quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Marli Savelli de Campos (A Personagem do Romance)



Quando lemos um romance, fica a impressão de uma série de fatos organizados em enredo e de personagens que vivem estes fatos. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos dos romances, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam. Portanto os três elementos centrais de um desenvolvimento novelístico são: o enredo, a personagem e as idéias, que juntos formam um conjunto elaborado pela técnica, por isso são elementos inseparáveis nos romances bem realizados.

Um erro freqüente é pensar que o essencial do romance é a personagem, como se este pudesse existir separado das outras que lhe proporcionam vida. Pode-se dizer que, este é o elemento mais atuante, mas a construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia de um romance.

A personagem é um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. É uma relação entre o ser vivo e o fictício que se concretiza através do personagem. Entre o ser vivo e a ficcção há tanto diferenças como afinidades e ambas são extremamente importantes para criar o sentimento de verdade que é a verossimilhança. Para isso é preciso uma investigação sumária sobre as condições de existência essencial do personagem, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante.

Os seres são por sua natureza misteriosos, inesperados, daí concluímos que a noção a respeito de um ser elaborada por outro ser, é sempre incompleta. Por isso, no romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável que é a lógica do personagem. Podemos dizer então que, embora mais lógica e fixa não seja mais simples do que o ser vivo. O personagem é complexo e múltiplo porque o romancista pode combinar os elementos de caracterização organizados segundo uma certa lógica de composição que cria a ilusão do ilimitado.

No romance moderno percebemos a complicação crescente da psicologia das personagens imposta pela necessidade de caracterização, tratando os personagens de dois modos principais:

Seres íntegros delimitáveis: marcados com certos traços que os caracterizam.
Seres complicados: não se esgotam nos traços característicos, podendo jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério.

Na técnica de caracterização definem-se duas famílias de personagens: os personagens de costumes de Fielding, e os personagens de natureza de Richardson.

Personagens de Costume: são muito divertidos e podem ser compreendidos por um observador superficial. São caracterizados por personagens cômicos, pitorescos, sentimentais ou trágicos, dominados por uma característica invariável e desde logo revelada.

Personagens de Natureza: não são imediatamente identificáveis, é preciso mergulhar nos recursos do coração humano. A cada mudança do seu modo de ser, o autor precisa lançar mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica e não pitoresca.

Em nossos dias, Forster retomou a distinção de modo mais sugestivo e amplo falando em personagens planas e personagens esféricas.

Personagens planas: eram chamadas “temperamentos”. São construídas em torno de uma única idéia ou qualidade, podendo ser expressa numa frase.

Personagens esféricas: é capaz de nos surpreender de maneira convincente; traz em si a imprevisibilidade da vida.

Forster também estabelece uma distinção pitoresca entre o personagem de ficção e a pessoa viva. É a comparação entre o Homo fictus e o Homo sapiens.O homo fictus é e não é equivalente ao homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, porém numa proporção e avaliação, diferentes.

Quando estabelecidas as características da personagem fictícia, surge um problema que Forster aborda: o personagem deve dar a impressão que vive, de que é como um ser vivo, para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter relações com a realidade do mundo. E um personagem só nos parece real quando o romancista sabe tudo a seu respeito. É como se a personagem fosse inteiramente explicável e isto lhe dá uma originalidade maior que a vida.

Para François Mauriac, o grande arsenal do romancista é a memória, pois é dela que se extraem os elementos da invenção e isto confere acentuada ambigüidade aos personagens, pois não correspondem as pessoas vivas, mas nascem delas. Ele propõe uma classificação de personagens levando em conta o grau de afastamento em relação ao ponto de partida na realidade:

Disfarce leve do romancista como ocorre ao adolescente que quer exprimir-se.

Cópia fiel de pessoas reais que não constituem propriamente criações, mas reproduções.

Inventadas a partir de um trabalho tipo especial sobre a realidade, sendo esta um dado inicial, servindo para concretizar virtualidades imaginadas.

Tomando o desejo de ser fiel ao real como um dos elementos básicos na criação do personagem, podemos admitir que oscila entre dois pólos de idéias: transposição fiel de modelos e invenção totalmente imaginária. E é essa combinação variável que define cada romancista.

Baseando-se nos dois tipos polares acima referidos, podemos esquematizar, entre outros, do seguinte modo:

Personagens transpostas com relativa fidelidade de modelos dados ao romancista por experiência direta _ seja interior (incorpora a sua vivência, os seus sentimentos); seja exterior (Transposição de pessoas com os quais o romancista teve contato direto, como por exemplo: pai, mãe…)

Personagens transpostas de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente _ por documentação ou testemunho, sobre os quais a imaginação trabalha.

Personagens construídas a partir de um modelo real, conhecido pelo escritor, que serve de eixo ou ponto de partida. O trabalho criador desfigura o modelo que, todavia se pode identificar.

Personagens construídas em torno de um modelo, direta ou indiretamente conhecido, mas que é apenas um pretexto básico, um estimulante para o trabalho de caracterização, que explora ao máximo as suas virtualidades por meio da fantasia, quando não as inventa de maneira que os traços da personagem resultante não poderiam, logicamente convir ao modelo.

Personagens construídas em torno de um modelo real dominante, que serve de eixo, ao qual vem juntar-se outros modelos secundários, tudo refeito e construído pela imaginação.

Personagens elaboradas com fragmentos de vários modelos vivos, sem predominância sensível de uns sobre outros, resultando uma personalidade nova.

Ao lado de tais tipos de personagens, cuja realidade pode ser traçada mais ou menos na realidade, é preciso assinalar aquelas cujas raízes desaparecem de tal modo na personagem fictícia resultante, que, ou não tem qualquer modelo consciente, ou os elementos eventualmente tomados à realidade não podem ser traçados pelo próprio autor.

Para finalizar, é possível dizer que a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista e antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance, do modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que à realidade exterior.

Cada traço adquire sentido em função de outro de tal modo que a verossimilhança, o sentimento da realidade, depende da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e o faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos.

Fontes:
- CANDIDO, Antonio. A personagem de Ficção. 3º edição. São Paulo. Perspectiva, 19
- http://mscamp.wordpress.com/a-personagem-do-romance/

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