segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Renato Frata (Valor da amizade)

Pedi uma bicicleta ao Papai Noel e ele me deixou no abandono.

Vilipendiou-me a crença da infância ao descobrir, entre soluços, que ele não existia. Mais que isso; descobri que os meus pais usaram o dinheiro da compra para pagarem o aluguel atrasado. O porquê disso, confesso, nunca vou compreender. Ou aceitar.

O aprendizado doeu mais que surra injusta, o que fez com que Papai Noel morresse no meu coração da pior maneira naqueles meus oito anos.

Ficou sendo um ser que jamais devia ter nascido. Ou sido inventado.

Não existe dor maior que a de decepção.

Enquanto eu chorava maldizendo o papelão deles por terem me deixado acreditar que ganharia a bicicleta, meu amigo Marco chegou com sua novinha, para brincarmos.

Ele confiava que eu ganharia uma e, ao saber da história do dinheiro, chorou com meus soluços um choro irmanado de amigos, com a mesma dor e cor de sentimento.

Um choro partilhado na proporção da alegria quando ríamos.

O Marco, que havia pedido ao Papai Noel só um pião de corda com música das naves espaciais do Flash Gordon, ganhara, além dele, também a bicicleta.

Era igualzinha a que eu escolhera, de pneus largos e na cor verde. Monark! Supimpa!

- Se o Papai Noel não existe - indagou encabulado por que não disseram a verdade antes do Natal? Mas — complementou - liga não, a minha dará para nós dois. Veja, ela é grande e tem garupa... Um pouco eu guio, outro pouco você...

- Mas a sua é sua, não é minha - resmunguei na extrema desilusão. - Eu queria uma que fosse minha! Uma que pudesse lavar e enxugar. Encher seus pneus...

- Então vamos fazer assim - retrucou; - Dou a você metade dela e ficamos com partes iguais. Pode escolher, a parte do guidão ou a do selim? Só que minha mãe não pode saber, trato feito?

Olhei para seus olhos azuis molhados de sinceras lágrimas. Abracei-o agradecido sabendo que a bicicleta continuaria dele por inteira, mas, no momento em que mil hienas dilaceravam meu coração de menino, que solução haveria?

O Papai Noel que fosse para o diabo e que lá ficasse na quentura do inferno!

Montamos e saímos pelas ruas a gozar a alegria que a bicicleta oferece e voltei a rir, é claro.

Quem não ri sobre uma bicicleta e do prazer de cortar o vento com a cara?

No fundo, porém, lá no oco da alma, o amargo sabor da mentira continuou a latejar, porque não há doce capaz de amenizá-la.

Sempre haverá, por mais que passem os anos, aquele rastro áspero da decepção.

Talvez o gesto de desprendimento do Marco com a oferta da metade do brinquedo frente à situação de gravidade íntima-financeira que estava a conhecer, terá sido a prova de que uma amizade não tem preço.

Nem mil bicicletas pagariam o que ele fez por espontaneidade, o que me dá a certeza de que não há verdade maior que a amizade, na inteireza que o termo encerra.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

José Valdez de Castro Moura (Trovas em Preto & Branco)


por José Feldman

Análise das trovas e relação de suas temáticas com literatos brasileiros e estrangeiros de diversas épocas e suas características

Trova 1.
As afrontas do passado
não guardo! Vou esquecê-las!
Pois bem sei que um céu nublado
não me deixa ver estrelas!

O eu lírico expressa um desejo de libertação das mágoas do passado. A metáfora do "céu nublado" representa a obscuridade das lembranças que obscurecem a visão das "estrelas", simbolizando esperanças e sonhos. Aqui, a luta interna entre lembrar e esquecer é palpável.

Álvares de Azevedo explora a melancolia e a luta contra as recordações dolorosas em suas obras, como em "Noite de Luar". A ideia de esquecer o passado para ver as estrelas reflete seu tema da busca por libertação das mágoas.

Adélia Prado escreve sobre a complexidade das memórias e a necessidade de superação. Seus versos transmitem um tom de reflexão que ressoa com a ideia de deixar o passado para trás.

O indígena brasileiro Ailton Krenak (1953, Minas Gerais) aborda a memória e a luta dos povos indígenas diante da colonização e da perda de suas terras. Em "Ideias para Adiar o Fim do Mundo", ele reflete sobre a importância de lembrar e resgatar a história, ressoando com a ideia de esquecer as "afrontas do passado".

John Keats (1795-1821, Inglaterra) lida com a ideia de memória e a luta para esquecer em poemas como "Ode a uma Urna". Sua sensibilidade em relação ao tempo e à beleza efêmera reflete a busca por libertação das mágoas do passado.

Billy Collins (1941, EUA) explora a memória e a nostalgia com um tom leve e irônico, como em "The Lanyard", refletindo sobre a luta entre lembrar e esquecer.

Trova 2. 
Cante a paz, o amor fecundo,
torne a vida mais risonha
e sem mágoas, porque o mundo
não perdoa a quem não sonha!

O convite para cantar a paz e o amor sugere uma busca ativa por felicidade e harmonia. O contraste entre "paz" e "mágoas" enfatiza que o mundo não perdoa a inatividade; sonhar é fundamental para superar as dores da vida.

Guilherme de Almeida frequentemente exalta o amor e a busca pela felicidade, como em "Soneto da Fidelidade". Sua poesia é otimista e busca celebrar a vida, alinhando-se à ideia de cantar a paz e o amor.

A poetisa indígena brasileira Eliane Potiguara (1955, Paraíba), celebra a cultura e a conexão com a natureza em seus poemas. Sua obra, que aborda a paz e o amor entre os povos, reflete a busca por harmonia e respeito, alinhando-se à temática da trova.

A poetisa nativa americana Joy Harjo (1949, EUA), a primeira poeta laureada dos EUA, frequentemente celebra o amor e a conexão com a natureza em seus poemas, como em "An American Sunrise". Sua ênfase na paz e na harmonia com o mundo reflete a busca por um amor fecundo.

Pablo Neruda (1904-1973, Chile) é conhecido por sua celebração do amor e da vida em poemas como "Soneto XVII". Sua linguagem apaixonada e imagética destaca a importância da paz e do amor.

Mary Oliver (1935-2019, EUA) frequentemente aborda a beleza do amor e a simplicidade da vida em seus poemas, como em "Wild Geese", transmitindo uma mensagem de esperança e conexão.

Trova 3.
Coração, inda pranteias
tantas perdas, nostalgias...
E, de angústias estão cheias
as minhas noites vazias!

O coração é personificado e expresso como um ente que sofre. As "perdas" e "nostalgias" refletem a tristeza acumulada ao longo do tempo. As "noites vazias" simbolizam solidão e desespero, sugerindo uma luta interna constante.

Casimiro de Abreu conhecido por sua poesia sentimental, aborda a dor da perda e a nostalgia em versos como "Meus Oito Anos". A tristeza do eu lírico ecoa a dor expressa na trova.

Lígia Fagundes Telles, em suas narrativas, explora a solidão e a nostalgia, refletindo sobre emoções profundas e complexas que se conectam com o sofrimento do eu lírico.

O indígena brasileiro Daniel Munduruku (1964, São Paulo) explora a dor e a tristeza em sua obra, abordando a luta do povo indígena e a saudade das tradições perdidas. A sua sensibilidade em relação às emoções ressoa com a ideia do coração que pranteia.

Alfred Lord Tennyson (1809-1892, Inglaterra) explora a dor da perda em poemas como "In Memoriam". Seu tom melancólico e reflexivo ressoa com a tristeza do eu lírico.

Sylvia Plath (1932-1963, EUA) aborda a dor e a angústia emocional em sua obra, especialmente em "Lady Lazarus", refletindo a luta interna do eu lírico.

Trova 4.
Discórdia, sonhos frustrados
e as mágoas não resolvidas
são os nós não desatados
das cordas das nossas vidas…

Esta trova fala sobre as tensões e desilusões que permeiam a vida. Os "nós não desatados" representam conflitos não resolvidos e a complexidade das relações humanas, sugerindo que essas questões internas afetam a realização pessoal.

Olavo Bilac toca em temas de desilusão e conflitos em sua obra, especialmente em sonetos que refletem sobre a vida e suas frustrações.

Hilda Hilst aborda a complexidade dos relacionamentos e os conflitos internos, refletindo sobre a discórdia e a busca por resolução em poemas como "A Obscena Senhora D".

W.B. Yeats (1865-1939, Irlanda) frequentemente lida com conflitos e desilusões em sua poesia, como em "The Second Coming", onde a discórdia e a crise são temas centrais.

Ted Hughes (1930-1998, Inglaterra) explora a frustração e a dor em seus poemas, refletindo sobre a luta humana contra as adversidades, como em "The Thought-Fox".

Trova 5.
Enfrento a dor tão constante
deste sofrer que é demais:
quero a volta de um instante
que não volta nunca mais…

A dor é descrita como uma presença constante e desgastante. O desejo pela "volta de um instante" perdido revela uma nostalgia profunda, sublinhando a impossibilidade de recuperar momentos passados. Essa reflexão sobre a efemeridade do tempo é central na obra.

Augusto dos Anjos, conhecido por sua poesia sombria, Anjos explora a dor e a melancolia em obras como "Eu". Sua visão do sofrimento ressoa com a busca do eu lírico por momentos perdidos.

Márcio Antônio Ramos escreve sobre a dor existencial e a luta contra a passagem do tempo, refletindo sobre momentos que não podem ser recuperados, semelhante à busca na trova.

A indígena brasileira Kátia Emygdio (1978, Rio de Janeiro) aborda a dor e as lutas diárias enfrentadas pelos povos indígenas, refletindo sobre a persistência da dor em suas poesias e na vida cotidiana.

A poetisa nativa americana N. Scott Momaday (1934, EUA) escreve sobre a dor e a luta em suas obras, como em "House Made of Dawn". Sua poesia reflete a constante presença da dor e a busca por momentos de beleza perdida.

Charles Baudelaire (1821-1867, França) aborda a dor e a melancolia em "As Flores do Mal", refletindo sobre o sofrimento contínuo e a busca por momentos perdidos.

Derek Walcott (1930-2017, Santa Lúcia) explora a dor e a busca por identidade em sua obra, refletindo sobre a relação com o passado e a dor persistente.

