domingo, 23 de agosto de 2009

Branca Tirollo (Desafios e Contradições)


Maurílio era um garoto travesso, que de tão esperto e curioso veio adentrar uma oficina de teatro onde todos estavam em plena concentração.

Naquele momento todos os jovens acordaram para a vida real. Uns até reclamaram, justificando aquele ato, ser de provocação.

Eu estava atenta a todos os acontecimentos e tentei chamar a atenção de todos pedindo pra que aproveitasse aquele momento para fazer uma análise dos seus conceitos.

Até que eles me respeitavam. Não era difícil trabalhar o potencial daqueles meninos.
Uns levavam a sério as oficinas e outros, só apareciam quando faltava o jantar em suas casas.

Eles eram pobres, talvez a oficina só lhes servisse para tomar um lanche e matar a curiosidade de cada um.

Maurílio, o garoto travesso, observou que seus amigos se calaram e num gesto grandioso, fez silêncio e chegou mais perto de onde eu estava.

Com os olhos brilhando perguntou-me:

-Professora. O que a senhora está ensinando? Nunca ouvi falar em concentração e conceitos.

Naquele momento surgia uma estrela sem brilho, escondida por trás das mentes poluídas.

Sem muitas perguntas, convidei-o para participar da oficina. Prometi que lhe explicaria no decorrer do tempo.

E assim, ele passou a freqüentar a oficina, toda primeira quinta feira do mês.

Todos faltavam, mas Maurílio estava sempre presente. Chegava bem mais cedo do que os outros. Aos poucos, ele foi aprendendo, mudando seu comportamento e quando menos esperávamos, ali começa a brilhar aquela pequenina estrela.
Nunca mais ele perguntou o significado da palavra concentração e conceitos.

Tornou-se o melhor da turma. Era tão disciplinado, que nem mesmo o barulho dos motores que passavam na rua, podiam chamar a sua atenção.
Um ano tinha se passado. Uma peça estava sendo lapidada. Os garotos estavam a esconder o sorriso nas orelhas. Pela primeira vez em suas vidas, iam se apresentar num palco, onde haveria uma gigantesca platéia.

Eles comentavam orgulhosos:

-Vamos sair no jornal! Somos artistas, iguais os atores da TV.

Notava-se que o sonho da maioria era o de um dia serem famosos.

Apenas Marquito não pensava assim.

A arte estava em suas veias e sua capacidade de pensar era de extrema grandeza.

Contudo, ele também estava feliz. Ainda me lembro que naquele dia, ele fez uma
observação inteligente:

- Professora. Se os artistas da TV ficam ricos, por que nós não vamos nem mesmo receber uns trocados? A senhora também não ganha nada por seus trabalhos.

- Comigo está tudo bem, eu não venho aqui para ganhar dinheiro. Frequento as oficinas por que gosto. A senhora não tem obrigação de ensinar a gente de graça.

As palavras de Maurílio tocaram a minha alma profundamente. Eu notava naquele garoto, uma das poucas virtudes que se vê entre os adolescentes.

É incrível de como a arte é vista de uma forma pouco evolutiva, na mente de muitos.

Maurílio estava provando para si próprio, a capacidade de chegar ao topo e tornar-se uma verdadeira estrela, reconhecido por seu talento e aplaudido por méritos.

Faltavam apenas três dias para a realização do evento. Estava anoitecendo e eu tinha que voltar a casa onde eu morava. Ainda faltavam algumas coisas a serem organizadas.

Quando abri a porta, ouvi o telefone tocar. Algo estranho fez meu corpo arrepiar.

Naquele momento, pensei ser alguma notícia sobre falecimento, por causa dos arrepios que eu estava sentindo.

Ninguém havia morrido. Era alguém avisando sobre o cancelamento do evento. Um grupo famoso na região acabava de chegar à cidade. A vez dos mendigos estava por um fio.

Da porta da minha casa eu ainda observava os meninos conversando sobre o grande dia.
Levaria a notícia até eles? Eu não tinha coragem. Não naquele momento.

Analisando um pouco mais sobre como eu poderia dar a notícia sem que eles se magoassem, pensei e chamei-os para lanchar. Nem mesmo o pão, eu tinha em minha casa. Maurílio, com toda sua bondade se ofereceu para ir até a padaria.

Levei os meninos para o meu humilde escritório e liguei o computador.
Abri umas imagens, fotos de quando eu era mais jovem, algumas até um tanto extravagantes.

Os meninos foram se distraindo e me pediram para abrir os jogos.

Enquanto eles se divertiam no computador, fui preparar o lanche.

Maurílio não quis jogar. Preferiu me ajudar a cortar os pães.

Que jovenzinho esperto! Não demorou em perguntar:

- Professora. Se a senhora tinha que preparar os figurinos para nós, por que nos chamou aqui? Isso vai atrapalhar. Eu acho que nesse mato tem coelho.

Parecia minha nona falando.

Foi naquele momento que eu comecei explicando:

- Maurílio. Às vezes temos que enfrentar a fera silenciosamente. Em muitos casos, o animal recua, sabia? A fera poderá nos atrasar, mas nem sempre impedirá a nossa passagem. Se tentarmos assustá-la, talvez não haja chance de sobrevivência.

Assim é a humanidade. No mundo da arte, às vezes encontramos pessoas que se acham feras e tentam nos amedrontar. Se revidarmos, podemos destruir um futuro glorioso.

Se ficarmos calados e pensarmos positivamente, a fera recua e nos deixa passar.

Se hoje não podemos realizar os nossos sonhos, que tenhamos outros e outros.

A força do pensamento faz o sonho tornar realidade. Não vamos mais apresentar a nossa peça. Há um grupo importante na cidade que se apresentará em nosso lugar.

Maurílio, com os olhos brilhantes respondeu:

- Nossa professora! Somos importantes. Um grupo profissional vai se apresentar em nosso lugar? Vamos assisti-lo, não vamos?

Grande garoto! Belo desempenho, o pódio era todo dele naquele momento.

Sua grandeza de espírito por certo invejaria a qualquer um.

Senti-me aliviada mediante a um gesto glorioso, mas ainda faltavam os outros. Tínhamos que contar. Eles estavam entretidos com os jogos, quando chegamos servindo os lanches.

Era um bom momento para começar a contar. Maurílio já havia saboreado um bom lanche durante o preparo. Olhou para os amigos e falou:

- Quem comer primeiro, ganha o jogo. Quem perder joga depois. Quem ganhar não joga mais. Quem ri por último ri melhor.

Ele estava preparando os amigos para contar a tragédia. E assim, começou:

- Gente, eu nem sabia o que era concentração e conceito. Estou aqui hoje para falar em nome da professora. Eu aprendi a rever os meus conceitos e espero que cada de vocês também tenham aprendido. Melhor do que se apresentar num palco e ser fotografado por jornalista é estar aqui com vocês. Vocês é a minha família. Se eu perceber que já não posso mais contar com vocês, meu palco estará vazio e o público repleto de fantasmas. Acabamos de receber a notícia de que não vamos mais se apresentar. Porém, surgirão outras oportunidades e quando esta luz brilhar estará mais fortes, bem mais preparados.

As lágrimas rolavam sobre meu rosto. Era uma emoção tão forte, que nem mesmo eu pude notar a fúria daqueles meninos. Foram saindo um a um, e nem mesmo o lanche, alguns puderam terminar de saborear. Eles entenderam que a fera deveria ser enfrentada. Apanharam armas e amarrotaram suas consciências com facas afiadas.

Maurílio, entristecido com a revolta dos amigos, revoltou-se também. Saiu desesperado
tentando acalmar a turma.

No dia seguinte, um zum zum zum correu pelo bairro e se espalhou para toda a cidade.

Fui proibida de ocupar o espaço público onde eu ensaiava com os meninos.

Dois meses tinham se passado. Resolvi me mudar para outra cidade e tentei esquecer aquele triste episódio.

Por dois anos, não tive notícias de Maurílio, nem dos outros meninos.

Um belo dia, as obrigações me chamaram. Voltei a morar na mesma cidade, em outro bairro.

Um ano depois do meu retorno, resolvo procurar pelos garotos, que com certeza já estavam crescidos. Foi ali que eu comecei a morrer. Alguns estavam vivendo nas ruas, outros com a família sem reconhecer a família, e Maurílio estava totalmente irreconhecível. As drogas tinham tomado conta do seu corpo. Tinha se tornado uma estrela fosca, sem brilho algum.

Hoje, sinto não poder abraçar aqueles meninos. Por certo, muitos fugirão dos meus abraços e outros nem mais reconheceriam a professora.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não permite que eu tenha contato e ajude os meninos de rua. Para ajudar crianças e adolescentes é preciso de permissão. A secretaria de cultura continua a mesma. O palco fica mais vazio que antes e os fantasmas ocuparam o lugar do público.

Eu estou aqui, tentando. Talvez mais forte agora para enfrentar a fera que um dia eu resolvi me curvar diante do seu poder. Todavia, deixarei os aplausos para minha própria consciência.

Aquela turminha de garotos cresceu. Podemos observar a grande massa de garotos marginalizados, cheirando cola e usando crack para matar a fome e acalmar o desespero.

Talvez utilizem drogas para atravessar a trilha onde a fera está sempre presente.
Se forem atacados e morrerem, não sentirão dor. Se puderem atacá-la, farão sem temor algum. Hoje, a grande massa de garotos que é o terror da sociedade, é o fruto da inconsciência da própria sociedade. Sementes ruins que vem sendo semeadas há muito tempo.

Eu continuo lutando e perseguindo os meus sonhos. Como citou meu amigo escritor e jornalista Donato Ramos: Os sonâmbulos estão sempre atacando.

Isso é meu! Isto me pertence!

Grande Donato Ramos, que enxerga com um olho só, mas um verdadeiro raio-x.

Grande Maurílio! Mesmo vivendo os seus fantasmas, jamais deixará de ser uma estrela. Não nos meus conceitos.

Será que alguém poderia resgatar o Maurílio e me trazer de volta a minha estrela?
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Branca Tirollo ocupa a cadeira vitalicia n. 1 da Academia de Letras do Brasil/Piracicaba/SP.

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