na mesma casa, eternamente no mesmo lugar, valeu-lhe a alcunha de Zé Galinha, porque era conhecido, verdadeiramente popular em Jacarepaguá e terras adjacentes. Ninguém sabia quem era o Souza e Silva, nem José Joaquim. Perguntassem, porém, pelo Zé Galinha, que todo o mundo apontaria a sua casa.

E o Souza desesperava-se com aquilo: ralava-o a antonomásia (apelido) que lhe haviam posto, e daria bem um par de contos se conseguisse ser chamado de outra forma. 

Nos primeiros tempos, quando começara a vida, pouco se lhe dava que o chamassem assim ou assado: queria ganhar dinheiro, fazer fortuna e voltar à aldeia. Mas, depois de vinte anos, aclimado em Jacarepaguá, rico, já casado e com filhos, resolveu ficar. Abraçou outro ramo de negócio, abriu um grande armazém de secos e molhados, e acabou o negócio de galinhas, patos e perus.

A alcunha, porém, ficou. Ele era o Zé Galinha. Parecia até que aquilo era proposital. Quanto mais se enfurecia, e maiores esforços empregava para que a antonomásia fosse esquecida, toda a a gente se obstinava em chamá-lo assim.

Foi então que o Souza resolveu comendadorizar-se. Veio ao Rio, e conversou com o barão de S. Caetano, chefe da colônia, assinou dez contos para o Asilo dos Órfãos Lusitanos, recentemente fundado, e esperou a comenda.

Durante uma semana passou ele na cidade, divertindo-se à farta, para compensar um pouco a sua vida cheia de trabalhos.

Havia chegado no domingo, e o João Carne Seca, da rua das Violas, em cuja casa se hospedara, levou-o ao teatro, que ele não conhecia.

A princípio o Zé Galinha não queria ir, mas o outro incentivou-o tanto, animou-o de tal forma, que resolveu finalmente.

Enfiado numa sobrecasaca de pano comprada feita na rua do Hospício, encartolado, de calças brancas e botinas de verniz, o futuro comendador ficou disfarçado. Nem ele mesmo se reconheceu!

Ao entrar no Cascata, onde o João ia tomar café, a sua figura exótica refletiu-se em um dos espelhos. E como caminhasse em frente, vendo aquele cavalheiro que se dirigia para ele, em sentido oposto, recuou delicadamente para a direita, a fim de ceder o lugar. E vai o “outro”, justamente na mesma ocasião, recua. O Zé tomou a esquerda; o “outro” idem. O Zé parou; o outro imitou-o.

Vendo aquela contradança, o João, que já estava sentado, perguntou-lhe:

— Que diabo estás a fazer aí, ó Souza?

E o Souza, sorrindo-se, medonhamente encalistrado:

— Estou dando lugar para aquele cavalheiro passar.

O João rompeu numa gargalhada colossal:

— Ó rapaz! pois não estás vendo que aquilo é a tua imagem no espelho?

Saindo do café, dirigiram-se os dois para o teatro.

Deslumbrado, nunca tendo visto daquilo, o nosso homem quase não podia caminhar. Foi com dificuldade que o João o arrastou até as cadeiras, em uma das filas centrais.

Já havia começado o espetáculo, e o negociante permanecia de pé, não consentindo assim que os espectadores das filas atrás vissem o que se representava.

Então, algumas pessoas, aborrecidas com aquele estafermo, das torrinhas e da plateia, bradaram:

— Senta!... Senta!...

Zé Galinha, imperturbável, voltou-se para trás, e no meio do silêncio que se fizera, respondeu:

— Não se incomodem, meus senhores; estou bem de pé, muito obrigado.

Cessado o ligeiro incidente, depois de alguns segundos de prolongada hilaridade, tendo João obrigado o companheiro a sentar-se, o Souza e Silva, conhecido em Jacarepaguá por Zé Galinha, assistiu calmamente a representação.

O primeiro ato correu sem novidade, salvo uma ou outra asneira, que perguntava ao companheiro, em voz baixa, para não fazer novo fiasco.

Representava-se uma comédia Uma hospedaria na roça. Quando o ator entra em cena e procura pela mulher, que está escondida atrás da porta, volta-se para a plateia e interroga “Onde estará ela? Onde estará a Chiquinha? Onde estará?”. E leva alguns minutos a procurá-la com açodamento, examinando o aposento.

Nessa ocasião, o ilustre jacarepaguense não pode resistir, e, querendo mostrar a sua perspicácia, berrou:

— Está aí atrás da porta, escondida para que o senhor não a veja.

Durante a semana em que Zé Galinha passou no Rio de Janeiro, nem um só dia deixou de ir ao teatro. Ficara gostando imensamente, e andava maníaco.

De volta para Jacarepaguá, levava na mala uma enorme coleção de dramas, comédias, cenas cômicas e monólogos, comprados na Livraria Quaresma, que principiou a ler com animação.

Estava à espera da comenda que o barão de São Caetano lhe prometera, e que havia de desaparecer para sempre a sua terrível alcunha. Lembrou-se então de mandar edificar um teatrinho, onde tencionava representar, fundando também uma sociedade dramática.

Em menos de um mês estava tudo pronto, e inaugurava-se o Ginásio Dramático Beneficente Estrela de Ouro de Jacarepaguá, sob a presidência do comendador José Joaquim de Souza e Silva.

O ilustre comerciante queria realizar imponentes festas para comemorar dignamente a sua comenda. Seriam três dias de pândega, havendo em todas essas noites espetáculos e bailes.

A primeira peça escolhida para a estreia foi a tragédia em oito atos D. Nuno Álvares ou O poder do lusitano.

O comendador Souza e Silva fazia o papel de Conde de Tomar.

Ao aparecer na primeira cena, passeava lentamente, mudo, pensativo. A marcação da tragédia dizia: “O conde entra, mas não fala...”

E vai o Zé, avança pelo palco, e exclama com voz de trovão:

— E conde entra, mas não fala!

Como estava radiante o comendador José Joaquim de Souza e Silva! Durante aqueles três dias nem uma só vez ouvira pronunciar a terrível alcunha de Zé Galinha. Jacarepaguá em festas tinha esquecido e agora só o chamava comendador.

Havia chegado a terceira noite, e nova tragédia ia exibir-se: O punhal envenenado ou A nódoa de sangue.

Logo no primeiro ato, ao erguer-se o pano, o Souza aparecia disfarçado com longas barbas e longa cabeleira, de capa e espada. A cena, quase às escuras, fingia um bosque.

D. Rufo, o chefe dos salteadores, entrava, e dizia:

— Noite propícia; nem uma estrela brilhando no firmamento!

Fez-se profundo silêncio quando ele apareceu, e a frase foi bem lançada.

Mas de repente, no meio da quietação sepulcral, ouviu-se uma voz de criança exclamar:

— Ó mamãe! Aquele não é o seu Zé Galinha?

Escândalo nunca visto! Rebentou uma gargalhada uníssona, colossal.

Então, o Souza, vendo perdido o seu tempo, o trabalho que tivera, e o cobre com que comprara a comenda, ficou desnorteado; e arrancando com gesto brusco as barbas e a cabeleira, exclamou indignado:

— Zé Galinha é você, seu malcriado! O culpado fui eu, metendo-me com essa gentinha! Arreia o pano!

E assim acabou-se o Ginásio Dramático Beneficente Particular Estrela de Ouro de Jacarepaguá.

Fonte> Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 29

 

Irmãos Grimm (Gente sabida)

Um dia, certo camponês tirou do lugar seu bastão e disse à mulher:

– Vou viajar e só volto daqui a três dias. Se nesse meio tempo vier o tropeiro e quiser comprar nossas três vacas, poderás vendê-las por duzentos moedas. Mas nem um tostão a menos, entendeste?

– Vai com Deus! - respondeu a mulher. - Farei tal e qual tu disseste.

- Sim, bem te conheço! - comentou o homem. - Quando criança, caíste de ponta-cabeça no chão e o resultado ainda está se vendo até hoje... Mas uma coisa te digo: se fizeres bobagens, eu te pinto o lombo de azul, e não com tinta e pincel, mas com este bastão aqui: e te garanto que essa pintura não desaparecerá antes de um ano.

Dito isto, o homem se pôs a caminho.

Na manhã seguinte, apresentou-se o tropeiro e a mulher não precisou falar muito. Depois de examinar as vacas e saber o preço, disse:

- Estou disposto a pagar o que pedes, que elas bem valem isso. Vou levar os animais agora mesmo.

Soltou-os da correia e os tirou do estábulo, mas quando ia saindo com eles pela porta da granja, a mulher, pegando-o pela manga do casaco, disse:

- Terás que me dar primeiro as duzentas moedas, do contrário não poderás levar as vacas.

- Tens toda razão, - respondeu o negociante.- Esqueci a minha bolsa em casa. Mas não te preocupes, que te darei uma boa garantia. levarei duas vacas e te deixarei a terceira em penhor; assim terás uma boa fiança.

A mulher achou ótima a proposta e deixou que o negociante partisse com duas vacas. Ficou pensando: " Que contente não irá ficar o João quando souber que agi com tanta inteligência!"

Três dias depois, o camponês regressou, como havia anunciado, e sua primeira pergunta foi a respeito da venda das vacas.

- Sim, meu marido, - disse a mulher - vendi-as  por duzentos moedas, como recomendaste. Mal valem isso, mas o homem as levou sem pechinchar.

- Onde está o dinheiro?

- O dinheiro ainda não recebi, porque o negociante havia se esquecido da bolsa; mas na certa vai trazê-lo sem demora, pois me deixou uma boa fiança.

- Que fiança?

- Uma das três vacas. Essa ele não levará antes de ter pago as outras duas. Fui inteligente e fiquei com a menorzinho, que é a que come menos.

O homem ficou furioso e, levantando o bastão, preparou-se para dar-lhe a surra prometida. Mas, de repente, parou e disse:

- És a criatura mais idiota que Deus pôs na terra, chegas até a me dar pena. Vou ficar esperando três dias na estrada para ver se encontro alguém ainda mais bobo do que tu. Se achar uma pessoa assim, ficarás livre da surra, caso contrário, receberás  a paga que te prometi sem o menor desconto.

Saiu e sentou-se numa pedra à espera do que desse e viesse. Nisto viu aproximar-se uma carreta, onde estava uma mulher de pé, em vez de ficar sentada no monte de palha ou ir ao lado dos bois, conduzindo-os. 

Pensou o homem: "Essa, pelo visto, é uma das que estou procurando." Levantou-se de um salto e se pôs a correr de um lado para outro, diante da carreta, como alguém que não fosse bem certo da cabeça.

- Que há, compadre? - indagou a mulher. - De onde vens que não te conheço?

- Caí do céu, - respondeu o homem - e não sei como voltar para lá. não poderias levar-me?

- Não, - retrucou a mulher - não sei o caminho. mas, se vens do céu, podes dar-me notícias do meu marido, que morreu há três anos. Com certeza o viste por lá.

- Claro que o vi, mas nem todos levam ali uma boa vida. teu marido cuida das ovelhas e os bons animaizinhos lhe dão muito trabalho, trepando nas montanhas e se perdendo pelas matas. É obrigado a correr atrás delas para juntá-las. Além disso, sua roupas estão em farrapos e, mais dia menos dia, lhe cairão do corpo. Não há alfaiates no céu. São Pedro, como bem sabes pelo que dizem, não deixa entrar nenhum.

- Quem imaginaria uma coisa dessas! - disse a mulher. - Sabes o que mais? Irei buscar seu traje de domingo, que ainda está guardado no armário e que ele lá poderá usar com muito orgulho. Podes fazer-me o favor de levá-lo?

- Impossível! - retrucou o camponês - É proibido levar trajes de domingo para o céu. Eles os tiram da pessoa antes de passar pela porta.

- Escuta! - disse a mulher - Ontem vendi meu trigo por uma boa quantia, que vou enviar a ele. Se meteres o dinheiro no bolso, ninguém notará.

- Se não há outro remédio, - respondeu o camponês, - estou disposto a fazer-te esse favor.

- Então fica aí sentado, - disse ela- que vou em casa buscar a bolsa e não demoro a voltar. Estou de pé na carroça, em vez de sentar-me na palha, para que os bois não tenham de levar tanto peso.

E pôs em marcha os animais, enquanto o camponês pensava: "Esta criatura é doida varrida e se, de fato, trouxer o dinheiro, minha mulher pode considerar-se muito feliz por se ter livrado da surra."

Não demorou muito a camponesa voltou, correndo , e meteu o dinheiro ela mesmo, no bolso do homem. Antes de se despedir, agradeceu-lhe muitas e muitas vezes por sua gentileza.

Quando a boba mulher chegou, enfim, à sua casa, encontrou o filho que acabava de regressar do campo. Contou-lhe as coisas espantosas que lhe haviam acontecido e acrescentou:

- Alegro-me tanto de haver encontrado uma oportunidade para enviar algo ao meu pobre marido! Quem havia de imaginar que, lá no céu, lhe faltasse alguma coisa?

O filho ficou pasmo.

- Meu Deus! - exclamou ele. - Isso de uma pessoa baixar do céu não acontece todos os dias. Sairei à procura desse homem. Gostaria de saber como andam de trabalho por lá.

Encilhou o cavalo e partiu a toda pressa. Encontrou o camponês, à sombra de um salgueiro, a contar as suas moedas.

- Não viste o homem que caiu do céu? - perguntou-lhe o rapaz.

- Sim, - respondeu o camponês, - mas já está de volta para lá, tomou a estradinha que sobe aquela montanha e que encurta um pouco o caminho. Mas, se fores a galope, ainda poderás alcançá-lo.

- Ah! - exclamou o rapaz.. - Estou cansado de trabalhar o dia todo e a cavalgada até aqui me deixou moído, mas tu conheces o homem, bem poderias montar o meu cavalo e ir atrás dele para convencê-lo de que volte aqui.

"Hum! aqui está outro que não regula bem - pensou o camponês. E, dirigindo-se ao jovem assim lhe  disse:

- É mesmo! Por que iria eu negar-te esse favor?

Montou e saiu a todo galope. o rapaz ficou esperando até de noite, mas o camponês não voltou. "De certo - pensou ele - o homem do céu estava com pressa e não quis dar volta, e o bom do camponês lhe deu o cavalo para ser entregue a meu pai."

Foi para casa e contou à mãe, muito satisfeito, que tinha enviado o cavalo ao pai, para que ele não precisasse andar a pé lá no céu.

- Fizeste muito bem! - respondeu a mãe. - Tens boas pernas e não é necessário que andes a cavalo.

Quando o camponês chegou em casa, pôs o animal na estrebaria junto com a vaca; depois foi para onde estrava a mulher e lhe disse:

- Catarina, tiveste sorte! Encontrei dois ainda mais bobos que tu. por esta vez te livraste da surra, que fica adiada para a próxima ocasião.

E, acendendo o cachimbo, sentou-se na cadeira de balanço. Depois prosseguiu:

- Foi um bom negócio. por duas vacas magras, obtive um cavalo bem gordo e uma bolsa cheia de dinheiro. Se a burrice fosse tão proveitosa, eu teria o máximo respeito pelos burro.

Assim pensou o camponês, mas eu estou certo e que vocês hão de preferir as pessoas inteligentes.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Trem das Onze)


Compositor: Adoniran Barbosa

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar
Não posso ficar

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar
Não posso ficar
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Saudade e o Trem das Onze: Uma Viagem pela Canção de Adoniran Barbosa
A música 'Trem Das Onze', composta e interpretada pelo icônico Adoniran Barbosa, é um clássico do samba paulista que retrata de maneira singela e bem-humorada as vicissitudes do cotidiano dos moradores dos subúrbios de São Paulo na década de 1960. A letra da canção revela a história de um homem que, por morar longe, precisa se despedir de seu amor para não perder o último trem para casa. A narrativa é simples, mas carregada de significados que vão além da preocupação com o horário do transporte.

O personagem central expressa um conflito entre o desejo de permanecer com a pessoa amada e as obrigações familiares e sociais. A menção à mãe que não dorme enquanto ele não chega e o fato de ser filho único e ter que 'olhar a casa' são elementos que demonstram o peso da responsabilidade familiar. Essa dualidade entre o amor e o dever é um tema recorrente na música popular brasileira e reflete a cultura de uma época em que os laços familiares exerciam grande influência sobre as decisões pessoais.

Adoniran Barbosa, conhecido por sua habilidade em capturar a essência da vida paulistana em suas letras, utiliza a metáfora do trem para falar sobre as despedidas, as escolhas e o tempo que não espera por ninguém. 'Trem Das Onze' não é apenas uma música sobre um trem específico de São Paulo, mas também sobre a universalidade das experiências humanas, a saudade e a necessidade de priorizar aspectos da vida que, muitas vezes, estão em conflito. A canção permanece atemporal e querida, ressoando com qualquer um que já tenha sentido o aperto no coração ao dizer adeus, mesmo que por uma noite.

Coelho Neto (O anjo)

A noite, profundamente escura e fria, atravessada de vento, atroava o fragor de ramagens estortegadas
(torcidas) e de águas precipitosas que se desenhavam, aos jorros, pelos algares. Nas chãs ainda o trânsito era fácil, sem o vareio da ventania que repulsava os caminhantes, como a impedir-lhe a marcha; mas nas gargantas, entra alcantis, as lufadas, abocanhando à entrada, esfuziavam desabridas, uivando com a fúria de alcateias famintas em ronda ceva (farta), a faiscar redis (currais).

