terça-feira, 13 de agosto de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 23

CAPÍTULO XV

Enquanto para Teobaldo a vida corria desse modo, oscilando entre amarguras e contrariedades de todo o gênero; enquanto ele sofria por não ter coragem para abrir por uma vez contra os seus hábitos e tomar energicamente um novo caminho, o Coruja ralava-se de serviço, preocupado apenas pela ideia de que nada viesse a faltar ao seu amigo.

Daí começou para André uma triste época de sacrifícios ignorados e obscuras privações. O diretor do colégio chegou a dizer-lhe que não se apresentasse tão mal trajado; ele, com efeito, trazia agora um fato que, à força de uso, perdera de todo a cor primitiva e já em certos lugares se mostrava transparente.

A sua economia, depois que Teobaldo precisava de socorros, parecia milagrosa: só comprava roupa já usada e calçado já servido, e com este regime, e mais sem ter nenhum vício e comendo a expensas do colégio, passava semanas inteiras sem gastar um vintém com a sua pessoa. Entretanto, não vivia alegre, porque, apesar de tamanho heroísmo, Teobaldo ainda sofria privações.

Um outro motivo do seu desgosto era D. Margarida. A velha, desesperada com a demora do casamento da filha, acabara por perder de todo a paciência e desabafou uma vez defronte do Coruja:

— Ele, se não tinha intenção de casar, por que iludiu a pobre rapariga?

— Eu não a iludi... Explicou André, corando. Pelo menos nunca tive a ideia de iludir pessoa alguma...

— Então por que não casou já por uma vez?

— Porque tenho encontrado dificuldades com que não contava...

— Ora! É sempre a mesma cantiga! Dificuldades! E afinal de contas o senhor não é capaz de dizer que dificuldades são essas!? Eu, por mim, confesso que já desconfiei do negócio e, quando dou para desconfiar, é o diabo! Para o que, veja-se: dantes, quando o senhor ainda não estava tão ligado a nós, trazia-nos quase sempre algum presente: eram cortes de chita, eram lenços, latas de doce, camarotes de teatro... e hoje?! Hoje é isto que se vê! O senhor esbodega-se lá por fora e já faz muito quando nos traz uma desgraçada libra de café! Ainda se gastasse consigo, vá! Mas nem isso, que o senhor anda mais bodega que um cigano! Tem a roupa a cair aos pedaços, os sapatos que é uma vergonha, só a camisa é decente, porque a engomamos nós! Ora, pois, a coisa está a entrar pelos olhos! Pois então, quando o senhor ganhava muito menos, podia gastar consigo e conosco, e agora, que faz por mês o dobro do que fazia, não tem com que comprar um chapéu, para não se apresentar com essa rodilha de limpar panelas, que até encalistra a quem se dá com o senhor?

— É exato... É exato, dizia o Coruja, envergonhado de si mesmo.

— Ora, pois! Isto é coisa! Gato ou raposa! Quanto a mim, digo-lhe com franqueza, ninguém me tira da cabeça que o senhor o que tem é por aí algum diabo de uma mulher que lhe come até à última!

O Coruja, ao ouvir, fez-se cor de sangue e balbuciou escandalizado:

— A senhora está enganada, Sra. D. Margarida!...

— Pois, então, se não é uma mulher que o está depenando, o senhor deu para jogador...

— Jogador! Eu?

— Sem dúvida!...

— Deve duvidar, sim, senhora! Eu nunca joguei!...

— Então deu para avarento!

— Se eu tivesse pecúlio ajuntado já não estaria solteiro.

— Pois então não sei! A verdade, porém, é que o senhor ganha e o dinheiro não aparece!...

E essas recriminações iam longe. Inezinha em compensação fazia justamente o contrário:

— Não se de por achado, seu Miranda, dizia-lhe ela, sempre muito mole e muito por tudo — aquilo em mamãe é gênio...

— É que não me convém casar, sem a certeza de que nada faltará à minha mulher... respondeu ele.

— Decerto.

— Acho que é um crime obrigar uma menina a sofrer necessidades.

— Acho que ninguém tem o direito de oferecer-se para marido, enquanto não pode ser pai…

— A senhora, se quiser esperar que eu melhore de condições, espere; se não pode, então o caso muda de figura.

— Eu estou por tudo, seu Miranda.

— Visto isso é preciso fazer com que sua mãe se deixe daquelas coisas…

— É gênio, coitada! Olha, a mim nunca o senhor ouvirá dizer nada... O que tem de ser, traz força. Do que serve a gente se amofinar?... Consumações não adiantam nada…

E, como sempre, terminava com a sua invariável frase:

— Mais vale a nossa saúde...

O Coruja, todavia, mortificava-se deveras com a situação. Por coisa alguma ele seria capaz de confessar o verdadeiro motivo da sua penúria, e só a ideia de passar por um impostor aos olhos da velha era o bastante para lhe tirar todo o sossego do espírito. O fato de haver prometido casamento a uma rapariga e não ter certeza de poder cumprir honestamente com o prometido tomava naquela imaculada consciência as proporções de um crime monstruoso.

Vinham-lhe ímpetos, às vezes, de escrever uma carta a Margarida, dizendo que não contasse com ele e desse a filha a um outro que a desejasse; mas o Coruja ao lembrar-se disto já estava a ver defronte de si o tremendo vulto da velha, a gritar, com as mãos nas cadeiras:

— Então! Que é que eu dizia?! O homem esteve ou não esteve divertindo-se à nossa custa? É ou não é um impostor? Ora pois isto tem jeito?... Enganar assim uma pobre rapariga, fazê-la perder o seu melhor tempo e depois virar-lhe as costas!

Além de que, sendo ele tão geralmente antipatizado e desquerido, prezava do fundo da alma aquela condescendente afeição de Inês, como um bem inesperado e singular que lhe viera quebrar o monótono abandono em que vivia. Posto que a sua extrema bondade o levasse constantemente a se esquecer de si mesmo para só cuidar dos outros, não podia ficar indiferente à vista daquele fato, que lhe enchia o coração com esta frase: — Eu também tenho uma mulher que me ama! Amá-lo-ia?

Talvez não; mas o que para qualquer outro não passava de simples afabilidade vulgar e obrigada, para ele era a extrema manifestação da ternura feminil, tão habituado estava à indiferença e ao desamor dos seus semelhantes. Para quem se acha nas trevas qualquer claridade que chega é um belo foco de luz.

— Pela primeira vez julgou possível ter uma companheira ao lado de sua vida, e essa ideia o transportou de júbilo; ser bom para todos, indiferentemente, é um gozo, mas ser bom para quem nos retribui os sacrifícios com amor e caridade, isso já é o que se chama a felicidade. E amou-a, idolatrou-a com a alma ajoelhada, cheia de reconhecimento e respeito; amou-a com os crentes amam Deus, pedindo que os não repila nunca do seu seio.

No casamento. entretanto, ele não via apenas o caminho mais curto para chegar à felicidade, via também um meio de dirigir e regular as suas qualidades morais, dando-lhes um objetivo; o casamento era por bem dizer o modo de reunir em uma só criatura a humanidade inteira, por quem o Coruja ter-se-ia dedicado se pudesse.

Ou quem sabe se ele, considerando a grandeza exagerada do seu coração não queria dividi-lo com Inês, à semelhança de um milionário pródigo que, receoso de não poder sozinho gastar o seu tesouro, convida uma mulher para ajudá-lo?

— Por conseguinte, a idéia daquele amor, ao mesmo tempo que o consolava o constrangia.

— Mas, que fazer?... pensava. — Casar, sem dispor de meios para isso?

—Não! — Negar a Teobaldo o seu auxílio — Nunca! Logo, o melhor e mais acertado era ir protelando o seu desígnio, até que chegasse a ocasião oportuna para realizá-lo condignamente.

Essa ocasião, porém, só chegaria com uma grande transformação na existência de Teobaldo.

André esperava que, de um momento para outro, o amigo encontrasse trabalho, modificasse os seus hábitos e endireitasse a vida.

— O que mais o atrapalha, dizia consigo — São as mulheres... Ele, coitado, não tem culpa, porque até lhe foge, como tenho já observado, mas as malditas não se lhe despregam nem à mão de Deus Padre! Não sei que diabo tem o rapaz para as enfeitiçar deste modo!... São bilhetes, recadinhos, visitas, uma verdadeira perseguição! Ah! Se eu fosse assim querido!.

E aquelas duas criaturas, inteiramente opostas, invejavam-se em silêncio, não com essa inveja mesquinha que se transforma em raiva, mas nessa outra que produz admiração e respeito.

— Se eu fosse feliz como ele... Dizia cada um por sua vez, quando falava no outro.

E tinham-se ambos na mesma conta de infortunosos: um por ser desejado demais e o outro por bem em demasia. Em demasia, está claro, porque o Coruja, naquela aberração, inculpado e santa, do seu amor pelos semelhantes, compadecia-se indistintamente de todo e qualquer desgraçado, fosse um faminto ou um assassino, um ladrão ou uma prostituta.

Uma noite, já tarde trabalhava ele, como de costume, na sua secretária, quando ouviu um forte rumor na janela que dava para o telhado, e logo depois aparecer aí uma cabeça de homem, cujos olhos brilhavam como os do tigre.

Espantou-se, mas, tornando a si, disse com toda a calma:

— Entre.

Não era necessário semelhante permissão, porque o homem de olhos de tigre acabava de transpor a janela e deixava-se cair no soalho, ofegante e prostrado de fadiga.

— Deixe-me descansar primeiro, disse, quase sem poder articular as palavras; depois o senhor fará de mim o que entender!...

Só então o Coruja, correndo a uma das janelas da frente, deu pelo motim em que estava a rua. Aquele homem vinha naturalmente perseguido por soldados e talvez pelo povo; e, de telhado em telhado, conseguira chegar até ali. Pela atitude dos que se aglomeravam lá fora, compreendeu que ninguém desconfiava do destino do fugitivo, pois a atenção deles voltava-se para o telhado de uma casa, donde, a julgar pelas exclamações e pelas pedradas que lançavam, esperavam sem dúvida ver surgir o perseguido.

— Bom, disse o Coruja; não sabem que você está aqui.

E fechou as janelas.

O sujeito vinha completamente esfarrapado, a ponto de se lhe perceber a carne das pernas e do tronco, cheia de contusões e esfoladelas que vertiam sangue. Uma enorme cabeleira, hirsuta e destratada, cobria-lhe a cabeça e ligava-lhe às grandes barbas grisalhas, dando-lhe um aspecto terrível de facínora. Viam-se-lhe as palmas das mãos rasgadas e ensanguentadas, porque o desgraçado fizera talvez um quarto de légua de gatinhas pelos telhados. De tão cansado que vinha não podia respirar sem abrir de todo a boca, a patentear a dentadura enegrecida de fumo e embaciada pelo álcool.

Logo que se achou menos convulso, volveu em torno os olhos, com o assombro de uma fera perseguida, e pediu um pouco d’água — Por amor de Deus. O Coruja, que estava a contemplá-lo silenciosamente, foi buscar uma bilha cheia e trouxe-lha, dizendo:

— Aqui tem, amigo.

Então o homem, tomando a bilha entre as mãos enormes e sangrentas, olhou-o espantado, luzindo nos seus grandes olhos, verdes e arregalados, uma expressão de terror e de pasmo.

— Beba, acrescentou o Coruja, batendo-lhe no ombro; não tenha medo, que aqui não será perseguido. Beba sem receio e descanse, que ao depois eu lhe darei de comer, se você tem fome

Ao ouvir isto, o homem, que nesse instante acabava de despejar de um trago a pilha inteira, começou a fitar o Coruja e a rir apalermadamente. Este arrastou para junto dele uma poltrona que havia no quarto, e disse-lhe com um gesto que se assentasse.

Não se ergueu o foragido e, cada vez mais admirado, engatinhou-se para a poltrona e ia assentar-se nela, olhando de esguelha para o Coruja, quando um rumor no corredor fê-lo dar um salto e, de mãos abertas, os dedos espetados, os olhos com a mesma primeira expressão da janela, regougou assombrado:

— Quem é? Quem é?!

E precipitou-se para um dos cantos do quarto.

— Não é nada, volveu o Coruja. Talvez algum vizinho que se recolhe. Pode ficar tranquilo que aqui não lhe acontecerá mal de espécie alguma. Vamos, assente-se e descanse.

Para melhor o tranquilizar, foi à porta da entrada e fechou-a por dentro, a chave. Depois, ao voltar de fazer isto, foi que notou deveras a estranha figura do seu protegido.

Este agora, de pé, com a sua grande cabeleira caída sobre os olhos, estava medonho. Era de enorme estatura, magro, mas vigoroso; peito cabeludo e punhos grossos, que pareciam raízes de árvore.

O Coruja sentiu-se pequeno defronte daquele colosso. Foi quase intimidado que se aproximou dele novamente, para lhe repetir que se assentasse. O homem acompanhava-lhe todos os movimentos sempre com o mesmo desconfiado espanto. André foi ao interior da casa, andou por lá remexendo nos armários e voltou afinal com uma travessa de carne assada e um pão. Pôs isto sobre uma mesinha, que ele mesmo desocupou para esse fim, foi ainda buscar lá dentro uma garrafa de vinho e disse ao hóspede:

— Coma.

O foragido, sem deixar de lhe acompanhar os menores movimentos, encaminhou-se logo para a mesa e ia lançar-se sofregamente sobre a comida, quando uma explosão de soluços lhe tomou a garganta; e, escondendo a carranca nas suas mãos enormes, ele soluçava com tal ímpeto, que o corpo todo se lhe sacudia nos arrancos do choro.

Coruja não deu palavra, deixou o homem chorar à vontade e pôs-se a fingir que lia um livro junto à secretária; depois foi fazer café.

Passada a crise das lágrimas, o desgraçado principiou a comer, a comer muito, como quem traz uma velha fome de muitos dias. Deixou os pratos limpos e a garrafa enxuta.

— Sente-se agora melhor? Perguntou o rapaz.

O outro tomou-lhe a mão e beijou-lha, enquanto dois grossos lhe corriam dos olhos pela aspereza das barbas.

— Está pronto o café, disse Coruja indo buscar a máquina e enchendo duas xícaras.

— Nisto eu lhe faço companhia.

E, depois de lhe passar uma delas:

— O senhor talvez esteja habituado a fumar...

O hóspede fez um gesto afirmativo e ele apressou-se a ir buscar um dos charutos que comprara para Teobaldo.

Durante o café conversaram. O homem declarou que era muito desgraçado: fora trabalhar, tinha o ofício de ferreiro, mas estava preso havia mais de três anos e só agora conseguira fugir, depois de frustradas tentativas, que só lhe renderam novas penas e novos castigos.

— Por que o prenderam?

— Porque eu matei minha mulher. Havia muito tempo que andava desconfiado dela, um dia escondi-me, e vi entrar um homem no meu quarto e, quando a descarada apareceu para se deitar com ele, meti-lhe uma faca na barriga!

— E o sujeito?

— O sujeito ficou atrapalhado, atirou-se, sem saber o que fazia, por uma janela e foi cair embaixo meio morto. Um diabo de um vizinho que eu tinha, foi quem me entregou à Polícia. Fui preso na mesma ocasião.

— E agora, você o que tenciona fazer?

— Não sei. Dizem que o Brasil vai ter guerra com o Paraguai, eu marcharei para a guerra. Fugi. Porque todos os dias pensava em fugir e afinal apareceu uma ocasião. Anteontem, às Ave-Marias, o carcereiro foi à minha célula buscar como de costume a tigela em que ele dá comida à gente; mas, em bem o cabra não se tinha abaixado para a apanhar, ficou mais roxo que uma beringela e caiu de focinheira no chão, sem tugir, nem mugir. Eu peguei-lhe assim pelo braço e vi que o bruto estava mole; então saquei-lhe fora esta farda, que é a que ele lá usam, vesti as calças do bicho, pus o boné na cabeça, e por aqui é o caminho! Mas um diabo de um guarda desconfiou da marosca e eu — Pernas para que te quero! Foi o meu mal! Abri pelo corredor, ganhei a rua, mas o demônio do guarda atrás. Enfiei pela primeira porta que encontrei, era a casa de uma quitandeira, varei até o quintal, havia um muro, saltei-o, estava em um cortiço, havia um cercado, atravessei-o nem sei como, e vi-me de repente em um curral; havia um telheiro, trepei-me para ele e dai passei a um telhado mais alto. Atravessei quatro ou cinco telhados, correndo como um gato e em risco de me levar o diabo a cada instante! Afinal ouvi gritar na rua: "Ali está ele!" E vi seis soldados que escoravam a casa. Então, segurei-me a uma goteira, desci, pilhei-me em outro telhado e deste passei adiante; mas os policiais me acompanharam da rua, apitando, cercando os quarteirões, entrando pelas casas e, quando eu dei fé havia povo por toda a parte, nas chaminés, nas árvores, nos muros, e atiravam-me pedras e pedaços de pau enquanto outros se divertiam com a minha pelotica! Já estava para ser agarrado, porque não tinha mais forças e via-me cercado, quando por um acaso do céu escorreguei pelo telhado dessa casa que fica ali ao pé e vim ter àquela janela por onde entrei!

O assassino tomou fôlego e acrescentou depois, mudando de tom:

— Quis Deus que eu encontrasse uma alma boa; aqui estou e não me vexo de dizer a verdade. Vosmecê pode agora fazer de mim o que entender; não lhe fico querendo mal por isso!

— Pode ir em paz, respondeu o Coruja; mas, se quiser ouvir o meu conselho, espere um pouco, não saia já. Olhe, ali tem uma bacia com água; lave-se, que você está sujo de sangue; depois tire essa roupa que o compromete, e vista a que lhe vou dar. Naquele toucador há pente. escova e óleo para o cabelo; arranje-se, durma um pouco e depois então saía. Para a sua viagem não lhe posso dar muito, mas aqui tem cinco mil réis.

— Vosmecê algum dia foi criminoso? perguntou o assassino.

— Criminoso somos todos nós, respondeu o Coruja.

— Mas nunca matou ninguém?

— Creio que não...

— Deus o conserve assim, moço!

O assassino lavou-se e vestiu uma roupa do Caetano e, depois de guardar o dinheiro que lhe dera André, beijou as mãos deste e saiu.

— Olhe, disse-lhe o rapaz que o fora acompanhar até à escada. Faça por ser bom e, quando precisar de qualquer coisa, apareça. Adeus.
–––––––-
continua…

Nenhum comentário: