segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Cecy Barbosa Campos (A Natureza na poesia de Emily Dickinson)


Pouco conhecida em seus 56 anos de vida, passados quase totalmente em Amherst, Massachusetts, Emily Dickinson só se revelou ao mundo como poeta após a sua morte.

Foram encontrados na escrivaninha de seu quarto, de onde raramente saía, cerca de 1775 poemas amarrados com barbante em pacotinhos. Escritos à mão, muitos deles parecendo rascunho à espera de forma posterior, e todos eles sem título, o que faz com que, usualmente, sejam citados pelo primeiro verso ou por números.

Em 1890, postumamente, é publicado o primeiro volume de uma série de três, com seus poemas e em 1894 são publicadas suas cartas. Desde então, Emily Dickinson torna-se uma das maiores figuras da literatura norte-americana.

Sua vida misteriosa tem desafiado os biógrafos que se perdem na falta de provas para inúmeras suposições. Sabe-se que, após infância e adolescência normais, participante das atividades próprias à idade, retraiu-se por volta de 1860, afastando-se por completo das atividades sociais.

Vestida de branco e sendo vista apenas no jardim, cuidando das flores, já a esta época desencadeava-se a efervescência literária que a levaria a obra tão extensa.

Entre os muitos temas abordados em sua poesia, estão a Vida, a Morte, o Amor, a Imortalidade e a Natureza.

A Natureza foi fonte de inspiração quase constante na poesia de Emily Dickinson e, mesmo quando não aparece tratada em profundidade sendo o tema principal, é mencionada brevemente, como complemento do cenário ou como imagem representativa da morte, nas muitas alusões que faz ao inverno, à neve e ao frio, ou simbolizando mudanças de caráter através do ciclo das estações do ano.

Embora existam afinidades da poesia Dickinsoniana referente à Natureza com conceitos emitidos por autores transcendentalistas, principalmente Emerson e Thoreau, Emily Dickinson não pode ser enquadrada em nenhum movimento ou escola, pelas características absolutamente pessoais de sua obra.

Se, às vezes, era irreverente com a religião e até mesmo com Deus, a quem chegou a chamar de “Ladrão – Banqueiro – Pai”, em um de seus poemas, mantinha em relação à Natureza uma atitude sempre reverente, como se ela representasse a manifestação divina mais intensamente que igrejas e credos.

O sol, a neve e até os relâmpagos, a fascinavam. Em um de seus primeiros poemas, “An Altered look about the Hills”, catalogava as belezas da primavera e o esplendor da paisagem novamente iluminada. As “criaturas da natureza” também eram alvo de sua atenção, não importando quão insignificantes parecessem ser. Assim, a abelha, a borboleta, o passarinho, o rato, são por ela lembrados. A serpente aparece de maneira dramatizada em “A Narrow Fellow in the Grass” e apesar da graça e da observação aguçada com que é feita a descrição, infere-se que ali existe uma ameaça psicológica.

A proximidade do outono e a beleza natural do fim de verão impressionam Emily Dickinson, que registra com sensibilidade os sons e visões da paisagem, passando depois de observadora a participante da cena na qual se insere e descreve em “The Morns are meeker than they were”. Em “These are the days when Birds come back” o mesmo tema é abordado – o período de transição entre o verão e o outono, quando dias quentes e ensolarados retornam interrompendo o outono e dando lugar ao chamado “Indian Summer”, o verão indiano, fenômeno climático tipicamente americano. Os pássaros se enganam com estes dias tardios de verão que surgem no meio do outono e também se engana a poeta induzida ao erro pela mistificação da natureza que a envolve em “azul e ouro”.

Este poema sugere, alegoricamente, a caminhada inexorável do tempo, com o verão representando a juventude, o outono a meia idade que vai levar ao inverno representativo da morte. Apesar da conotação negativa que nos é trazida pelas idéias de fraudes e mistificações há o aspecto positivo que nos é transmitido pelo ciclo das estações, trazendo o renascimento após a morte, ou seja, o fato do inverno ser seguido pela primavera.

As duas estrofes finais do poema assemelham-se a uma prece em que os termos principais são “sacramento”, “última Comunhão”, “emblemas sagrados”, “pão abençoado” e “vinho imortal”. Parece residir aí uma súplica para inclusão num ciclo contínuo de vida e morte.

