segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Cecy Barbosa Campos (O'Neill e a Carnavalização da Tragédia)



Artigo de Ricardo Alfaya para o site Oficina do Pensamento

CECY BARBOSA CAMPOS é a autora do excelente "The iceman cometh: A Carnavalização na Tragédia", originalmente, dissertação de Mestrado em Letras, Teoria da Literatura, apresentada à Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1996, e transformada em livro pela Editar, Juiz de Fora-MG, 2000, 84p., com prefácio de William V. Redmond, orientador da tese, e capa de Luiz André Ramalho Gama.

O livro analisa a peça "The iceman cometh", de Eugene O'Neill (1888-1953), a partir do método proposto pelo teórico russo Bakhtin, desenvolvido na segunda década do século XX, o qual identificou, a partir da obra de Dostoievski, a presença de um conjunto de elementos que denotam a presença da carnavalização no romance. Assim, a professora Cecy Barbosa Campos transporta para a tragédia de O'Neill as teorias aplicadas por Bakhtin ao romance.

Para atingir seu objetivo, a autora divide o estudo em quatro partes: primeiro ela nos fala da vida e obra de Eugene O'Neill. Em seguida expõe a teoria de Bakhtin, realçando a importância da contribuição de sua crítica para os campos da lingüística e da literatura. Na terceira parte, resenha a peça "The iceman cometh", ilustrandoa com comentários relativos à tese proposta. Por fim, aprofunda esses comentários, confrontando os universos de Bakhtin e O'Neill.

Não é muito fácil transmitir, em uma resenha, a riqueza e o significado que existem nesse livro. Entretanto, o assunto, além de interessante, esclarece muito sobre a literatura que hoje fazemos. Assim, tentaremos aqui deixar uma idéia a respeito da obra.

Conforme ressalta William Redmond, Eugene O'Neill é para muitos o maior dramaturgo dos Estados Unidos. Cecy Barbosa indica seu papel como fundador do moderno teatro americano, a partir da estréia de "Beyond the Horizon", na Broadway, em fevereiro de 1920. A despeito do forte teor crítico ao sistema norteamericano e da ousadia de seus textos e montagens, suas peças foram em geral bem recebidas e ele obteve reconhecimento. Já em 1920, após "Beyond the Horizon", recebe o prêmio Pulitzer, "passa então a ter suas peças freqüentemente encenadas". Em 1925, obtém medalha de ouro do National Institute of Arts and Letters; em 1926, um título honorário da Yale University. "Strange Interlude", peça encenada em 1926-27 "alcança um sucesso inédito no teatro americano. Proporciona a seu autor o terceiro prêmio Pulitzer e, publicada, torna-se um bestseller. Transformada em filme, traz ótimos resultados financeiros (...)". Coroando, recebe o Nobel de Literatura, em 1936.

Todavia, apesar da brilhante carreira, no âmbito pessoal a vida de O'Neill foi marcada, desde a infância, por inúmeros episódios tão dramáticos quanto bizarros, alguns até mesmo de sentido tragicômico. Os problemas familiares levaram-no, ainda na juventude, a enveredar pelo caminho do álcool e das drogas. Não eram experiências comuns. Ele ia fundo, desafiava limites, desrespeitava etiquetas, alimentava um comportamento anti-social, agia de forma agressiva e até mesmo despudorada. Adotava comportamentos bizarros: "Ao beber, se excedia a tal ponto que, em absoluto estado de letargia, chegava a passar noites em cima de túmulos de personagens históricos (...)". Tais extravagâncias terminaram por fazê-lo ser expulso da Princenton University. Gostava de ler, lia muito. Apreciava também tabernas, bares sórdidos, casas de prostituição, locais onde se reunia a gente do submundo. Lançava-se em aventuras como suas viagens marítimas a Honduras, à procura de ouro. Também, à Argentina e à Inglaterra. Aos 20 anos casa-se com uma moça "de família", vive um período romântico, mas não suporta esse tipo de vida, que termina por abandonar. Aos 24 anos, com a saúde completamente comprometida, é internado num sanatório para tuberculosos. A partir daí, começa a reação de O'Neill, decidindo-se pela vida de dramaturgo. Passará a sofrer até o fim com a doença de Parkinson, e sem conseguir livrar-se inteiramente dos problemas decorrentes do alcoolismo.

Por outro lado, de sua vida conturbada O'Neill extrairá o material humano necessário à construção de seus personagens, nos quais uma atenção especial é voltada para aqueles que o pragmatismo simplista da sociedade norte-americana costuma rotular de "perdedores". Uma observação significativa de Cecy Barbosa a respeito do dramaturgo encontra-se na pg. 19, na abertura de sua narrativa da biografia de O'Neill, na qual comenta que ele levara "uma vida que pode ser considerada o protótipo da existência carnavalizada". O sentido da afirmativa torna-se mais compreensível quando, em outra parte, a autora enfatiza que a vida em si tende a uma estrutura carnavalizada.

De fato, se analisarmos a vida em si, notaremos que ela tende à polifonia, à exuberância, à multiplicidade, à interação entre o sagrado e o profano, o trágico e o cômico, o belo e o grotesco. Essa pulsão espontânea, a sociedade e o Estado procuram redirecionar, em nome da "ordem". Ao discurso polifônico, essencialmente democrático, posto que nele ocorre tanto um nivelamento das vozes quanto uma horizontalidade de relações, o Estado interpõe a hierarquização vertical em diversos níveis, inclusive, no da divisão da sociedade em classes. Assim, o carnaval, desde suas mais remotas origens, funciona como ritual liberativo da pulsão reprimida. Por um limitado período de tempo, permite-se um certo grau de desordem. Concluída a catarse, tudo volta à norma, tudo retorna ao "normal".

Contudo, para aquele que não se enquadra, não se adapta, o que abrange não apenas os totalmente excluídos das benesses do sistema, mas também os desiludidos, os naufragados, e até mesmo os que procuram viver intensamente, desafiando limites e convenções, como no caso de O'Neill, para esses não existe uma volta ao "normal". De certo modo, vivem fora das normas, num permanente estado de embriaguez carnavalesca, sempre oscilando entre o trágico e o cômico. Dessa natureza são as peças de O'Neill, em particular a mais detalhadamente analisada por Cecy Barbosa: "The iceman cometh".

No que se refere à estrutura narrativa, a polifonia é uma das características mais marcantes do romance moderno, conforme detectado por Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, na década de 20, a partir da obra de Dostoievski. Nele, em lugar do discurso dominante e unidirecional de um único narrador, a palavra é entregue aos vários personagens, que vão conduzindo a obra como se fossem seus autores. Os personagens expõem seus pontos de vista, não raro contraditórios, exatamente no mesmo grau de importância. Há, portanto, a mencionada horizontalidade das relações, de forma semelhante ao que ocorre no reinado momesco. Cecy Barbosa demonstra o quanto tal ingrediente se apresenta na obra de O'Neill, em particular, na peça em destaque.

Além da pluralidade de vozes, outros aspectos podem ser identificados: quebra de protocolo, extravagância, situações bizarras, vestuário e cenário exóticos, interposição de música, cantos e danças, tiradas cômicas, variedade de estilos, reunião de pessoas de diferentes origens sociais e etnias, contraposição entre a fala erudita e a popular. Por fim, a presença de um outro fator essencial da estrutura carnavalesca: a paródia, em particular aquela que une o sagrado ao profano.

Seria interessante indagar a razão da presença da carnavalização no romance e no teatro modernos. Cremos que, em parte, o fenômeno corresponde à necessidade de uma redação crítica que em geral preside a obra dos melhores autores. Uma necessidade de expor "o outro lado", de contrapor-se à política autoritária do discurso oficial que, desde há muito, se quer globalizante e "unidimensional", para citar uma expressão de Herbert Marcuse. Sem dúvida, o fenômeno reflete também a maior flexibilização nas idéias, o permitir da expressão do Outro, a vontade e a predisposição para o diálogo, apesar de tudo, muito maior em nosso tempo. Conforme Cecy observa sobre Bakhtin, cujas teorias levaram-no "a uma concepção dialógica do mundo que lhe possibilitou aceitar a dualidade do ser humano, no qual não existem nem bem nem mal absolutos" (Cecy, p. 73). Por outro lado, sinaliza também no sentido do desmoronamento dos valores tradicionais, da crescente incerteza quanto ao futuro, da relativização do conceito de verdade. Afinal, nos tempos modernos, quem tem a última palavra?

Fonte:

Nenhum comentário: