sábado, 8 de março de 2025

Giuseppe Paolo Dell’ Orso (Memórias de um Vinhedo)

Na Itália dos anos 70, a luz do sol dançava sobre as colinas da Pieve di Soligo, cidade do no interior da Itália, criando um espetáculo que parecia pintado à mão. Giovanni, um jovem de espírito livre, acordava ao amanhecer, quando a neblina ainda abraçava a terra. O aroma da terra molhada e o canto dos pássaros eram a sinfonia que lhe dava bom dia. A vida nos vinhedos era dura, mas cheia de beleza e significado.

Giovanni cresceu entre as videiras, aprendendo com seu pai os segredos do cultivo. As mãos calejadas do velho eram um testemunho de anos de trabalho árduo, e cada uva colhida era um pedacinho de história que se entrelaçava com a tradição familiar. As tardes eram passadas entre risadas e cantos, enquanto a família se reunia para a colheita. A alegria do trabalho em conjunto era contagiante e, para Giovanni, não havia lugar mais encantador no mundo.

A conexão com a natureza era profunda. Giovanni entendia que a terra não era apenas um recurso; era um lar. Ele via cada estação como uma parte do ciclo da vida — a primavera trazia o renascimento, o verão a abundância, o outono a gratidão, e o inverno, a pausa necessária. Essa harmonia era um reflexo de sua própria existência, onde cada desafio e cada conquista se entrelaçavam como as raízes das videiras.

Com o passar dos anos, Giovanni encontrou o amor em Isabella, uma jovem com olhos que brilhavam como as estrelas. Juntos, sonharam em construir uma família e cultivar não apenas uvas, mas também memórias. A cerimônia de casamento foi celebrada sob as videiras floridas, com amigos e familiares ao redor, dançando e rindo, enquanto o vinho escorria como um rio de felicidade.

A vida seguiu seu curso, e logo vieram os filhos. Cada um deles crescia correndo pelos vinhedos, brincando entre as folhas e aprendendo a amar a terra. Giovanni os ensinava a respeitar a natureza, a entender o valor de cada planta e cada animal que cruzava seu caminho. Para ele, a preservação ambiental não era apenas uma ideia; era um legado que ele desejava deixar.

Mas os anos 70 também trouxeram mudanças. A modernização começou a ameaçar o modo de vida tradicional. Máquinas pesadas substituíam as mãos calejadas, e vinhedos exuberantes davam lugar a monoculturas. Giovanni observava preocupado enquanto as colinas que antes eram vibrantes se tornavam mais áridas. O que aconteceria com o futuro dos seus filhos se a natureza fosse esquecida?

Em um dia especialmente claro, Giovanni decidiu que precisava agir. Reuniu a família e compartilhou suas preocupações. “A natureza nos deu tudo”, disse ele, com a voz embargada pela emoção. “Precisamos protegê-la, não apenas para nós, mas para aqueles que virão depois de nós.” 

As crianças, com seus olhinhos curiosos, prometeram ajudar. Juntos, plantaram novas árvores, criaram um pequeno pomar e começaram a aprender sobre as práticas sustentáveis.

Os anos passaram, e a família de Giovanni se tornou um exemplo na comunidade. Outros vinhedos começaram a seguir seu caminho, buscando um equilíbrio entre tradição e inovação. A conexão com a natureza foi reestabelecida, e a beleza das colinas voltou a brilhar. A luta pela preservação não era apenas uma batalha, mas uma dança entre os seres humanos e a terra, onde cada passo importava.

Giovanni olhava para seus filhos, agora crescidos, e sentia um orgulho imenso. Havia algo mágico em ver a continuidade da vida, em saber que suas lições foram passadas adiante. As risadas que ecoavam pelo vinhedo eram um lembrete de que a natureza e a família estavam entrelaçadas, como as raízes das videiras.

Hoje, ao recordar aqueles dias, Giovanni entende que a verdadeira riqueza não está apenas na colheita abundante, mas na conexão que cultivamos com o mundo ao nosso redor. A preservação ambiental é um ato de amor, um compromisso com o futuro. E, enquanto a luz do sol se põe sobre as colinas da Pieve di Soligo, ele sabe que, assim como as videiras, a vida é um ciclo contínuo de crescimento, amor e respeito pela natureza. Que as futuras gerações possam sempre encontrar beleza e sabedoria nas lições da terra.
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GIUSEPPE PAOLO DELL’ORSO nasceu em 1927, em Pieve di Soligo, na Itália. Desde jovem, demonstrava um profundo amor pela literatura, influenciado por seu avô, um poeta local. Foi para Roma estudar Literatura Italiana na Universidade La Sapienza. Destacou-se como um aluno excepcional, recebendo diversos prêmios acadêmicos. Após obter seu diploma, se mudou para a Inglaterra, onde fez pós-graduação em Literatura Comparada na Universidade de Harvard, cuja pesquisa lhe rendeu um doutorado com honras e o prêmio Harvard Literary Fellowship, um reconhecimento pela contribuição significativa ao campo da literatura. Em 2001, foi convidado a lecionar Literatura Italiana em uma universidade no Brasil, no estado do Paraná. No Brasil, se envolveu profundamente com a comunidade literária, fazendo amizade com muitos escritores locais. Organizou encontros literários e oficinas de poesia, promovendo um intercâmbio cultural que unia vozes italianas e brasileiras. Defensor ativo de causas sociais, contribuiu para várias entidades filantrópicas tanto no Brasil, quanto na Itália, focando em projetos que promovem a educação e a inclusão social, ajudando a criar bibliotecas comunitárias e programas de alfabetização em áreas carentes.  Aposentado, perpetua a ideia de que a literatura é uma ponte que conecta pessoas, independentemente de fronteiras. Em 2005 criou uma conexão com o gestor cultural José Feldman. Conheceu o trabalho deste na Biblioteca de Parma onde há trovas e poemas da autoria de Feldman. Juntos, iniciaram diversos projetos que visavam fomentar a literatura e a troca cultural entre Brasil e Itália.
“A influência de Feldman na minha carreira literária é inegável. Através de suas iniciativas, não só ajudou a promover minhas obras, mas também contribuiu para a criação de uma comunidade literária vibrante, ao mesmo tempo que eu trazia uma nova perspectiva à cena literária, enriquecendo o diálogo cultural com nossas experiências e visões. A nossa amizade é um exemplo de como a literatura pode unir pessoas de diferentes culturas e origens. Juntos, promovemos a poesia e a literatura, mostrando que a arte é uma ponte que conecta corações e mentes, independentemente das fronteiras. A admiração mútua e a colaboração entre nós é um testemunho do poder transformador da amizade na literatura.” (GP Dell’Orso)
Autor de diversos livros, tanto em italiano quanto em português, com destaque para a poesia. Seus textos e poemas refletem a fusão entre a tradição literária italiana e as influências culturais brasileiras.

Fontes:
Giuseppe Paolo Dell’Orso. Cantos da Terra. Enviado pelo autor.
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Luciana Soares (O Mistério do Pastel Desaparecido)

Toda sexta-feira era sagrada, na casa do Espanhol e de sua esposa Lulu, um rodízio de pastéis! E quem comandava a fritura (pilotava o fogão), era Dona Luiza, a sogra, uma verdadeira autoridade em massas crocantes e recheios generosos.

Os sabores eram variados: queijo, palmito, carne, camarão etc., mas o queridinho da família era o pastel de banana. 

Aquela semana, resolveram inovar e ousaram investir na versão: banana com queijo. Espanhol, que torceu o nariz no início, foi o primeiro a se render. Lulu deu a ideia de fazer meia dúzia, já prevendo a disputa.

Quando os pastéis ficaram prontos, o cheiro dominou a casa. Dona Luíza organizou tudo na mesa e, entre goles de suco e mordidas crocantes, chegou a vez de degustarem o “sexteto”, nome que deram aos pastéis. Dos seis pastéis de banana com queijo, cinco foram devorados em tempo recorde. Mas, e o sexto?

Espanhol, com a boca cheia, jurou que só comeu um. Lulu levantou suspeitas, mas estava certa de ter pegado apenas dois. Luiza, indignada, alegou que só deu uma mordida no dela.

A tensão pairou no ar. Reviraram a travessa, olharam embaixo da mesa, até checaram o “dog” da vizinha que apareceu na porta. Nada do pastel.

A tradição das sextas-feiras se manteve, mas desde então, toda vez entre uma mordida e outra, a pergunta ressurge: "Cadê o pastel que sumiu?"

E até hoje ninguém assumiu.
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LUCIANA SOARES CHAGAS é do Rio de Janeiro/RJ. Doutoranda em Educação, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Especialista em Gestão de Recursos Humanos. Formação em Pedagogia Empresarial. Especialização em Mídias e Tecnologia na Educação pela Universidade Veiga de Almeida e Licenciatura em Pedagogia. Docente há mais de 10 anos dos cursos de MBAs do Núcleo de Negócios e das Pós Graduação de Educação. Palestrante nas Jornadas presenciais para os alunos da EaD. Atuou como Instrutora comportamental em empresas como ABRADECONT, Marinha de Brasil-EMGEPRON, Miriam S.A., CIPA Administradora (BKR-Lopes e Machado), IBEF, Casa de Cultura (SevenStarmarketing). Diretora e sócia da Prassos Treinamento Empresarial. Autora de diversos E-books de disciplinas da área de Pedagogia na Universidade Veiga de Almeida e Organizadora do Livro E-Book da Coletânea de textos sobre inclusão escolar: Pedagogia.

Fontes:
Texto enviado pela autora.
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sexta-feira, 7 de março de 2025

Adega de Versos 130: Silmar Bohrer

 

Monsenhor Orivaldo Robles (O desperdício)

Faz anos, era véspera do aniversário de meu afilhado, criança dos seus quatro ou cinco anos. A comadre surpreende-o atirando ao lixo um monte de brinquedos. “Que é isso, filho?”. A resposta desconcerta-a: “Ah, mãe, amanhã é meu aniversário. Vai vir tudo novo”. A comadre não alisa. Faz desabar sobre o pequeno um sermão a respeito de crianças pobres, que se sentiriam felizes com um só daqueles brinquedos que ele estava jogando fora. O compadre reforça a bronca. Conta de sua infância na zona rural. Com os irmãos fabricava os próprios brinquedos utilizando carretéis de linha usados, sarrafos de madeira, vidros de remédio vazios e outras peças. “O pai e os tios, meu filho, nem sonhavam com um brinquedo desses que enchem o seu quarto. Um só já nos tornaria felizes. Mas a gente não tinha dinheiro”. Confrange-se o coraçãozinho do garoto. Ele cai num pranto sentido, que pai e mãe precisam consolar.

Dias depois, na pia da cozinha aparece aberto um potinho de iogurte quase cheio. A repreensão vem na hora: “Filho, se você não aguentava tomar um inteiro, por que abriu? Quantos pobrezinhos desejam um iogurte...” Rápido, ele corta o discurso: “Ih, pai, não vem de novo com esse papo dos pobres, que outro dia eu fui obrigado a chorar por causa deles”.

A cena acontece todos os dias numa infinidade de lares brasileiros. Infelizmente, nem todos os pais são educadores como o compadre e a comadre. Boa parte se preocupa com cortinas, camas, sofás e roupas. Cuidam que restos de comida ou bebida não os emporcalhem. Cuidado cosmético, beleza externa para os outros verem, só isso.

O desperdício é hábito generalizado, que importa combater desde cedo. A criança não tem ideia do uso correto das coisas. Não sabe se está gastando muito ou pouco. Precisa de orientação sobre o sentido exato de quantidades e valores. Senão, vai se acostumar com o esbanjamento. Se os pais não transmitem, também no consumo, noções de disciplina – pior, se eles mesmos dão exemplo de gastança irresponsável –, será difícil corrigir vícios arraigados no povo.

O opúsculo “Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome”, publicado em abril de 2002 (Documentos da CNBB – 69), ensina, já no subtítulo: “Alimento, dom de Deus, direito de todos”. O acesso à comida de qualidade e em quantidade suficiente é direito de toda pessoa, de qualquer condição, em qualquer lugar do planeta. Como se tornar gente, na plenitude do termo, sem poder se alimentar?

A este absurdo chegamos: países cheios de pessoas doentes por comerem em excesso, enquanto em outros a população vem sendo exterminada pela fome. Dentro do Brasil convivemos com ambas as situações. Temos gente desperdiçando, ao lado de quem não possui o necessário para comer.

O problema vem de longe. Não será resolvido da noite para o dia. Mas é preciso que todos se sintam comprometidos. Não adianta ficar lançando a culpa nas costas dos outros. Para o faminto pouco importa quem provocou a fome. O que ele quer é comida.

Nas propostas concretas, sugerem-se medidas possíveis, algumas bem simples, como “educar para o melhor aproveitamento do alimento produzido, evitando todo o desperdício”.

É urgente começar dentro de casa, educando as novas gerações. Como, desde muito, fazem os compadres.
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MONSENHOR ORIVALDO ROBLES nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória - Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro "Celeiro Desprovido", com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.

Fontes:
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Antonio Brás Constante (Você sabe distinguir entre o certo e o errado?)

O ser humano é capaz de agir de acordo com um princípio moral coerente? E você? Você acredita ter a capacidade necessária para resolver seus próprios dilemas éticos? Outro dia li sobre um estudo feito por um pesquisador chamado Hauser, através do livro “Deus, um Delírio”, do escritor Richard Dawkins, onde foram colocados alguns dilemas morais a uma série de indivíduos, buscando respostas para estas perguntas.

No primeiro dilema haviam cinco pessoas presas aos trilhos de uma ferrovia, e você (sim, você leitor) tinha acesso ao centro de comandos dos trilhos. Um trem desgovernado vinha em direção a essas pessoas, e somente você poderia desviá-lo para uma linha secundária salvando a vida dessas pessoas, porém, na linha secundária também havia uma pessoa presa aos trilhos, ou seja, salvando as cinco pessoas você mataria o infeliz que estava sozinho, sabe-se lá fazendo o quê, nos outros trilhos. De acordo com o livro de Dawkins, diante deste dilema, aproximadamente 90% dos entrevistados, optou por sacrificar aquela pessoa solitária para salvar as outras cinco.

No segundo dilema havia cinco pacientes em um hospital que precisavam de transplante, cada um necessitava de um órgão diferente, você era o médico-cirurgião responsável pelo hospital, e descobriu que havia uma pessoa na sala de espera que era compatível com aqueles cinco pacientes, a pergunta agora é, se não existissem complicações jurídicas, apenas morais, você sacrificaria essa pessoa para salvar as outras cinco? Em torno de 97% dos entrevistados disse que era imoral matar alguém para salvar os pacientes.

Agora vamos misturar tudo e colocar os cinco pacientes no trilho principal do trem e o homem da sala de espera no trilho secundário, neste caso haveria ou não problemas na morte do homem sozinho para salvar os outros? Pode-se notar que no primeiro caso o arauto da morte é um fator externo (o trem) e que todos são vítimas sem qualquer conexão com o artefato, já no segundo caso o fator “morte” está intrínseco a cada um dos cinco doentes, como uma espécie de sina destinada a eles, neste caso pareceria injusto que outro indivíduo fosse sacrificado para salvá-los.

Na reflexão sobre estes dilemas o peso da decisão tende a se alterar quando novos elementos são apresentados, tais como: E se algum dos cinco pacientes fosse próximo a você (mãe, irmão, sogra, namorado cabeludo e tatuado da sua filha, etc), e o homem sozinho fosse um total desconhecido, ou quem sabe um corrupto, ou até sua ex-mulher? E se fosse o contrário? No caso dos trilhos, e se os cinco indivíduos fossem procurados pela polícia? E se a pessoa sozinha fosse uma criança? E se você tivesse que arremessar a pessoa nos trilhos para salvar as outras? E se essa pessoa fosse Madre Tereza de Calcutá? Ou Hitler? Ou se fosse seu filho...

Nossa mente vai dançando conforme as situações que vão se apresentando, onde o certo e o errado vão mudando de lado a cada nova informação, mas no fundo o resultado final é sempre o mesmo, trocar cinco vidas por uma ou vice-versa. Outro fator interessante é que quando apresentado em pequenas proporções, muitas vezes não nos damos conta do que podem representar tais escolhas, mas quando multiplicamos os números, nossa percepção muda, por exemplo, ao invés de cinco pessoas aumente para cinquenta milhões, e troque o indivíduo solitário por uma minoria de alguns milhões de habitantes, e perceberá como estas escolhas soam parecidas com aquelas difundidas pelas tiranias, para justificar seus genocídios históricos.

Dispomos em nossa herança genética de vínculos relacionados ao senso moral inerente a cada indivíduo. Algo forjado nos mesmos primórdios que definiram os sentimentos e sentidos de autopreservação de nossas vidas. Apesar de entendermos muitas de nossas escolhas como emocionais, elas acabam tendo raízes bem mais profundas e desconhecidas dentro de nossa frágil cabeça, do que podemos imaginar.

Somos um produto da evolução, que nos moldou tal qual um boneco de barro para se chegar até onde nós chegamos. E apesar de ser desprovida de qualquer mágica, o resultado de toda esta ciranda existencial é algo verdadeiramente encantador em seu produto atual e não final, pois assim como o universo, nós também somos obras inacabadas do ponto de vista macro de nosso desenvolvimento como raça, porém, finalizados diante de nossa finita condição humana.
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ANTONIO BRÁS CONSTANTE é natural de Porto Alegre. Residente em Canoas RS. Bacharel em computação, bancário e cronista de coração, escreve com naturalidade, descontraída e espontaneamente, sobre suas ideias, seus pontos de vista, sobre o panorama que se descortina diferente a cada instante, a nossa frente: a vida. Membro da ACE (Associação Canoense de Escritores).

Fontes:
Recanto das Letras. 16 agosto 2009.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1756856
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terça-feira, 4 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 23 *


 

Manuel de Oliveira Paiva (Pobre Moisés que não foste!)

A janela estava aberta ao luar: porém, de uma grande amendoeira, que subia quase apegada aos altos muros da casa, caíam sombras negras fazendo lavores imensos no pano do caiamento, e assim, era numa grande mancha, preta como uma nuvem de chuva, que a janela emoldurava-se, adquirindo as parecenças de um remendo quadrilongo, de um tampo de fogo, sobre um pano de trevas. Uma cabecinha loira despontou do ambiente luminoso, e rapidamente fechou-se. Ficou tudo no escuro cá fora, a não ser a face dos corpos onde batia o luar. O murmurejo das ondas ressoava como a escoar pelo chão.

O regato achatava-se morno e quase invisível sob rijos golpes de sombra. Um corpo alvo se encaminhava por ele acima, e ouvia-se o chape-chape dos pés.

A intervalos, o corpo resplendia de luar.

Depois, a janela abriu uma greta, como uma larga fita de fogo, e a fita fez-se mais larga, e em seguida, de modo que rasgou-se e desapareceu. Ficou tudo no escuro outra vez, a não ser a face dos corpos onde batia o luar.

No dia seguinte, a noite estava zangada. A lua, que ontem era a princesa de pezinhos pequenos, hoje era a Maria Borralheira; tudo era cinza no seio do luar, nem as lindas sombras negras e nem os coloramentos mágicos porejando encantos de poesia e saudosa tristeza. O céu queria chover, o céu queria chorar, o céu queria mais proteger a virgem que lhe confidenciara na janela aberta.

Virgem?!

Pois quem é que não conhece na vila o velho Antônio Faraó? É aquele que habita no sítio cheio de canaviais. Ele é o senhor da mulher loura que apareceu na janela. É um homem sem mácula. Jesus, então, por que é que a janela não se tornou a abrir? Pois aquilo não era a alegria dos raios da luz e a predileção das sombras da amendoeira? A amendoeira? Cortaram-na!

E quem era aquele que subia a corrente fazendo chape-chape? Ele amava muito a mulher loura. Um dia ela disse-lhe: — Quando vires a luz na minha janela, sobe a amendoeira, e apega-te ao lençol que penderá da sacada.

E ele viera; mas, quando tornou a desaparecer na corrente, fazendo chape-chape, jurou a si que ali não voltava mais. "Tu me enganaste! dissera ele, ao despedir-se dela. — Meu pai só planta em roçado novo. A capoeira é para se dar aos cavalos."

"Não compreendo" — respondera-lhe a amante. — E logo desatou a chorar.

O homem tinha o coração de fogo, porém a decepção apagou. E ficou de gelo. Assim, para nunca mais, desapareceu na corrente, fazendo chape-chape.

— O velho Antônio Faraó quase endoideceu. A mulher loura botou-se a ele como uma fera e disse-lhe:

— "Desgraçado!"

E calou-se. Não disse mais, porque estava toda cheia, desde o cérebro até ao ventre. Caiu para trás, e pediu veneno a ele — que pelo amor de Deus matasse-a! Mas, neste ponto, ajoelhou-se, pôs as mãos, e pediu-lhe, cheia de lágrimas, que a deixasse viva, porque, santo Deus, no seu corpo de mulher palpitavam dois corações vivendo um da vida do outro.

Contudo, era tremendo e feroz o olhar que ela flechava para o pai de seu filho. E achava horrível a ideia dele, a de ter aberto a janela para a entrevista de um inexperiente mancebo, afim de salvar a honra.

"E então? blasfemara o velho, chacoteando, a remexer num saco de dinheiro — Porventura José não é o pai de Jesus?..."

Hediondo!

E os meses corriam, bem como as águas do riacho. Uma vez, vinha rompendo a aurora, e foi a primeira vez que a janela se abriu, desde que o mancebo veio e foi para nunca mais. Foi também a primeira vez que a mulher loura sorriu, desde aquela cena com o António Faraó. Agora ela podia morrer, porque os dois corações que palpitavam no mesmo corpo se tinham separado: o seu filhinho nascera! E foi por isso que o sorriso da mocidade reabriu-lhe os lábios secos de mártir.

Mas era preciso salvar a honra de Antônio Faraó. A mulher loura desmaiara num frouxo de sangue. Nesse ínterim, desapareceu o seu filho. Ela acorda, ergue-se pálida, grita por ele, e acima de suas forças, corre à janela donde sentia-se cheiro do rosicler da aurora, se debruça, estira o pescoço, aflita...

Nas praias do riacho cavava um homem, com a ponta de um facão, uma covinha onde se poderia sepultar um botão de rosa.

Com as suas praias lavadas, o riacho parecia um poço comprido e interminável, manso, com uma correnteza que lhe esflorava apenas, e umas tremulações de quando um líquido quer abrir a fervura; de modo que as ondulações eram antes efeito de um ventinho que a ameaçava engrossar. As águas, em si, aparentavam uma quietude, uma pachorra admiráveis.

O lugar, onde o homem cavara uma covinha, era sob o dossel de uma bananeira. O sol, no limbo de uma larga folha de tinhorão, avivava transparências, desenhava-lhe velames como em fina cútis de moça, e projetava embrazinhas, que o vento movia tremendo, para o pequeno cômoro que entupira a covinha onde sepultar-se-ia um botão de rosa.

Por cima do bosque o dia empoeirava deslumbramentos sem par. As flores se destacavam nas polpas enormes da folhagem, e pareciam rir de inocência.

Mais tarde caiu a chuva e o riacho encheu, subiu, trepou, até as moitas do bananeiro. Agora, mourejava nas areias do leito a ação de uma volumosa corrente, improvisando cômoros e os desfazendo.

Nos tapumes, ao passar entre as estacas, a água se abria como dedos, a espumar e a marulhar. Escavava canais, espraiava e revolvia-se no polme (massa líquida) do enxurro. A superfície líquida não era mais uma casquinha de espelho que em seu seio recebia um paraíso ideal pintado para debaixo do chão a golpes de sol e de claridade.

O turbilhão montava. E parecia um rio de lama, chicoteado pelos cordõezinhos da chuva. Caía sobre a natureza uma zoada infernal.

O sol, pé ante pé, rasgando uma brechinha entre as altas nuvens de repouso, furava pelo dossel do bananeiro e descia até ao lugar do cômoro que encobria a covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. "Nada. Aqui não está coisa alguma." O sol falava consigo mesmo, gesticulando como um espião, na pontinha dos pés, com um olhar tão vivo que abria transparências no limbo das grandes folhas. Foi adiante.

O riacho tomara juízo, recolhendo-se ao seu leito modesto e voltando à pacatez de bom colega. Recebeu o sol com todas as cortesias. Acendeu rebrilhamentos à tona, encheu-se de imagens que pareciam um paraíso debaixo do chão, mostrou que imensamente amava aos seus amigos a ponto de conservar dentro de si o retrato vivo do bananeiro, e dos tinhorões verdes e púrpuros, e das touceiras de borboletas, de tudo e de tomos, até do próprio céu que bem alto mora.

Porém ambos se retraíram quando avistaram, passando o caule do coqueiro caído que servia de ponte, a mulher loura que habitou a janela do castanheiro cortado. A imagem caía de águas a fundo com a cabeça para baixo. Aqui o sol acendeu-se mais, a fim de que o riacho gozasse da aparição, e pintasse grandes segredos, e fartasse o peito nela toda. Ela passou e foi direitinha ao lugar onde vira o homem cavando com um facão uma covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. E deu um grito, abugalhou os olhos, e caiu de joelhos, mãos postas para o céu:

— Ah! Ela olha para cima, o seu olhar se parece comigo, os seus cabelos são meus irmãos. Implora para cima, é a mim que ela pede, porque aqui quem manda sou eu — disse o sol, incandescendo raios de alegria.

— O que ela quer sei eu, que vi tudo — respondeu o riacho. — E cochichou com o sol, que se estendia sobre ele, num amplexo dourado.

Vamos, protejamos a pobre mãe!

— Mas olha, não vês tu aquele sujeito que atravessa a ponte e segue os mesmos passos da mulher loura?

— Que importa! Protejamos a pobre mãe! Ela é a judia cativa, tu és o Nilo, e eu sou o grande Deus dos oprimidos! Anda! Revolve-te!

Sobre a água estendiam-se natas de claridade trêmula ao fremor da corrente. Folhas maduras do bananeiro e tudo o mais ao redor, como que era chupado para o fundo, em perspectiva. E as águas em comoção pareciam de bronze dourado, pareciam de seda furtiva entre verde e cor de fogo. E esse manto com modos que se ia rasgando. O zéfiro soprava embalamentos doces na folhagem. O sol tremia paternalmente. E num grande riso de luz e de marulhos, o riacho apresentou ao sol, de repente, no chamalote encantador das águas, o corpo encantador de um cupidozinho de espumas.

A mulher soltou um grito alegremente desvairado e saltou para as águas. Porém não pôde. O homem que, armado de um facão, abrira a covinha onde poder-se-ia sepultar como um botão de rosa o corpinho encantador de uma criança morta, estava ali e agarrou-a.

Ela ficou esbugalhando um olhar de pedra para a tumidez das águas. Ele também olhava assim. E a corrente lhes parecia membrana viva de um animal, de modo que o lombo chato de uma cobra que não acabava de passar, de uma cobra insinuante, fascinadora, que hipnotiza.

Assim, deslizava o riacho por entre a vegetação, como uma serpe. E ali, estava a mulher loura tolhida pelo homem do facão, semelhante um jacaré sob as garras de uma onça.

E o cupidozinho foi, foi, foi, e sumiu-se nas águas onde quando a gente andava fazia chape-chape.

Fontes:
Manuel de Oliveira Paiva. Contos. Publicado originalmente em 1888. Disponível em Domínio Público.
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Paulo R. O. Caruso (Cordel de aprendizado)


Quando eu era criancinha,
aprendi uma lição:
eu poderia plantar 
um pezinho de feijão 
num copinho de café,
mostrando ali minha fé
no Senhor, com gratidão. 

O grãozinho de feijão 
com água e algodãozinho
com o tempo despertou
do delicado soninho,
abriu braço, espreguiçando-se
e foi logo então mostrando-se
verdejante bebezinho.

Os meus olhos de criança 
mal podiam ver então 
um broto pequenininho
num tiquinho de algodão,
uma base ao crescimento
e com água e sentimento
ter uma suave explosão!

Depois do braço miúdo
que cresceu e se mostrou 
ser o caule de uma planta 
uma folhinha brotou 
como espinafre, verdinha,
alegrando a criancinha,
dando um baita sorrisão!

Claro, por falta de espaço,
e por ser experiência
com algodão e não terra,
o pé demonstrou carência
e de fato não vingou,
o que então me demonstrou
biologia em excelência.

Mais tarde tive um canário
que nem chegou a durar 
um mês na “sua” gaiola,
vindo o tal a então tombar 
com um mês de aprisionado
sob um facho acalorado
do sol do seu libertar...

Logo depois um coleiro 
eu ganhei de um primo meu
e fiquei muito feliz,
pois nova vida se deu 
lá em casa, na gaiola:
um coleirinho de gola
filhotinho se prendeu...

Eu ainda era criança
e de fato não sabia 
que tristeza era manter
uma ave qualquer dia 
na gaiola, aprisionada;
mantive então a empreitada
e segui com alegria.

O bichinho tinha um canto
alto e forte toda vida!
Parecia um tenorzinho 
com a voz fortalecida 
pelo alpiste e pela água,
não mostrando muita mágoa
por ter a vida apreendida...

Claro, o bicho nem lembrava 
a vida fora das grades!
Quando vira aprisionadas
todas as suas verdades, 
ele era um filhotinho 
frágil e muito novinho,
sem conhecer liberdades...

Porém, ele foi crescendo
sem carinho pela mão 
que sempre o alimentava,
tentando com atenção 
bicá-la sem demonstrar 
qualquer remorso ao tocar,
não aceitando perdão.

Quando eu tirava a banheira
para pôr água limpinha,
ele voava pra longe,
ao teto da gaiolinha,
tentando fugir de mim,
do monstro de carmesim 
que ia contra a sua vidinha...

Quando eu tirava seu forro
de jornal para trocar
por um limpo e higienizado,
ele seguia a voar 
para o teto da gaiola
nada feliz, nem gabola,
até tudo se findar. 

O jiló eu descascava,
e não satisfeito ainda,
deixava à mostra sementes
para a criatura linda
logo bicar e encontrar 
muitas sem nem precisar 
se sentir numa berlinda!

Eu ficava imaginando 
como ele se sentia
ao saber que passarinhos
voavam à luz do dia 
para todo e qualquer canto
e tinham no bico o canto
de estar livre em alegria!

Justo quando eu fui crescendo
percebi que o passarinho
não teria namorada, 
nem ao menos o seu ninho 
com filhotes para amar,
o que me fez enxergar
não ser bom o seu caminho.

Mas como é que eu poderia
libertá-lo da prisão,
se ele já praticamente 
lá nascera sem senão?
O coitado morreria 
no escuro ou à luz do dia
sem defesa e sem perdão!
 
Era um animal herbívoro
que se tornaria caça
de algum gato ou de coruja,
de algum rato ou de trapaça
que o levaria de novo 
a outra gaiola, meu povo!
Tudo na cabeça passa!

Os anos foram passando
somente comendo alpiste
e jiló na tal gaiola,
o que me deixava triste 
por ele jamais poder 
deixar a prisão e ver
o que de mais belo existe!

No final da sua vida,
nos poleiros não subia,
ficando só lá no fundo 
da gaiola e já não via 
nada à volta, só “sentava”
quieto e velho e esperava 
o fim da sua agonia. 

Três dias longos assim
se passaram ao coitado,
que num sábado morreu
e por mim foi enterrado
na calçada de uma escola
de minha infância gabola.
Foi o fim deste pecado.

Eu vi o pranto incontido
de minha mãe e minha irmã,
mas eu só senti alívio
naquela dita manhã,
pois não mais iria ver 
aquele imenso sofrer
que não era o meu afã. 

Nós pusemos logo fora 
aquela podre prisão 
para nunca mais mantermos 
qualquer ave sem razão
encarcerada a sofrer 
e sua beleza perder 
por tristeza e depressão. 

O que ganhamos em troca
Minha irmã, minha mãe e eu
Foi algo nunca pensado
Que do nada aconteceu
E pode sempre ocorrer 
Quando quiser vir nos ver!
Eu te conto o que se deu.

O que ganhamos então
eu te digo já risonho:
uma coruja aparece 
lá em casa (não em sonho!) 
sempre que lhe dá na telha,
mostrando que a casa velha
não é um lugar medonho!

E a cada vez que observo 
uma gaiola a ostentar 
uma criatura indefesa, 
um passarinho a cantar
fico triste de repente 
por saber que a dita gente 
ainda ama aprisionar.  
 
Um recado que aqui deixo 
é que não prendas ninguém
numa gaiola apertada,
mas sim faças sempre o bem
de tão somente aplaudir 
do que é belo o ir e vir 
livre, não sendo refém! 

Outro recado bem simples 
é que procures plantar 
uma árvore na vida,
porque Deus vai se orgulhar,
como um ipê que eu plantei
quando um dia me lembrei 
do feijão a não vingar.

Fontes:
Enviado pelo autor.
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domingo, 2 de março de 2025

Adega de Versos 129: Luiz Poeta

 

José Feldman (Contos em versos diversos) Apenas uma mão


Era um senhor de roupas gastas,  
com o andar lento e olhar cansado.
Na calçada, suas memórias vastas  
contavam histórias de um tempo amado.  

Um dia, tropeçou, a queda foi dura,  
e junto ao muro lá ficou a gemer.  
Clamava por ajuda em sua amargura,  
mas ninguém o ouvia, mesmo vendo-o sofrer.  

Os passantes, apressados, viam um mendigo,  
e o ignoravam, sem parar para olhar.  
Pensavam que era só queria um abrigo,  
um bêbado perdido, sem lar para ficar.  

Mas eis que um jovem com olhar atento,  
se aproximou, perguntando com bondade:  
“Senhor, precisa de algum auxílio ou alento?”  
A voz sincera trouxe-lhe felicidade.  

“Só preciso de ajuda para me levantar,”  
disse o velho, com um sorriso tímido.
O rapaz com força, o pôs a caminhar,  
e juntos seguiram num passo decidido.  

Chegaram a um palacete, imponente e belo,  
o jovem, espantado, não podia crer.  
“Este é meu lar, um lugar singelo,  
venha, entre, e vamos nos conhecer!”  

O jovem, surpreso, aceitou o convite,  
e um laço de amizade começou a florescer,  
contaram histórias, entre risos sem limite…  
Um encontro de almas, um novo amanhecer.  

Mas a moral que ecoa em nossos corações,  
é que a compaixão é um bem que se retrai,  
pois muitos, em meio às suas aflições,  
ignoram o próximo, uma vida que se esvai.  

Que possamos, como o jovem, olhar além,  
e estender a mão aos necessitados,  
pois cada ser humano tem um valor também,  
e a bondade é a luz dos seres abençoados.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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A. A. de Assis (O quase herói do vale)

Sumago é até hoje lembrado como quase herói em todo o vale da Barrinha – história que vem sendo repassada de geração a geração desde o dia em que, puxado pela correnteza, desabou pela cachoeira. Deu-se isso faz coisa de uns 70 anos, num tempo em que ainda não se entendia que caçar era coisa feia. Segundo ele contava, rolara uns 50 metros embolado nas águas se esfregando nas pedras, porém sobrescapara vivinho e ledo.

Campeiro valente, zunia nos pastos, serra acima, serra abaixo, cavalgando atrás das cabras. Nos dias de folga costumava caçar: conhecia a mata como a palma da mão; pontaria firme, acertava o alvo a espichados metros da mira. 

Medroso não era, jurava que não. Além do mais aquela mata fazia tempo estava “desonçada” e outros bichos não o assustavam, nem tamanduá-bandeira.

De onde surgira então aquela pintada? Tudo que era caçador garantia que onça havia acabado ali – a última tinha sido assada pelo Tonhão Tripeiro uns quinze anos passados. Não era possível ter sobrado filhote pra crescer e agora aparecer num de repente assim. Só podia ser assombração, queria ele imaginar. Mas não era não. A baita miou, partiu pra cima do caçador, que depois de tremendo berro se jogou mata abaixo, pulando troncos e pedras, a perversa atrás, o pavoroso miado, o vulto medonho, pega que pega...

Sumago na afobação perdeu a espingarda, rasgou a camisa, enroscou a calça num espinhal, o fôlego a toda, se livrou nu, a onça atrás, gulosa, miando.

Se alcançasse o rio, estaria salvo; era a sua esperança, arranhado, os pés arrebentados, serra abaixo, a onça nos calcanhares dele, cadê esse rio que não chega? Olha lá... só mais um tiquinho e pronto, a baita preparando o bote, ele enfim saltou na água... ti-bum. Salvo?

Salvo coisa nenhuma. A malvada pulou atrás, nadava ligeiro ela, ele a sessenta braçadas por minuto, ela encostando com os dentões arreganhados, faminta, Sumago aguentando mais do que aguentava, a resistência acabando, vontade de se entregar logo à ferona, terminar de vez aquela briga doida... Seria afinal o dia da caça...

A correnteza puxando, já bem pertinho a cachoeira. Caindo no precipício seria morte certa. Mas pouco importava, pensava ele. Melhor se esborrachar nas pedras do que virar comida de onça. Logo ele, caçador de fama. Queria tudo, menos sofrer tamanha humilhação.

Rolaram os dois corpos pela cachoeira, Sumago e a baita. Milagre? O caçador sortudo caiu na água macia, foi ao fundo, voltou revivo. A onça? Até hoje ninguém sabe. Simplesmente sumiu.  

O brioso rapaz espalhou a notícia – tinha tudo para com essa virar herói no vale. Pena que, por falta de testemunha, a vizinhança reagiu meio assim, meio duvidante. Ficou a fábula no ar.
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Antonio Augusto de Assis (A. A. DE ASSIS), poeta, trovador, haicasta, cronista, premiadssimo em centenas de concursos nasceu em So Fidlis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maring/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maring, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maring, Folha do Norte do Paran e das revistas Novo Paran (NP) e Aqui. Algumas publicaes: Robson (poemas); Itinerrio (poemas); Coleo Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crnicas, ensaios e poemas); Pomica (poemas); Caderno de trovas; Tbua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrnicas (textos curtos); A provncia do Guair (histria), etc.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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Conto das Mil e Uma Noites (Destino ou merecimento?)

Minha história é simples. Fui um cordoeiro por toda a minha vida, especializado em cânhamo, como meu pai e meu avô tinham sido antes de mim. Minha renda mal dava para sustentar a mulher e os filhos. Mas como não tinha capacidade para exercer outra profissão, estava satisfeito e não me queixava a Deus nem atribuía minha pobreza senão à minha ignorância e estupidez. 

Conheci dois homens ricos, Saad e Saadi, que vinham habitualmente descansar e conversar perto de minha loja e assim tornaram-se meus amigos. Um dia, ouvi-os discutir um assunto que me interessou: 

– Será a riqueza adquirida por certos homens o resultado de sua capacidade e aplicação ou um presente do destino? 

- Ó Saadi, disse finalmente Saad, vejo que nenhum de nós irá convencer o outro sem provas. Proponho, portanto, que localizemos um homem pobre e honesto e coloquemos um pequeno capital em suas mãos. O estado de sua fortuna nos meses seguintes provará quem de nós dois está certo: tu que deixas tudo por conta do destino, ou eu que acredito que cada homem é o arquiteto de sua vida. 

Escolheram-me para sua experiência e deram-me duzentos dinares de ouro, perguntando: “Achas que com este capital poderás desenvolver teu negócio e tornar-te rico?” 

Respondi: “Serei mais rico que todos os cordoeiros de Bagdá juntos.” 

Ao ver os dinares de ouro na mão, senti-me num êxtase e procurei escondê-los em algum lugar seguro. Após muito deliberar comigo mesmo, tirei dez dinares para minhas despesas e coloquei o restante nas dobras da barra com que costumo envolver meu turbante. Depois, comprei um lombo de carneiro e dirigi-me para casa. 

Mas enquanto caminhava, a cabeça agitada por sonhos de riqueza, um falcão faminto desceu do céu e, antes que me desse conta do que estava acontecendo, arrebatou meu lombo de carneiro no bico e meu turbante nas garras e voou. 

Após gastar os dez dinares, recaí na miséria anterior. 

Dez meses depois, os dois amigos vieram visitar-me para verificar quem deles tinha acertado. Recebi-os com olhos baixos, e disse-lhes: “O destino continuou a antagonizar-me, e estou em piores condições do que antes.” E contei-lhes o que havia acontecido. 

Saadi sorriu maliciosamente pela decepção do amigo. Mas Saad disse-me: “Não duvido de tuas palavras, embora possa suspeitar que gastaste os duzentos dinares na devassidão. Seja como for, não quero deixar meu amigo Saadi triunfar tão facilmente. Eis outros duzentos dinares de ouro. Tenta novamente a sorte, e não vás escondê-los no teu turbante.” E foram embora. 

Voltei para casa, procurando onde esconder o dinheiro. Reparei numa velha jarra cheia de farelo. Amarrei o dinheiro num pano e enfiei-o no fundo da jarra. Enquanto saí para fazer compras, um vendedor ambulante passou na rua, vendendo pacotes de um preparado de ervas com o qual as mulheres lavam o cabelo no hammam (sauna a vapor). Não tendo dinheiro, minha mulher trocou dois pacotes daquela pasta pela jarra de farelo. 

Quando voltei, procurei a jarra com os olhos para me tranquilizar e, não a vendo, perguntei à mulher por ela. Contou-me. 

“Ó mulher desafortunada!” gritei. “Trocaste meu destino, teu destino e o destino de nossos filhos por um punhado de ervas.” 

Sabendo o que fizera sem querer, ela pôs-se a lamentar-se, censurar-me por não lhe ter revelado o segredo em tempo e falar sem parar como fazem as mulheres diante das desgraças. “Uê! Uê! Vendi o destino dos meus filhos a um mascate que não conheço e que nunca poderei encontrar de novo.” 

Quando, longos meses depois, Saad e Saadi reapareceram, recebi-os com ar ainda mais constrangido e contei-lhes o que acontecera. Saad disse que não iria refazer a experiência mais uma vez; mas Saadi declarou: “Ó Hassan, eu também gostaria de ajudar-te. Como não sou tão favorecido quanto meu amigo Saad para seguir-lhe o exemplo, só posso dar-te este pedaço de chumbo que algum pescador parece ter perdido quando arrastava sua rede pelo caminho. Se tal for o decreto do destino, este pedaço de chumbo virá a ser-te mais útil que minas de prata.” 

À noite, voltei para casa, coloquei o pedaço de chumbo em qualquer lugar, julgando que de nada me serviria, e dormi. Ora, na manhã seguinte, ao preparar sua rede, um pescador vizinho reparou que faltava nela o pedaço de chumbo indispensável, e veio perguntar-me se dispunha, por acaso, de tal pedaço. Dei-lhe o pedaço que Saadi me oferecera. 

Grato, o pescador disse-me: “Jogarei a rede da primeira vez em teu nome e o que recolher será teu.” 

O curioso é que, o dia todo, ele pescou peixes pequenos e, somente na primeira vez, apanhou um peixe grande, de um cúbito de comprimento, e fiel à sua promessa, trouxe-me. O peixe sendo maior que nossas panelas, minha mulher teve que cortá-lo em pedaços para fritá-lo. Dentro dele encontrou uma bola de vidro do tamanho de um ovo de pomba. 

À noite, essa bola de vidro iluminou a casa mais que a lâmpada. No dia seguinte, a história de nossa descoberta espalhou-se por toda a cidade graças à língua comprida de minha mulher. Logo recebeu ela a visita de uma certa judia da vizinhança, cujo marido era um joalheiro. Após contemplar longamente a bola de vidro, disse à minha mulher: “Agradece a Deus esse pedaço de vidro sem valor. Tenho outro igual e gostaria de completar o par. Ofereço-te, pois, por esta coisa insignificante, a enorme importância de dez dinares de ouro.” 

Minha mulher, preferindo usar a bola como lâmpada, recusou a oferta. Quando voltei para casa, contou-me. Disse-lhe: “Se a coisa não tivesse valor, jamais uma filha de judeus ofereceria dinheiro por ela. Tenho a certeza de que ela voltará e aumentará sua oferta. Aconselho-te a não vender a bola sem me consultar.” 

Falei assim, lembrando-me das palavras de Saadi de que aquele pedaço de chumbo me tornaria rico se o destino assim o determinasse. Por Alá, a judia voltou e, usando as mesmas manhas e chamando a joia “aquela coisinha sem valor” e “aquela miséria”, ofereceu por ela assim mesmo cem dinares de ouro. Era óbvio naquela altura que o achado era uma joia rara, de valor inestimável. 

Ofereci-a à judia por 100 mil dinares, dizendo: “Outros joalheiros que conhecem essas raridades melhor que teu marido me ofereceriam mais ainda. Mas eu nunca fui ganancioso. E juro por Alá que não aumentarei este preço.” 

Após protestar como diante de uma ousadia escandalosa, a judia disse: “Comprar e vender não é comigo. Falarei a meu marido. Se ele se interessar, virá procurar-te. Até lá, promete-me não vender a outrem esse vidrinho de nada.” 

Prometi, e a mulher saiu apressada. Como previra, o joalheiro apresentou-se em nossa casa naquela mesma noite. Via-se no seu rosto toda a astúcia de seu povo e sua determinação de arrancar-me o destino das mãos. Após queixar-se do tempo, dos maus negócios, das dificuldades que atravessava, após dizer que mal ganhava o pão dos filhos, jurando constantemente por Aarão e Jacó, disse que só queria aquela brincadeira de vidro para agradar à mulher grávida, pois “nós os homens devemos submeter-nos às fantasias de nossas esposas nesta fase, senão corremos o risco de ter filhos deformados.” 

Pediu-me ver o ovo. Mandei tirá-lo das mãos das crianças que brincavam com ele; fechei portas e janelas e coloquei o ovo em cima de um consolo. A casa ficou iluminada como se fosse meio dia. O judeu ficou tão maravilhado que deixou escapar o segredo de que aquela bola era uma das joias que haviam pertencido a Soleiman (Salomão). Lamentou, logo em seguida, suas palavras, mas não soube como retirá-las. 

Finalmente, perguntou-me que preço pretendia pelo ovo; respondi: “100 mil dinares, como disse à tua mulher. E se não tivesse dado minha palavra, que um bom muçulmano sempre respeita, aumentaria o preço dez vezes ou mais, agora que sei que a joia pertenceu a Soleiman.” 

O joalheiro levantou-se com ar trágico: “Queres arruinar-me?” perguntou. “Se vendesse minha joalheria e minha casa e meus filhos e minha mulher e a mim mesmo, não conseguiria juntar esta soma. Pensei que a tivesses mencionado a minha mulher por brincadeira.” 

Vendo-me, todavia, firme, e receando que eu voltasse atrás na minha palavra, disse: “O dinheiro está aí.” E chamou pela janela seus servidores que esperavam com sacos cheios de dinares. 

Achando-me assim fabulosamente rico, parei de trabalhar, fechei a loja e construí uma casa suntuosa. Dei à minha família todo o conforto e luxo possíveis e distribuí presentes generosos a
parentes, amigos e aos necessitados. 

Um dia, Saad e Saadi procuraram saber de mim. Encontrando a loja fechada, pensaram que eu tinha morrido. Mas os vizinhos indicaram-lhes minha nova morada. Vieram até mim, surpresos e alegres e, após ouvirem minha história, Saadi regozijou-se e disse triunfalmente a Saad: “Vês?” 

Estávamos ainda conversando, quando meus filhos que brincavam no jardim entraram em casa, carregando o ninho de uma grande ave que um de meus escravos apanhara no alto de uma palmeira. Para meu espanto, verifiquei que este ninho tinha sido construído na base de uma banda de turbante - minha banda e meu turbante. Dentro deles encontrei os cento e oitenta dinares embrulhados exatamente como os havia colocado. 

Não tínhamos ainda nos recuperado da excitação produzida por esse milagre, quando um dos meus servidores entrou com uma jarra de farelo que reconheci logo ser aquela jarra. 

O servidor explicou que a comprara para um de nossos cavalos. Procurei dentro da jarra e encontrei os duzentos dinares. Desde então, eu e meus dois amigos temos dirigido nossas vidas pela hipótese de que ninguém é capaz de prever as maravilhas do destino quando ele for generoso. 

Saad, que era um pouco poeta, compôs estes versos: Quando o destino for generoso para contigo, sê generoso para com os outros: Nem a liberalidade te perderá se ele for favorável; nem a parcimônia te salvará se e1e for adverso.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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