Trova 6.
Jamais busco o falso atalho
da glória não merecida...
É no suor do trabalho
que se constrói uma vida!

O eu lírico valoriza a autenticidade e o trabalho duro em contraposição à busca por reconhecimento não merecido. Essa estrofe enfatiza a construção de uma vida digna e significativa por meio do esforço e da honestidade.

Cecília Meireles valoriza a autenticidade e o esforço real em sua obra, refletindo a necessidade de construir uma vida com dignidade e honestidade, como em "Romanceiro da Inconfidência".

Fabrício Carpinejar fala sobre a importância do trabalho e da honestidade em suas crônicas e poesias, refletindo a busca por um caminho verdadeiro e significativo.

O indígena brasileiro Kaka Werá Jecupé (1953, Paraná) fala sobre a autenticidade e a necessidade de viver em harmonia com a natureza. Sua obra enfatiza a importância do verdadeiro caminho, ressoando com a valorização do trabalho duro e da autenticidade.

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832, Alemanha) valoriza o autoconhecimento e o trabalho árduo em obras como "Fausto", enfatizando a importância da autenticidade na vida.

Rupi Kaur (1992, Canadá) fala sobre a autoaceitação e a importância de viver de forma autêntica em suas poesias, promovendo a ideia de construir uma vida com dignidade.

Trova 7.
Luz débil que bruxuleia,
mesmo assim ela persiste:
- a minha paz é candeia
no viver de um homem triste !

A "luz débil" é uma metáfora da esperança que persiste, mesmo em meio à tristeza. A "candeia" simboliza a paz interior que se mantém acesa, mesmo quando o eu lírico se sente perdido ou desolado.

Fernando Pessoa (heterônimo Alberto Caeiro), escreve sobre a simplicidade e a luz da natureza, refletindo a ideia de esperança e persistência, mesmo em tempos de tristeza.

A poetisa nativa americana Linda Hogan (1947, EUA) utiliza a natureza e a luz como metáforas de esperança e resistência em sua poesia. Em "Solar Storms", ela fala da persistência da vida e da esperança, refletindo a busca pela paz em meio à tristeza.

Emily Dickinson (1830-1886, EUA) utiliza a imagem da luz como símbolo de esperança e persistência em poemas como "Hope is the thing with feathers", refletindo a busca por paz em tempos difíceis.

Nayyirah Waheed (1983, EUA) aborda a luta pela paz interior e a busca por esperança em seus versos, utilizando metáforas poderosas que ressoam com a luz que persiste na escuridão.

Trova 8.
Malgrado as tristes lembranças
prossigo a viver sonhando,
acalentando esperanças
que a tristeza foi matando…

Apesar das "tristes lembranças", o eu lírico continua a sonhar e alimentar esperanças. Isso sugere uma resiliência e uma determinação de não se deixar vencer pela tristeza, embora essa luta seja difícil.

Machado de Assis explora a memória e a esperança em várias de suas obras, como em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", refletindo sobre as tristezas passadas.

Ana Cristina César, em seus poemas frequentemente lida com a memória e a busca por novos começos, refletindo a resiliência diante de lembranças dolorosas.

O indígena brasileiro Davi Kopenawa Yanomami (1956, Roraima) fala sobre a memória e a importância de recordar as tradições e a cultura Yanomami em sua obra "A Queda do Céu". Sua reflexão sobre a luta e as lembranças ressoa com a ideia de acalentar esperanças.

Robert Frost (1874-1963, EUA) explora a memória e a transição entre a tristeza e a esperança em poemas como "The Road Not Taken", refletindo sobre a resiliência diante das lembranças.

Claudia Rankine (1972, EUA) lida com a memória e a luta contra a opressão em sua obra "Citizen", onde a resiliência frente às tristezas é um tema central.

Trova 9.
Não lastime as tristes horas
da viagem que angustia...
Viver é criar auroras
no ocaso de cada dia…

A estrofe sugere um olhar positivo sobre as dificuldades. "Criar auroras" no "ocaso de cada dia" é uma metáfora poderosa que enfatiza a possibilidade de renovação e esperança, mesmo nas horas mais sombrias.

Vinicius de Moraes frequentemente fala sobre a passagem do tempo e a beleza do cotidiano, como em "Soneto de Separação", onde há um convite à renovação e à criação de novas possibilidades.

Rupi Kaur (1992, Canadá) aborda a transformação e a beleza que podem surgir do sofrimento, refletindo sobre a criação de "auroras" em momentos difíceis.

Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882, EUA) fala sobre a beleza da vida e a possibilidade de renovação em poemas como "A Psalm of Life", abordando a criação de novas oportunidades.

Ocean Vuong (1988, EUA) reflete sobre a passagem do tempo e a criação de novos começos em sua obra "Night Sky with Exit Wounds", enfatizando a beleza que pode surgir da dor.

Trova 10.
Nos garimpos desta vida,
que o destino abandonou,
eu sou bateia esquecida
que nem cascalho pegou.

O eu lírico se compara a uma "bateia esquecida", sugerindo sensação de desvalorização e abandono. Essa imagem evoca a busca por algo precioso em uma vida que parece não oferecer recompensas, refletindo a luta existencial.

Carlos Drummond de Andrade explora a busca por significado em uma vida que parece vazia, como em "Quadrilha", onde a insatisfação é um tema central.

Alexandre de Almeida reflete sobre a desilusão e a busca por valor em sua poesia, abordando a sensação de abandono e a luta pela realização pessoal.

O nativo americano Sherman Alexie (1966, EUA) explora a busca por identidade e significado em suas obras, como em "The Lone Ranger and Tonto Fistfight in Heaven". Sua reflexão sobre as experiências difíceis da vida ressoa com a ideia de garimpar valor nas dificuldades.

William Wordsworth (1770-1850, Inglaterra) explora a busca por significado e beleza nas experiências cotidianas em "I Wandered Lonely as a Cloud", ressoando com a busca por valor na vida.

David Whyte (1955, Inglaterra) aborda a busca por significado e a exploração da vida em suas poesias, refletindo sobre as experiências que moldam nossa jornada.

Trova 11.
O tempo, só por maldade,
deixou marcas do desgosto,
nas rugas de ansiedade
que hoje trago no meu rosto.

O tempo é personificado como um agente maligno, responsável por deixar "marcas do desgosto". As "rugas de ansiedade" são uma representação física do sofrimento emocional, indicando que as experiências de vida deixam cicatrizes visíveis.

Mário de Andrade explora a passagem do tempo e suas consequências em obras como "Macunaíma", refletindo sobre as marcas que o tempo deixa na vida das pessoas.

Adriana Falcão fala sobre o tempo e suas marcas em suas poesias e crônicas, refletindo sobre as experiências que moldam a vida e deixam cicatrizes.

T.S. Eliot (1888-1965, EUA) explora a passagem do tempo e suas consequências em "The Love Song of J. Alfred Prufrock", transmitindo uma sensação de ansiedade e marcas deixadas pelo tempo.

Alice Oswald (1966, Inglaterra) reflete sobre o tempo e suas marcas em sua obra "Dart", explorando a relação entre memória e passagem do tempo.

Trova 12.
Tanta mentira e incerteza
vivi nessa vida e, assim,
eu constato, com tristeza,
que a vida passou por mim…

O eu lírico reflete sobre as desilusões e a incerteza que permeiam sua vida. A afirmação de que "a vida passou por mim" expressa um sentimento de impotência e a percepção de que, apesar das vivências, algo essencial foi perdido.

Cruz e Sousa aborda a incerteza e a busca por sentido em seus versos, refletindo o desencanto com a vida em obras como "Broquéis".

Elisa Lucinda lida com a verdade e a mentira em sua poesia, abordando a incerteza da vida e as desilusões de forma intensa e reflexiva.

Friedrich Hölderlin (1770-1843, Alemanha) aborda a incerteza e a busca pela verdade em sua poesia, refletindo sobre a condição humana em obras como "Hyperion".

Anne Carson (1950, Canadá) lida com a complexidade da verdade e da incerteza em sua obra "Autobiography of Red", refletindo sobre as desilusões da vida contemporânea.

IMPORTÂNCIA DAS TROVAS DE VALDEZ PARA A SOCIEDADE ATUAL

Promoção do Diálogo Emocional:
As trovas de José Valdez incentivam a expressão emocional e a reflexão sobre questões que muitas vezes são silenciadas na sociedade contemporânea. Essa abertura pode ajudar a formar comunidades mais empáticas e solidárias.

Inspiração e Esperança:
Em tempos desafiadores, as mensagens de esperança e resiliência encontradas nas trovas podem servir como um bálsamo, motivando as pessoas a continuarem lutando por seus sonhos e a encontrarem beleza nas pequenas coisas.

Valorização da Cultura e da Poesia:
A leitura e a apreciação de poesia, como a de Valdez, podem revitalizar a cultura literária, incentivando novas gerações a se conectar com a linguagem e as emoções. Isso pode enriquecer a educação e promover um maior entendimento das nuances da experiência humana.

Reflexão e Autoconhecimento:
As trovas estimulam a introspecção, levando os leitores a refletir sobre suas próprias vidas, experiências e sentimentos. Essa prática de autoconhecimento é essencial em uma sociedade que frequentemente prioriza o externo em detrimento do interno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de José Valdez, com suas profundas reflexões sobre a dor, a esperança, o amor e a passagem do tempo, encontram um eco ressonante no mundo atual. Em uma sociedade marcada por incertezas, ansiedades e um ritmo acelerado, as temáticas que Valdez aborda se tornam ainda mais relevantes. Demonstram como essas questões se conectam com a contemporaneidade e suas relações com poetas brasileiros e estrangeiros, além dos benefícios que essas trovas podem trazer à sociedade.

A luta para lembrar ou esquecer experiências passadas é uma questão universal. Em tempos de redes sociais e constante exposição, muitos enfrentam o desafio de lidar com lembranças e traumas. As trovas de Valdez abordam essa luta de maneira sensível, promovendo a reflexão sobre o passado como um elemento formador da identidade.

Em um mundo frequentemente marcado por crises — sejam sociais, políticas ou ambientais — a busca pela esperança e pela paz se torna fundamental. As mensagens do trovador sobre manter a luz acesa em tempos escuros ressoam profundamente, inspirando a resiliência e a capacidade de sonhar.

A solidão e a dor são experiências comuns na vida moderna, exacerbadas pela despersonalização das interações digitais. As trovas oferecem um espaço para reconhecer e validar esses sentimentos, promovendo empatia e compreensão coletiva.

A valorização do trabalho árduo e da autenticidade, presente nas trovas de Valdez, é um chamado para a ética e o esforço sincero em um mundo muitas vezes marcado pela superficialidade e pelo imediatismo.

A conexão entre Valdez e poetas como Carlos Drummond de Andrade e Adélia Prado é evidente na forma como ambos exploram a condição humana. Drummond, por exemplo, lida com a angústia e a busca de sentido em uma sociedade complexa, enquanto Prado celebra a simplicidade e a beleza das pequenas coisas. Essas influências refletem uma continuidade na busca por expressar a experiência humana em suas múltiplas facetas.

Poetas como Pablo Neruda e Emily Dickinson também dialogam com as temáticas de Valdez. Neruda, com sua celebração do amor e da vida, e Dickinson, com suas reflexões sobre a esperança e a solidão, oferecem uma perspectiva enriquecedora sobre os sentimentos que Valdez expressa. Essas conexões ampliam o entendimento das emoções humanas, mostrando que, apesar das diferenças culturais, as experiências universais permanecem.

As trovas de José Valdez de Castro Moura não são apenas uma expressão poética de sentimentos profundos; elas são um convite à reflexão sobre a condição humana em um mundo contemporâneo repleto de desafios. Ao dialogar com poetas de diferentes épocas e culturas, Valdez nos convida a explorar as complexidades da vida, promovendo um entendimento mais profundo de nós mesmos e dos outros. Em última análise, suas trovas oferecem um espaço para a cura, a esperança e a conexão, essenciais para uma sociedade mais empática e resiliente.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. 
Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

domingo, 13 de outubro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 58

  

José Feldman (Pafúncio e o Prêmio Nobel de Literatura)

 
Era uma noite de gala em Estocolmo, onde as luzes brilhavam intensamente e a expectativa estava no ar. O Prêmio Nobel de Literatura seria entregue, e Pafúncio Epaminondas, o jornalista da revista “Fuxicos & Fofocas”, foi enviado para cobrir o evento. Ele não tinha a menor ideia do que estava prestes a enfrentar, mas estava determinado a fazer sua cobertura ser a mais memorável de todas.

Vestido com um terno que mais parecia uma colcha de retalhos e uma gravata com estampas de frutas, Pafúncio entrou no elegante salão onde a cerimônia aconteceria. Ele olhou ao redor, admirando o luxo, mas também se sentindo um pouco deslocado. Afinal, ele estava ali para entrevistar os vencedores do Prêmio Nobel, e ele, que mal conseguia escrever uma frase sem errar, estava prestes a se encontrar com os maiores escritores do mundo.

Assim que chegou, Pafúncio se dirigiu a uma mesa onde estavam distribuindo os crachás aos convidados, premiados e jornalistas, recebendo um crachá. Então se deparou com um grupo de jornalistas renomados, todos vestidos impecavelmente. Ele respirou fundo e decidiu que precisava se misturar. 

Ao invés de ser discreto, acabou esbarrando na mesa de um buffet, derrubando uma bandeja cheia de canapés. Os petiscos voaram pelo ar como se fossem confetes, e ele, em um gesto de desespero, tentou agarrar um deles, mas acabou pegando uma taça de champanhe que, por sua vez, foi parar na cabeça de uma senhora idosa que estava perto.

“Desculpe! Aqui está seu novo penteado!” – Pafúncio exclamou, tentando ser engraçado. 

A senhora, com a taça ainda na cabeça, apenas olhou para ele com um olhar de reprovação.

Após esse início desastroso, Pafúncio se lembrou de seu verdadeiro objetivo: entrevistar os vencedores. Ele se dirigiu à área onde os laureados estavam sendo recebidos. O primeiro que encontrou foi um renomado escritor de romances, Odic Poesia, conhecido por suas obras profundas e filosóficas. 

Com um sorriso nervoso, Pafúncio perguntou: “Odic, se você pudesse descrever sua obra em uma fruta, qual seria?”

Odic, um tanto confuso, respondeu: “Uma laranja, porque é cheia de camadas.”

“E também azeda se você não a escolher bem!” – Pafúncio completou, sem saber se deveria rir ou se encolher. 

O escritor olhou para ele, um tanto perplexo, mas acabou sorrindo, aliviado por não ter sido ofendido.

Seguindo em frente, Pafúncio encontrou a ganhadora do Nobel de Literatura, uma mulher chamada Toda Prosa. 

Ele estava tão empolgado que, sem pensar duas vezes, soltou: “Toda, se você tivesse que escolher um animal para descrever seu estilo de escrita, qual seria?”

Toda, tentando manter a compostura, respondeu: “Talvez um pássaro, porque minhas palavras voam livremente.”

Pafúncio, em sua mente, transformou isso em uma manchete: “Toda Prosa diz que sua escrita é como um pássaro! Cuidado com as janelas abertas!” 

A escritora olhou para ele, sem saber se ria ou se se preocupava com a sua sanidade.