Todas as estrelas haviam-se apagado, apenas rutilava, enorme, como lumaréu de vigília em torre, a que surgira e brilhava sobre Belém.

Os passos estrepitavam nos seixos, estalavam nas folhas e no ramalho seco.

Um ramo que bulisse, o lento defluir de um fio d’água por entre pedras levantavam ruídos temerosos.

Às vezes José detinha-se, hesitando na bifurcação de duas trilhas, mas pouco durava a dúvida porque uma das veredas enegrecia ainda mais, ao passo que a outra rutilava fúlgida, como calçada a diamantes, oferecendo-se, clara e segura, aos peregrinos.

Como entrassem em sinuosa e augusta passagem murada de rochas anfractuosas (sinuosas), eriçada de agaves e ecoando como o âmbito de uma caverna, ouviram leve, frouxo ruído como de esfolar de asas.

Uma águia, talvez, que acordara em alguma tensão e de pé, atenta, alargando as asas, ficara em atitude hostil pronta a arremeter em defesa do ninho.

O patriarca, acolhendo a esposa meiga, cujas faces pareciam de neve, apertou com força o cajado e levantou os olhos.

Maria, sentindo o perigo, tartamudeou, tímida e trêmula, uma oração ao Senhor. O receio de um ataque em sítio tão desolado, longe de toda habitação, onde nem choça de pegureiro havia, deteve o homem.

Os corações batiam. Nela era o pavor do desconhecido, o grande medo trágico das sombras do Scheol (região dos mortos), que erram, à noite, pelos descampados; nele era o temor por ela.

Não falavam, de olhos muito abertos, quietos, imóveis como os rochedos que os emparedavam.

De repente um clarão fulgurou. A passagem iluminou-se, as pedras cintilaram e as palmeiras dos cardos ficaram como de prata. E eles viram uma grande luz à flor da terra e clareando as rochas.

Aves despertando galreavam (papagaiavam) festivamente o canto da madrugada.

Levantando o olhar, viram os dois a fonte do esplendor. Era um anjo que os precedia, ora trilhando os caminhos, ora voando acima das rochas, pousando nos alcandores (cumes) quando o lento e fatigado andar de Maria retardava a marcha.

A virgem sorria de enlevo e José, tolhido de emoção, não se atrevia a encarar o guia resplandecente, cujo reflexo abria na terra um clarão de luar. E as asas ruflavam docemente no silêncio.

A virgem reconheceu no anjo o mancebo que a saudara com as palavras misteriosas, cuja promessa cumpria-se e José reviu o divino emissário que lhe aparecera em sonho, sob a figueira do horto, defendendo a inocência de Maria, em cujo seio, como em corola de flor, a Graça perpassava em gênese imareável, fecundando-o como o sol fecunda a leiva (campo lavrado), eternamente pura.

Fonte: Coelho Neto. Mistério do Natal. Publicado originalmente em 1911, 
Disponível em Domínio Público 

domingo, 19 de maio de 2024

José Feldman (Á Guisa de Explanação)

Eu sempre tive um problema (dádiva ou maldição?). Não me contento com pouco. No sentido de divulgar os literatos. Desde quando comecei o blog em 2007, quem vem acompanhando, percebe que ele tem aumentado de tamanho (hoje são mais de 19 mil publicações, com dezenas de milhares de trovas, poesias, contos, etc). É muita gente, e pior, ou será melhor? Muita gente de valor. Desde quando entrei no “campo” trovadoresco, lá pelos idos de 1991, mais especificamente, quando recebi meu certificado da Oficina A Hora da Trova, na Casa Mario de Andrade, em São Paulo, das mãos do seu coordenador, mais tarde um grande amigo e incentivador meu, o falecido Izo Goldman, deixei de ser um rosto perdido na multidão. 1991… são 33 anos transcorridos. A quantidade de amigos/as, amigos/as-irmãos/as que nunca sonhei em ter nos meus 37 anos vividos anteriores, multiplicou-se a uma progressão geométrica nos últimos 33 anos. É… a trova faz amigos, mais… faz-nos ver que não somos apenas um número a mais, e que cumprimos um papel importante neste mundo imenso. Também fazemos inimigos, mas quem não os têm? Mas vale a pena. São muitos nomes, entre poetas, trovadores e escritores. Este ano, em setembro completo 70 anos, estimando que se seguir os passos de minha mãe, já falecida, viva pelo menos mais 23, não vai dar para colocar todos, então espero me perdoe se seu nome não estiver em destaque, não será por má vontade, mas pela quantidade enorme de nomes deste imenso Brasil, de Portugal e outros países.

George Sand* (As moças de Berry)

 Eu tenho uma moça, então duas,
Que não tem boca nem olhos;
Tenho três, então quatro,
Eu bem que queria resisti-las.
Eu tenho cinco, então seis,
Quem não quer seus beijos?
Por trás veio a sétima,
Nunca vi a oitava.

Verso antigo relembrado por Maurice Sand.

As moças de Berry parecem-nos primas das Milloraines da Normandia, que o autor de “Fantasias da Normandia” descreve como seres de tamanho gigantesco. Elas ficam paradas e sua forma, muito pouco distinta, não permite discernir seus membros ou seu rosto. Quando nos aproximamos, elas fogem por uma sucessão de saltos irregulares muito rápidos.

Estas moças ou jovens podem ser de diversos países. Eu não acredito que sejam de origem gaulesa, mas sim francesa, da Idade Média. De qualquer forma, vou relatar uma das lendas mais completas que consegui através de um de seus relatos. 

Um senhor de Berry, chamado Jean de La Selle, que viveu no século passado em um castelo localizado nas profundezas da floresta de Villemort. O camponês, triste e selvagem, comemora um pouco na orla da mata, onde a terra seca, plana e coberta de carvalhos, desce em direção a prados que dão em uma série de pequenos lagos que hoje em dia estão mal cuidados.

Já no momento de que falamos, as águas ficavam nos prados do senhor de La Selle, o bom cavalheiro não tendo muito o que fazer para limpar as suas terras. Tinha uma extensão bastante grande, mas de qualidade escassa e de pouco valor. No entanto, ele viveu feliz, graças aos gostos modestos e um caráter sábio e alegre. Seus vizinhos estavam sempre à sua procura devido ao seu temperamento agradável, bom senso e paciência na caça. Os camponeses daquele domínio e arredores o consideravam um homem de bondade extraordinária e de rara delicadeza. Dizem que ele preferiria que sua camisa ficasse permanentemente grudada em seu corpo e seu cavalo entre suas pernas a prejudicar um vizinho.

No entanto, aconteceu que, uma noite, o senhor de La Selle tendo estado em Berthenoux para vender um par de bois, voltava tranquilamente, escoltado por seu meeiro, o grande Luneau, que era um homem fino e educado, carregando na garupa esguia de sua égua cinza a soma de seiscentas libras em grandes moedas planas com a efígie de Luís XIV. Era a soma pelo gado vendido.

Como um bom senhor do campo que era, o senhor de La Selle havia jantado na taberna e, como não gostava de beber sozinho, fez o grande Luneau sentar-se à sua frente e serviu-lhe o vinho sem poupar, a fim de deixá-lo à vontade.

Tanto é que o vinho, o calor e o cansaço do dia e, acima de tudo, o trote rítmico da égua cinza tinha adormecido Monsieur de La Selle, e ele chegou em casa sem saber por quantas horas havia andado ou o caminho que havia seguido. Cabia a Luneau conduzi-lo, e Luneau o dirigira bem, pois chegaram sãos e salvos; seus cavalos não tinham o lombo molhado.

Bêbado, o senhor de La Selle não estava. Em sua vida, ninguém o tinha visto sem fazer sentido. Assim que se levantou, disse ao criado que levasse a mala para o seu quarto, depois conversou muito razoavelmente com o grande Luneau, deu-lhe boa-noite e foi para a cama sem dificuldades para encontrá-la. Mas no dia seguinte, ao abrir a mala para pegar o dinheiro, encontrou apenas pedras grandes e, após buscas inúteis, foi forçado a perceber que haviam sido roubados.

O grande Luneau, chamado e consultado, jurou por sua crisma e seu batismo que tinha visto o dinheiro contado na mala, que ele carregou e amarrou nas costas da égua. Também jurou por sua fé e pela lei que ele não havia deixado seu mestre sozinho desde que entraram na estrada principal. Mas confessou que, ao entrar na floresta, sentiu-se um pouco sonolento e conseguiu dormir em seu cavalo por cerca de um quarto de hora. De repente, ele se viu perto da Gâgne-aux--Demoiselles e, desde aquele momento, não tinha dormido e não havia visto nenhuma alma cristã.

— Vamos — disse o senhor de La Selle —, algum ladrão deve estar rindo de nós. A culpa é ainda mais minha do que sua, meu pobre Luneau, e o mais sábio é não se gabar. O prejuízo é só meu, já que você não participou da venda do gado. Eu saberei como me decidir, embora o assunto me incomode um pouco. Isso vai me ensinar a não adormecer a cavalo.

Luneau queria em vão levantar suspeitas de alguns caçadores pobres que estavam no lugar.

— Não, não — respondeu o bravo escudeiro. — Não irei acusar ninguém. Todos na vizinhança são honestos. Não falemos mais nisso. Eu tive o que mereci.

— Mas talvez você esteja um pouco bravo comigo, mestre...

— Por ter dormido? Não, meu amigo; se eu tivesse lhe dado a mala, eu tenho certeza de que você teria ficado acordado. Eu só culpo a mim, e minha fé, não pretendo me punir por isso. É o bastante ter perdido o dinheiro, vamos guardar nosso bom humor e apetite.

— Se você acredita em mim, no entanto, mestre, você deveria procurar em Gâgne-aux-Demoiselles.

— Gâgne-aux-Demoiselles é uma vala que tem cerca de meio quarto de légua de comprimento; não seria fácil remexer toda aquela lama, e além disso, o que encontraria lá? Meu ladrão não teria sido tão tolo a ponto de atirar minhas moedas lá!

— Você pode dizer o que quiser, mestre, mas o ladrão talvez não seja como você pensa!

— Ah, meu grande Luneau, você também acredita nas jovens que são espíritos malignos que gostam de pregar peças!

— Eu não sei, mestre, mas eu estive lá uma manhã, em plena luz do dia, com meu pai, nós as vimos como vejo você agora; ao mesmo tempo, voltamos para casa com muito medo, sem chapéus, nem gorros em nossas cabeças, nem sapatos em nossos pés, nem facas em nossos bolsos. Elas são muito espertas! Parecem fugir, mas, sem te tocar, te fazem perder tudo que conseguem pegar e se beneficiam disso, porque ninguém encontra suas coisas outra vez. Sim, se eu fosse você, drenaria todo aquele pântano. Seria melhor para você e as jovens logo sairão de lá; já que é de conhecimento de todo homem de bom senso que elas não gostam de lugares secos e que vão de lagoa em lagoa, à medida que a névoa da qual se alimentam é removida.

— Meu amigo Luneau — respondeu o senhor de La Selle —, secar o pântano certamente seria um bom negócio para o prado. Mas, além das seiscentas libras que perdi, nunca tive nenhum motivo para desalojar as jovens. Não é que eu acredite nelas precisamente, já que nunca as vi, nem qualquer outra criatura parecida; mas meu pai acreditava um pouco nisso, e minha avó acreditava completamente. Quando conversamos sobre isso, meu pai disse: “Deixe as moças em paz; elas nunca me fizeram mal, nem a ninguém.” E minha avó costumava dizer: “Nunca atormente ou invoque as moças; sua presença é boa para a terra, e sua proteção é um amuleto de boa sorte para uma família”.

— Por isso mesmo — retomou o grande Luneau, acenando com a cabeça. — Elas lhe roubaram!

Cerca de dez anos depois desta aventura, senhor de La Selle voltou da mesma feira de Berthenoux, trazendo de volta a mesma égua cinza, já muito velha, mas ainda trotando sem vacilar, com uma soma equivalente àquela que lhe fora roubada de forma tão singular. Desta vez ele estava sozinho, o grande Luneau havia morrido há vários meses; e nosso senhor não dormiu a cavalo, tendo renunciado e perdido definitivamente este hábito importuno.

Quando ele estava na orla da floresta, ao longo da Gâgne-aux-Demoiselles, que está localizada na parte inferior de uma encosta bastante alta e toda coberta de arbustos, velhas árvores e grandes gramíneas silvestres, o senhor de La Selle foi tomado de tristeza ao se lembrar de seu pobre fazendeiro inquilino, sentindo sua falta, embora seu filho Jacques, alto e magro como ele, e assim como ele prudente e astuto também, parecia fazer o seu melhor para substituí-lo. Mas não podemos substituir velhos amigos, e o senhor de La Selle também estava envelhecendo.

Ele foi tomado por pensamentos sombrios; mas sua boa cabeça logo os dissipou, e ele começou a assobiar uma melodia de caça, dizendo a si mesmo que, como em sua vida e em sua morte, seria o que Deus quisesse.

Quando estava aproximadamente no meio do comprimento do pântano, foi surpreendido ao ver uma forma branca, que até então ele havia tomado por aqueles vapores com os quais as águas paradas são cobertas, mudam de lugar, depois saltam e voam para longe, dissipando-se por entre os galhos. Uma segunda forma mais sólida emergiu dos juncos e seguiu a primeira, estendendo-se como uma tela flutuante; depois uma terceira, depois outra e mais outra; e, ao passarem pelo senhor de La Selle, tornaram-se vultos tão visivelmente enormes, vestidos com saias longas e claras, com cabelos esbranquiçados arrastando em vez de esvoaçantes atrás delas, de tal forma que ele não conseguiu sair dali.

Estes eram os fantasmas sobre os quais ele tinha ouvido falar quando criança. Assim, esquecendo-se do que sua avó o recomendara, de que se algum dia se deparasse com elas deveria agir como se não as visse, passou a saudá-las como o homem educado que era. Cumprimentou a todas, e quando chegou à sétima, que era a maior e mais visível, não pôde deixar de dizer a ela: “senhora, estou ao seu dispor”.

Mal proferiu esta frase, a jovem alta apareceu na garupa atrás dele, abraçando-o com os dois braços, frios como o amanhecer, e a velha égua cinzenta, apavorada, saiu a galope, carregando o senhor de La Selle pelo pântano.

Embora muito surpreso, o bom cavalheiro não perdeu a cabeça. “Pela alma de meu pai”. Ele pensou. “Nunca fiz nada de errado e nenhum espírito pode me machucar”. Ele segurou firme as rédeas e forçou a égua para fora da lama. Lutou, enquanto a jovem parecia tentar detê-lo e desviar a égua.

O senhor de La Selle tinha pistolas em seus invólucros, e ocorreu-lhe a ideia de usá-las; mas, julgando que se tratava de um ser sobrenatural e lembrando-se além disso que seus pais o haviam recomendado não ofender as donzelas da água, contentou-se em dizer gentilmente: “Realmente, linda senhora, deveria me deixar seguir meu caminho, pois não cruzei o seu para incomodá-la, e se a cumprimentei, foi por educação e não por escárnio. Se você quiser orações ou missas, torne seu desejo conhecido e, palavra de um cavalheiro, você as terá!”

Então o senhor de La Selle ouviu uma voz estranha acima de sua cabeça dizendo: “Mande rezar três missas pela alma do grande Luneau e vá em paz!”

Ele pensou então que tinha tido uma visão; no entanto, ordenou as três missas. Mas qual não foi sua surpresa quando, abrindo a mala, encontrou ali, além do dinheiro que recebera na feira, as seiscentas libras em moedas planas, ostentando a efígie do falecido rei.

Elas queriam dizer que o grande Luneau, arrependido na hora da morte, havia pedido para que seu filho Jacques fizesse essa restituição, e que este, para não manchar a memória de seu pai, havia solicitado que as jovens o fizessem. O senhor de La Selle nunca permitiu que nenhuma palavra fosse dita contra a probidade do falecido, e quando essas coisas eram faladas sem respeito em sua presença, ele costumava dizer: “os homens não podem explicar tudo, talvez seja melhor aqui estar sem censura do que sem fé”.
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* Biografia
George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant) nasceu no dia 1 de julho de 1804, filha de Maurice e Sophie Dupin. Seu pai faleceu quando ela era ainda criança, após uma queda de cavalo, quando acompanhava o príncipe Murat em campanhas armadas. Amandine é então mandada para Nohant, aos cuidados de sua avó, Marie-Aurore de Saxe. Sua avó era neta do célebre Marechal de França, o conde Maurício de Saxe, sendo este, filho bastardo de Augusto II, rei da Polónia e de Saxe, e da sua amante, a condessa Maria Aurora von Königsmark.

Durante sua infância, ao lado de sua avó, Amandine passava os dias brincando e descobrindo cada canto da propriedade de Nohant com seu meio-irmão Hippolyte Chatiron (filho do seu pai com uma amante da região), companheiro e parceiro em todas as suas aventuras e travessuras. Os dois estudavam em casa com um preceptor, quando não desapareciam nas profundezas da região. Sua avó preocupada com a educação e o comportamento de sua neta, a matriculou no Couvent des Anglaises em Paris e enviou Hippolyte para uma grande escola de cavalaria de uma cidade vizinha. Acontece que a menina se apaixonou pela vida silenciosa e introspectiva que levava dentro das paredes de pedra do convento e desejou ser freira. Lá, se interessou também por música e teatro e para alegrar suas amigas, decidiu criar pequenas peças de teatro e montar um grupo de meninas para representá-las.

As peças eram um sucesso, e Amandine gostava cada vez mais da vida no convento. Sua avó sabendo disso, levou a neta de volta a Nohant. De volta ao convívio com Aurore de Saxe, ela começou a compreender e amar cada vez mais a sua avó e quando esta morreu, pouco tempo depois, Amandine sofreu muito. Para que herdasse Nohant seria preciso que se casasse, assim, pouco tempo depois, ela se casou com François-Casimir Dudevant, em 1822. Desse casamento nasceram dois filhos - Maurice e Solange. Essa união, devido a infidelidades e alcoolismo de Casimir, desencadeou incontáveis problemas, culminando com o divórcio - fato incomum para a época - em 1836.

George começou a escrever para o jornal Le Figaro, com a colaboração de Jules Sandeau. Usavam, então, o pseudônimo de Jules Sand – inspirado no nome de Sandeau. Em 1831, lançaram o livro Rose et Blanche. Passou a usar o pseudônimo de George Sand em 1832, quando escreveu, sozinha (obrigada a usar um pseudônimo masculino, para ser aceita no meio literário), o romance Indiana, seu primeiro livro, seu primeiro sucesso. De 1832 a 1837, escreveu muitos outros romances, que invariavelmente eram publicados, primeiramente, como folhetins no jornal. Esses romances refletiam seus próprios desejos e frustrações, advogando o direito da mulher de ter um amor sincero e dirigir sua própria vida.

Além de seus comentados relacionamentos, Sand também tinha outros hábitos incomuns para sua época. Vestia-se com roupas masculinas por diversão ou praticidade e comodidade (como dizia). Também tinha o costume de fumar em público num tempo em que isso era inaceitável para uma mulher. Comentava-se, ainda, sobre a grande quantidade de obras que produzia como sendo uma característica pouco feminina.

George Sand teve uma vida amorosa agitada, com paixões que a influenciaram consideravelmente, como o escritor Jules Sandeau, que lhe deu o pseudônimo literário, o poeta Alfred de Musset, o advogado Michel de Bourges (entre 1835 e 1837), que a converteu aos ideais republicanos e socialistas, o músico Frédéric Chopin, a quem esteve ligada entre 1838 e 1847 e seu último amante Alexandre Manceau, gravador e dramaturgo. Depois de Jules Sandeau e antes de Alfred de Musset, teve também uma breve aventura com o escritor e arqueólogo Prosper Mérimée.

De 1838 a 1845, Sand expressou suas preocupações com os problemas sociais em romances como Consuelo (1842-1843) e O Companheiro da Viagem pela França (1840). Sonhava com um mundo em que o amor fraterno unisse as classes sociais. Teve participação ativa na revolução de 1848. De 1846 a 1853, escreveu romances leves, idealizando a vida nas províncias francesas. Estes incluem Francisco, o Bastardo (1847-1848), A Pequena Fada (1849) O Charco do Diabo (1846), Mauprat, 1837, entre tantos outros de igual sucesso. Finalmente, de 1854 a 1876, escreveu contos simples, à maneira das histórias de fadas. Desse período destaca-se Contos de uma Avó (1873), com histórias que ela escreveu para seus netos.

Os personagens de George Sand e suas histórias são invariavelmente repletos de ingenuidade, poesia e otimismo. Como dizia a escritora: "O romance não precisa ser necessariamente a representação da realidade." Ela faz parte também dos escritores políticos, contando em sua obra mais de 70 títulos, entre novelas, contos, peças de teatro e textos políticos. Suas memórias constituem suas obras de maior interesse, especialmente A História de Minha Vida (1854-1855) e Ela e Ele (1859), referência à sua ligação com Alfred de Musset

George Sand faleceu no dia 8 de junho de 1876, em Nohant, na França. Alguns dos seus romances se transformariam em filmes e séries de tv, como: Mauprat (1926), Mauprat (1972), os belos cavalheiros da Floresta Dourada (1976), A pequena fada (2004), O charco do diabo (1972), As crianças do século (1999), entre outros. Seus romances continuam a serem versionados para o teatro e realizados muitos filmes e livros sobre sua vida, assim como grupos de estudo sobre ela, seu tempo e sua obra.

Considerada a maior escritora francesa e a primeira mulher a viver de direitos literários, sua propriedade em Nohant foi doada ao governo francês, por sua neta Auror e está aberta à visitação pública - Maison de George Sand. Seus restos mortais e de quase toda a sua família estão no pequeno cemitério ao lado de sua casa em Nohant. (https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Sand

Fonte: George Sand. Lendas Rústicas. Publicado originalmente em 1858. 
Disponível em Domínio Público 

Recordando Velhas Canções (Travessia)


Compositores: Milton Nascimento e Fernando Brandt

Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou, mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar

Minha casa não é minha
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto
Muito tenho pra falar

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?

Sonho feito de brisa
Vento, vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito o que viver

Vou querer amar de novo
E se não der, não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?

Sonho feito de brisa
Vento, vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito o que viver

Vou querer amar de novo
E se não der, não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
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Travessia: A Jornada de Superação e Renovação de Milton Nascimento
A canção 'Travessia', interpretada pelo icônico Milton Nascimento, é uma obra que se destaca no cenário da música popular brasileira. Composta em parceria com Fernando Brant, a música foi apresentada ao público no Festival Internacional da Canção de 1967, onde alcançou o segundo lugar, e desde então, tornou-se um dos clássicos da MPB. A letra da música reflete um momento de profunda tristeza e desolação, mas também de superação e esperança.

O início da canção revela um sentimento de perda e solidão, expresso pela partida de alguém importante ('Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver'). A casa e o lugar que não se sentem mais como próprios simbolizam a desorientação e o desamparo que acompanham o fim de um relacionamento ou a perda de um ente querido. A dor é tão intensa que o eu lírico menciona o desejo de terminar com a própria vida, uma metáfora para a profundidade do sofrimento experimentado.

No entanto, a música não se detém na dor. Ela evolui para uma narrativa de resiliência e reconstrução. O eu lírico decide seguir pela vida, esquecendo-se da pessoa que partiu e rejeitando a ideia da morte ('Eu não quero mais a morte / Tenho muito o que viver'). A mudança de perspectiva é marcante, pois passa da inércia dos sonhos para a ação ('Já não sonho, hoje faço / Com meu braço o meu viver'). 'Travessia' é, portanto, uma ode à capacidade humana de enfrentar adversidades, de se reinventar e de buscar novos amores e experiências, mesmo após ter passado por momentos de extrema vulnerabilidade.

sábado, 18 de maio de 2024

José Feldman (Versejando) 138

 

Francisca Júlia (O Avarento)

Compareceu perante o juiz um avarento e queixou-se, com expressões de lástima, de que um homem, há muitos anos, lhe devia uma certa soma, da qual só tinha pago os juros.

— Vai chamá-lo, – disse o juiz - traze-o à minha presença. Quero saber por que é que ele não te pagou ainda, e não posso condená-lo sem ouvi-lo.

O avarento saiu e, logo depois, trouxe o devedor pelo braço, insultando-o e maltratando-o com crueldade.

— Ei-lo aqui, senhor juiz. É um homem mau, um vizinho péssimo, que não tem nenhuma compreensão do dever, que não respeita as leis e que não me pagou ainda o dinheiro que lhe emprestei generosamente.

— Fala agora tu, devedor! - ordenou o juiz. – Por que é que não pagaste a este homem o que lhe devias?

— Senhor! – balbuciou o homem humildemente. – Eu devia-lhe cem sequins* que ele me emprestou. Paguei-lhe a metade. Depois, como não lhe pudesse pagar o resto, ele cobrou por suas próprias mãos, apropriando-se das minhas terras, vendendo os meus frutos, roubando o meu camelo e despojando-me das minhas roupas. Hoje nada mais tenho, senão estes andrajos que cobrem o meu corpo e estas mãos para pedir esmolas.

Então o juiz, compadecido pela miséria daquele pobre homem e revoltado contra a avareza do credor, voltou-se para este e perguntou-lhe;

— Que mais queres deste homem? Já o reduziste à mais negra miséria. Sê um pouco piedoso, desperta na noite de tua alma algum sentimento generoso. Deixa-o ir em paz.

— Não, senhor juiz.

— Mas de que modo queres que ele te pague?

— Quero que ele venha para minha casa, para servir-me como escravo, até pagar os juros que me deve.
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* Sequins = Antigas moedas de ouro fabricadas e utilizadas na Itália

Fonte> Francisca Júlia da Silva. Livro da infância. Publicado originalmente em 1899. 
Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Você é linda)


Compositor: Caetano Veloso

Fonte de mel
Nos olhos de gueixa
Kabuki, máscara
Choque entre o azul
E o cacho de acácias
Luz das acácias
Você é mãe do sol

A sua coisa é toda tão certa
Beleza esperta
Você me deixa à rua deserta
Quando atravessa
E não olha pra trás

Linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz

Você é linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Você é forte
Dentes e músculos
Peitos e lábios
Você é forte
Letras e músicas
Todas as músicas
Que ainda hei de ouvir

No Abaeté
Areias e estrelas
Não são mais belas
Do que você
Mulher das estrelas
Mina de estrelas
Diga o que você quer

Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz

Você é linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Gosto de ver
Você no seu ritmo
Dona do carnaval
Gosto de ter
Sentir seu estilo
Ir no seu íntimo
Nunca me faça mal!

Linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim
Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz
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A Celebração da Beleza e do Amor em 'Você É Linda' de Caetano Veloso
A música 'Você É Linda', composta e interpretada por Caetano Veloso, é uma verdadeira ode à beleza e ao encantamento amoroso. Lançada no álbum 'Uns' de 1983, a canção se destaca pela suavidade de sua melodia e pela riqueza lírica que exalta a beleza de uma mulher de maneira poética e intensa. Caetano, conhecido por sua habilidade em mesclar poesia e música, cria uma atmosfera de admiração e reverência à figura feminina que é o foco da canção.

A letra da música é repleta de imagens que evocam a beleza e a força da mulher, utilizando referências culturais como a gueixa e o kabuki, elementos tradicionais da cultura japonesa, para realçar a delicadeza e a expressividade da amada. A canção também faz uso de metáforas naturais, como 'fonte de mel', 'onda do mar do amor' e 'mina de estrelas', para ilustrar a profundidade e a riqueza da beleza e do amor que o eu lírico sente. Essas imagens poéticas servem para ampliar a sensação de que a mulher descrita transcende a beleza comum, elevando-se a um patamar quase mítico.

Além de ser um elogio à beleza feminina, 'Você É Linda' também é uma celebração do amor e da vida. A música transmite uma mensagem positiva e alegre, onde o eu lírico se sente pleno e feliz pela presença dessa mulher em sua vida. A repetição do verso 'Você é linda, mais que demais' funciona como um refrão que grava na memória do ouvinte a força desse sentimento. Caetano Veloso, com sua voz suave e interpretação emotiva, consegue transmitir a sensação de que cada palavra é sentida e vivida, tornando 'Você É Linda' uma canção atemporal que continua a tocar corações por sua simplicidade e verdade.