Emily Dickinson faz uso freqüente de metáforas em suas poesias da natureza. A madrugada e o anoitecer também são descritos metaforicamente em “I’ll tell you how the Sun Rose”, com vívido contraste entre a exuberância do dia que nasce e a atmosfera intimista que chega com o pôr do sol. O poema “I taste a Liquor Never Brewed” descreve a exaltação da poeta ante o azul do céu, o brilho do verão e a suavidade do orvalho, que agem como bebida embriagadora.

Através destes poucos exemplos verificamos que a Natureza, em seus diversos aspectos, sempre alertou os sentidos e a sensibilidade de Emily Dickinson. Por isso ela foi capaz de tornar permanente a fugacidade de um momento como o nascer do sol e de fixar emoções inspiradas pelo canto dos pássaros ou pelo terror advindo de relâmpagos e de tempestades.

Para melhor ilustrar o que foi dito, apresentamos aqui dois dos poemas citados com as traduções feitas pela autora deste trabalho.
130
These are the days when Birds come back–
A very few – a Bird or two –
To take a backward look.

These are the days when skies resume
The old – old sophistries of June –
A blue and gold mistake

Oh Fraud that cannot cheat the Bee –
Almost thy plausibility
Induces my belief.

Till ranks of seeds their witness bear –
And softly thro’ the altered air
Hurries a timid leaf.

Oh Sacrament of summer days,
Oh Last Communion in the Hoze –
Permit a child to join

Thy sacred emblems to partake
Thy consecrated bread to take
And thine immortal wine!

130
Estes sãos os dias em que os pássaros [voltam –
Muito poucos – apenas um ou dois –
Para dar uma olhada para trás.

Estes são os dias em que os céus [retornam
Aos velhos – velhos sofismas de Junho–
Em mistificação azul e ouro

Ó fraude que não consegue enganar a [Abelha –
A sua plausibilidade
Quase me faz acreditar

Até que as sementes aparecem
Sopradas, suavemente, pelo vento
E escapa uma folha tímida

Oh, Sacramento dos dias de verão,
Oh, Última Comunhão na névoa
Permite que mais um filho se junte

Para compartilhar de emblemas [sagrados
Comendo de seu pão abençoado
E bebendo de seu vinho imortal
–––––––––
214
I taste a liquor never brewed –
From Tankards scooped in Pearl –
Not all the Vats upon the Rhine
Yield such san Alcohol?

Inebriate of Air – am I –
And Debauchee of Dew –
Reeling – thro endless summer days –
From inns of Molten Blue –

When “Landlords” turn the drunken Bee
Out of the Foxglove’s door –
When Butterflies – renounce their
“drams” –
I shall but drink the more!

Till Seraphs swing their snowy Hats
And Saints – to windows run –
To see the little Tippler
Learning against the – Sun -

214
Provo uma bebida nunca fermentada
De Canecas esculpidas em Pérolas –
Nenhum dos Barris do Reno
Produz tal Bebida?

Inebriada de Ar – estou –
E Bêbada de Orvalho –
Cambaleando – pelos intermináveis dias de
verão –
De tabernas de Azul Metálico –

Quando os “Proprietários expulsam a [Abelha
bêbada
Para fora das portas do Foxglove
Quando as Borboletas – renunciam a seus
“goles” –
Eu bebo ainda mais!

Até que os Serafins acenem com seus
chapéus brancos
E os Santos – corram às janelas –
Para ver a Bebadazinha
Apoiando-se ao – Sol –
––––––––––––-
Notas:
1. Tradução dos títulos dos poemas:
An Altered look about the Hills – Uma visão diferente das montanhas
A Narrow Fellow in the Grass – Um companheiro esguio na grama
The Morns are meeker than they were – As manhãs são mais tranqüilas agora
These are the days when the Birds come Back – Estes são os dias em que os pássaros voltam
I taste a liquor never brewed – Provo uma bebida nunca fermentada
I’ll tell you how the Sun Rose – Eu lhe direi como o Sol nasce

2. Uma das “excentricidades” de Emily Dickinson é o uso não convencional de letras maiúsculas

Fonte:
Jornal de Poesia

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