A cada nova entrevista, Pafúncio se sentia mais confiante, mesmo que suas perguntas continuassem absurdas. 

Ele encontrou um outro laureado, um autor de contos chamado Miguel Fábula. 

“Miguel, se você pudesse trocar sua pena por qualquer objeto da sua casa, qual seria?” Pafúncio perguntou.

“Uma colher,” Miguel respondeu, intrigado. “Porque eu adoro mexer nas coisas.”

“Então, você é um escritor que adora misturar ideias!” Pafúncio exclamou, anotando tudo. 

Miguel sorriu, mas não conseguiu esconder a confusão.

Após algumas entrevistas, um incidente inesperado ocorreu. Pafúncio, distraído enquanto escrevia suas anotações, tropeçou em uma cadeira e caiu, derrubando uma mesa cheia de flores que caíram como uma avalanche sobre ele. “Parece que estou sendo atacado por um buquê assassino!” ele gritou, enquanto tentava se levantar, coberto de pétalas.

Os jornalistas ao redor não conseguiam conter a risada, e Pafúncio, mais uma vez, se viu no centro das atenções. Ele decidiu aproveitar a situação e começou a improvisar uma performance, falando sobre “as flores da literatura” e como algumas eram mais traiçoeiras que outras.

Quando finalmente chegou a hora de se despedir dos laureados, Pafúncio percebeu que precisava fazer uma pergunta final que realmente deixasse uma marca. Ele se aproximou de Odic e perguntou: “Se a literatura fosse uma dança, qual seria e por quê?”

Odic, agora mais relaxado, respondeu: “Um valsa, porque é uma dança que exige tanto coordenação quanto imaginação.”

“Então, se eu me atrapalhar, posso chamar isso de ‘dança literária’!” Pafúncio completou, rindo de si mesmo.

Com sua cobertura cheia de perguntas malucas, incidentes hilários e uma quantidade inusitada de flores, Pafúncio voltou para a redação. Ele escreveu uma matéria que misturava a seriedade do Prêmio Nobel com seu estilo trapalhão, transformando cada entrevista em um momento de pura comédia.

Ao final, Pafúncio provou que, mesmo sem entender completamente o mundo da literatura, era capaz de trazer um sorriso ao rosto das pessoas. Afinal, a vida é uma grande história, e, como um jornalista de uma revista de fofocas, ele sabia que o mais importante era saber rir das próprias trapalhadas.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024

Silmar Bohrer (Croniquinha) 122


À medida que os anos passam muitas pessoas se aposentam e falam em se recolher com várias, sempre digo, desculpas. E o renunciar significa abandono voluntário, deixar em poder de outros, como no francês " laisser à bandon ". 

Não vamos esquecer que somos todos dependentes e encontramos pessoas que perdem a tramontana* quando ficam sem alguma atividade. Não sabem ou não entendem que a vida é um permanente renovar de afãs. Hora de restaurar ações, resgatar ideias, praticar outros conhecimentos. 

Nos seus pensares a atriz Andrey Hepburn escreveu que " as pessoas, mais do que objetos, precisam ser reparadas, revividas, animadas, chamadas e salvas - jamais jogue alguém fora ". 

Manter a calma - contar os dias como flores, não como sombras.
=======================
* perdem a tramontana = perdem o rumo

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (O ‘x’ do problema)

 (samba, 1936) 
Compositor: Noel Rosa

Nasci no Estácio, fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê

Nasci no Estácio, o samba é a corda
Eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você  

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
      E felicidade maior neste mundo não há   
             Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair   do Estácio é que é     
O 'x'    do problema 

Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair   do Estácio é que é     
O 'x'    do problema

Você    tem vontade que eu abandone 
O Largo do Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana

Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode crer que palmeira do Mangue
Não vive na areia  de Copacabana

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
      E felicidade maior neste mundo não há   
             Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é     
O 'x' do problema 

Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é     
  O 'x' do problema

A Essência do Estácio: Identidade e Pertencimento em 'O X do Problema'
A música 'O X do Problema', de Noel Rosa, é uma celebração da identidade e do pertencimento ao bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Noel Rosa, um dos maiores compositores da música popular brasileira, utiliza a letra para expressar o orgulho de suas raízes e a importância da cultura do samba em sua vida. A personagem da canção, que se identifica como uma mulher nascida e criada no Estácio, destaca sua formação na roda de bamba e na escola de samba, elementos centrais da cultura local.

A letra também aborda a questão da autenticidade e da resistência às mudanças impostas por pressões externas. A personagem recusa a ideia de abandonar o Estácio para viver em um grande palácio, mesmo que isso signifique uma vida de luxo e glamour. Ela enfatiza que sua essência está profundamente enraizada no Estácio, e que mudar de ambiente seria como tentar fazer uma palmeira do mangue viver na areia de Copacabana. Essa metáfora reforça a ideia de que certas identidades são intransferíveis e que o verdadeiro valor está em ser fiel a si mesmo e às suas origens.

Além disso, a música reflete sobre a felicidade e o sucesso sob uma perspectiva diferente da convencional. Para a personagem, ser diretora da escola de samba do Estácio de Sá é a maior felicidade que ela poderia alcançar, mais do que ser uma estrela de cinema. Isso sublinha a importância da comunidade e da cultura local como fontes de realização pessoal e coletiva. Noel Rosa, com sua habilidade lírica, consegue capturar a essência do Estácio e transmitir uma mensagem poderosa sobre identidade, pertencimento e autenticidade.
Fonte: https://www.letras.mus.br/noel-rosa-musicas/862749/significado.html

sábado, 12 de outubro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Impulso canino)

ARABRUTO ACORDOU eufórico. Estava decidido. Aquele dia iria liberar seu lado cachorro. Desde que Anabela viera trabalhar em seu apartamento, na Belizário Pena, na Ilha do Governador, como secretária do lar, prestando os serviços mais variados, nas quintas e sextas-feiras, Arabruto desembestou, assim do nada, seu lado canino. Pôs na cabeça que dessa sexta-feira não passaria. Assim que a graciosa chegou, como sempre, bem vestida, arrebatada num meio-vestidinho que lhe deixava as pernas bem torneadas à mostra, o desregulado de sua cabeça degringolou de vez. O fato é que todo o conjunto da bela, em sintonia com o pecado carnal, deixava fora de órbita qualquer ser humano que não tivesse um pingo de juízo no cérebro. A musa suscitava uma visão danada para nenhum marmanjo colocar defeito. Arabruto, um desses manés que, desde que a moça aportara em sua casa, vivia engendrando uma maneira de pular em cima dela com a ferocidade devastadora que lhe consumia as entranhas. Seus instintos estavam, realmente, à flor da pele. O presente texto contará tudo como de fato aconteceu, sem tirar nem por.

— É hoje, é hoje que me esbaldo... – teria dito Arabruto pouco antes de partir para o tudo ou nada.  

Como sempre, no horário habitual, a deusa encantada chegou. Antes de se dar em serviço, interfonou da portaria. Arabruto atendeu. Sabia, antecipadamente quem se fazia do outro lado da linha. Se arreganhou em mesuras:

— Minha fofa, nem precisava avisar. Você é parte das boas coisas do meu dia a dia. Tem a chave. Bastava pegar o elevador e se pôr a caminho...

Anabela educadamente deu a resposta:

— Bom dia, seu Arabruto. Sua esposa me ligou e pediu para eu passar aqui na padaria. Falou que a última caixa de leite havia sido aberta. Aproveito e levo uns pães frescos...

— Ótimo, Anabela. Tem dinheiro?

— Quando eu for embora, no final do expediente, o senhor ou dona Isaltina me reembolsam... pode ser?

— Ok. Fechado.

Assim aconteceu. Quando a moça entrou pela única porta existente, ou seja, a da sala, Arabruto a esperava escondido deitado no chão, atrás da geladeira, camuflado de um jeito que ela não o veria, quando ingressasse na peça. Aquela se fazia a primeira vez que o seu chefe agia daquele jeito. Não deu outra. Anabela tomou, pois, em consequência, um susto grandioso. Sua reação, não poderia ser pior. Como nunca antes o desmiolado se escondera, ou brincara de se passar por um cachorro, e pior, latindo, e pegando nas pernas dela, à altura dos joelhos com as mãos à guisa de abocanhada de um totó encarniçado, o desespero da prestadora nota mil se fez pavoroso e inevitável. Anabela, em ato de se precaver, passou a mão no primeiro objeto que encontrou. Uma panela cheia de feijão em cima do fogão. Sem pensar duas vezes, meteu a sua arma de resguardo improvisada em ação e o fez com toda força de suas agilidades, atingindo diretamente os cornos de Arabruto. Em face do intempestivo, a moça deixou cair por terra o saco de pão e a sacola com a caixa de leite que trouxera consigo. 

Por conta dessa brincadeira desastrosa e não programada, e, claro, de estropiado gosto sinistro, Arabruto arranjou uns bons cortes e galos na cabeça, bem ainda nas costa e pernas. Caso passado, susto refeito, o resultado do vexame, atonou:

—  Seu Arabruto, me desculpa. Que baita susto! O que fazia metido aí nos fundilhos da geladeira?

— Esperando você...

— E para quê?

— Você sabe, não é de hoje prometi a mim mesmo lhe daria umas mordidas de brincadeirinha. Olha como você me deixou...

A moça obviamente espiou, mas nada disse a respeito do que presenciava. Aproveitando o ensejo, se defendeu:

— Eu não esperava essa atitude de sua parte. O senhor ficou maluco? Olha como lhe deixei. Meu Deus, vamos para o pronto socorro aqui da Ilha, logo ali na Estrada do Dendê. Está jorrando muito sangue. Rápido, preciso dar conta do serviço ou a sua esposa vai subir nos cascos e me botar de volta para Bonsucesso com passagem só de ida...

Entretanto, não deu tempo. Dona Isaltina, a mulher de Arabruto, por algum motivo incalculado pintou de volta, dez minutos depois, não comparecendo aquela manhã ao seu local de trabalho. Em face disso, deu com a empregada toda melosa, o vestido curto mostrando o que não devia, socorrendo seu marido, os dois acomodados no chão. 
 
Para engrossar o caldo, na justa hora do assomo na cozinha, Anabela tentava estancar o sangue do cocuruto e também dos olhos e queixo do abestalhado, com ele acomodado tipo uma criancinha desprotegida em seu colo de fundo rosa. E o desgraçado sem vergonha se aproveitando da situação, mantinha os braços envoltos em torno do pescoço da prestimosa. Esse flagra deu um baita “BO,” ou melhor, um tumultuado “BU” (Boletim Unificado), na 37ª DP da Ilha do Governador, na estrada do Galeão, uma vez que a empregada, coitada, precisou explicar, toda confusa, à sua patroa, pormenorizadamente os motivos do marido dela, ensanguentado estar literalmente atarracado em seus braços e nuca. Final da tragédia, prevaleceu a mordida de um cachorro vira-lata e seus latidos invisíveis que sequer existiram. Caso passado, início de noite desse mesmo dia, depois dos curativos no hospital, compra de remédios e mentiras sem pé nem cabeça, o casamento de Arabruto e Isaltina culminou em separação. Sumariamente despejado, o desditoso jogou no ralo um relacionamento de quase trinta anos. Sem saída, as tralhas jogadas no elevador de serviço, o doidivana se aquartelou, às pressas, na casa de uma filha casada (rebento advindo da união dele com a sua adorada Isaltina). Quanto a ela, tão logo recuperada do baque, trocou de empregada e continuou tranquilamente em seu cargo. Isaltina exercia a função de assistente de uma empresa de advogados famosos na Avenida Presidente Vargas, quase às barbas da Igreja da Candelária e realizava as suas habilidades, desde quando ainda nem pensava em se unir ao Arabruto.  

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Estante de Livros ("Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola", de Daniel Munduruku)

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma coletânea de contos do autor e educador Daniel Munduruku, que busca apresentar de maneira acessível e envolvente a cultura, as tradições e as vivências dos povos indígenas do Brasil. O livro é dividido em crônicas que misturam humor, crítica social e reflexões profundas sobre a identidade indígena e suas interações com a sociedade contemporânea.

As crônicas abordam diversas situações do cotidiano indígena, destacando a riqueza das tradições orais, a relação com a natureza e as questões enfrentadas pelos povos indígenas, como preconceito, desinformação e a luta pela preservação de suas culturas. Munduruku utiliza uma linguagem simples e direta, apropriada para o público jovem, enquanto insere elementos de crítica e reflexão sobre a realidade dos indígenas no Brasil.

Cada crônica é uma oportunidade para rir e refletir, instigando os leitores a questionar estereótipos e preconceitos. O autor também enfatiza a importância da educação e do respeito à diversidade cultural, propondo que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo um diálogo entre diferentes saberes.

Munduruku explora a identidade indígena de maneira multifacetada, abordando as diferentes etnias e suas particularidades. Ele destaca a riqueza das tradições, costumes e línguas, reafirmando a diversidade cultural dos povos indígenas. A identidade é apresentada como algo dinâmico e em constante construção, desafiando a visão homogênea que muitas vezes é imposta à cultura indígena.

O autor enfatiza a conexão profunda que os indígenas têm com a natureza, apresentando-a como um elemento central de sua cultura e espiritualidade. As crônicas ressaltam a importância da preservação ambiental e a sabedoria indígena em relação ao uso sustentável dos recursos naturais. Munduruku sugere que essa relação deve ser respeitada e aprendida por todos, promovendo uma reflexão sobre a crise ambiental contemporânea.

Uma das principais críticas do livro é à maneira como os indígenas são frequentemente representados na sociedade. Munduruku utiliza o humor para desmantelar estereótipos e preconceitos, mostrando que os indígenas são seres humanos complexos, com suas próprias histórias e desafios. O autor convida os leitores a refletirem sobre suas próprias percepções e a importância de uma abordagem mais respeitosa e informada sobre as culturas indígenas.

O livro propõe que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo a diversidade cultural como um valor essencial. Munduruku defende que o conhecimento sobre as tradições e modos de vida indígenas deve ser integrado ao currículo escolar, contribuindo para uma educação mais inclusiva e consciente. O autor acredita que a educação é uma ferramenta fundamental para a transformação social e para o combate ao preconceito.

O uso do humor nas crônicas é uma estratégia eficaz para atrair o interesse dos jovens leitores. Através do riso, o autor cria um ambiente propício para a reflexão, permitindo que temas sérios sejam abordados de maneira leve e acessível. O riso é apresentado como uma forma de resistência e resiliência dos povos indígenas, que enfrentam desafios cotidianos com uma perspectiva otimista.

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma obra que vai além da simples narrativa; é um convite à reflexão crítica sobre a cultura indígena e seu lugar na sociedade contemporânea. Daniel Munduruku, através de sua escrita envolvente e humorística, desafia os leitores a se desapegarem de preconceitos e a abraçarem a diversidade cultural. O livro é um recurso valioso para educadores e alunos, promovendo um diálogo necessário sobre a identidade indígena, a relação com a natureza, e a importância da educação na construção de uma sociedade mais justa e respeitosa. 

A obra de Munduruku é um chamado à ação, incentivando a valorização das vozes indígenas e a necessidade de um espaço de aprendizagem que respeite e celebre a diversidade cultural do Brasil.

Fonte: José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.