sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 29

CAPÍTULO XXI

E no entanto, à noite desse mesmo dia, travava-se entre o Coruja, D. Margarida e a filha desta o seguinte torneio de palavras:

— Então, seu Miranda; o senhor decide ou não decide o diabo deste casamento?

— Agora, agora Sra. D. Margarida, é que as coisas vão endireitando e, se Deus não mandar o contrário, pode bem ser que tudo se realize até mais cedo do que esperamos.

— Ora! Já não é de hoje que o senhor diz isso mesmo!

E note-se que, depois que Teobaldo melhorara de circunstâncias, D. Margarida havia abrandado muito a 8spereza de suas palavras para com o futuro genro; isto quer dizer que ultimamente podia André, como no princípio de seu namoro, levar alguns presentes à noiva e mais à velha. Mas, nem por isso, deixava esta de falar às vizinhas, desde pela manhã até à noite, a respeito do célebre casamento da filha, que, segundo a sua expressão, parecia encantado.

— Pois se tu também não te mexes! Gritava ela às vezes, ralhando com a rapariga. A ti tanto se te dá que as coisas corram bem como que não corram. Nunca vi tamanho descanso, credo! Ninguém dirá que és a mais interessada no negócio!

— Ora, mamãe, mais vale a nossa saúde!... Respondia Inês, invariavelmente. O que tem de ser traz força!

— Oh! Que raiva me metes tu quando dizes isso, criatura!

— Mas se é…

— Qual é o que! Cada um que não trate de si para ver como elas lhe saem! Não me tiram da cabeça que, se apertasses um pouco o rapaz, ele talvez até já tivesse aviado por uma vez com isto! Já com a tal história do ensino foi a mesma coisa; tu, tanto remancheaste, tanto te descuidaste, que afinal lá se foi tudo por água abaixo!

— Ora, eu ensino em casa da mesma forma...

— A quatro pintos pelados, que levam aí todo o santo dia a me atenazarem os ouvidos com o "b-a faz bá, b-e faz bé!" Ora; Deus me livre!

— Rendem quase tanto como uma cadeira...

— Mas não são certos. De um momento para o outro podes ficar sem nenhum... Ao passo que a cadeira...

— Mais vale a quem Deus ajuda...

— Sim, mas Cristo disse: "Faze por ti que eu te ajudarei". E é justamente do que não te importas — é de fazer por ti!

Estas conversas acabavam quase sempre arreliando a velha, que por fim lançava à conta do Coruja toda a responsabilidade do seu azedume. Porém o que mais a mortificava era o falatório da vizinhança, era o comentário dos conhecidos da casa, que principiavam já a zombar abertamente do "tal casório". A mezinha está só esperando a idade para casar... diziam eles em ar de chacota, para mexer com o gênio da velha. E conseguiam, porque D. Margarida ficava furiosa; mas não contra aquele e sim contra o pobre André.

Este, todavia, com a regularidade de um cronometro, não faltava à casa da noiva, às horas do costume. Apresentava-se lá com a mesmíssima cara do primeiro dia, sempre muito sério, muito respeitoso e muito dedicado; Inês, também inalterável, vinha assentar-se ao lado dele, enquanto a velha Se postava defronte dos dois. E assim conversavam das sete às dez horas todos os domingos e das sete às nove nas terças, quintas e sábados.

E lá se iam cinco anos em que isto se verificava com a mesma pontualidade. André era já conhecido no quarteirão e, quando ele surgia na esquina da rua, resmungavam os vizinhos de D. Margarida:

— Ali vem o noivo empedrado!

Houve espanto geral em vê-lo passar uma sexta-feira fora das horas costumeiras e muito mais apressado e mais preocupado que das outras vezes. Ia pedir à velha um obséquio bastante melindroso: e, que nesse dia, pela volta das onze, Teobaldo lhe surgira no colégio, com um ar levado dos diabos, o chapéu à ré, o rosto em fogo, para lhe dizer:

— Sabes? Fiz o pedido ao velho!

— Já? Acho que foste precipitado!

— Pois se ele quer enterrar a filha em Paquetá, até que ela se resolva a casar com o primo!

— Mas então?

— Negou-ma!

— Negou-ta?

— Abertamente! Chegou até a contar-me uma porção de histórias, que me fizeram subir o sangue à cabeça!

— Que disse ele?

— Ora! Que eu não estava no caso de fazer a felicidade da filha; que eu era um estróina, um doido; que eu tinha mais amantes do que dentes na boca (foi a sua frase) e que eu, para prova de que não gostava do trabalho, nunca tomara a sério o emprego que ele me dera em sua casa; e que eu entrava sempre mais tarde que os outros; que eu era isto e que era aquilo, e que, ainda mesmo que eu não fosse quem sou, ele não podia me dar a filha, porque já estava comprometido com outro...

— O Aguiar...

— Já se vê!

— E tu, que lhe respondeste.

— Eu? Eu olhei muito sério para ele e disse-lhe: Você sempre é um ginja muito idiota! O velho ficou mais vermelho que o lacre, tremeu da cabeça aos pés, cresceu meio palmo e não pode dar uma palavra, porque estava completamente gago. Então agarrei no chapéu, enterrei-o na cabeça e bati para Botafogo!

— Para a casa dele? Ah! Isto se passou aqui em baixo...

— Sim. Entrei na chácara e fui enfiando até à escadaria do fundo. O acaso protegeu-me; Branca bispou-me da janela e veio logo ter comigo a um sinal que lhe fiz. "Sabes? Disse-lhe, pedi-te ao comendador; ele declarou que por coisa alguma consentirá que eu seja teu marido e jurou que hás de casar com o Aguiar!" Ela pôs-se a chorar. "Tu me amas?" perguntei-lhe. Ela respondeu que me adorava e que estava disposta a tudo afrontar por minha causa. "Pois então, repliquei, se queres ser minha esposa, só há um meio, é fugirmos! Estás disposta a isso?" Ela disse que sim e ficou decidido que hoje mesmo às dez horas da noite eu a iria buscar. Por conseguinte, tem paciência, preciso de ti, pede licença ao diretor e saiamos, que não há tempo a perder.

— Estou às tuas ordens...

— Tens dinheiro?

— Um pouquinho, mas em casa.

— Ora!

— Podemos dar um pulo até lá! Espera um instante por mim; não me demoro.

Durante o caminho, Teobaldo contou mais minuciosamente a sua conversa com Branca e pintou com exagero de cores a opressão que lhe fazia o pai, para a constranger a casar com o bisbórria do primo. Chegados à casa, mal Teobaldo embolsou o que havia em dinheiro, disse ao amigo:

— Bem! Então, antes de mais nada, enquanto eu vou falar ao cônego Evaristo e depois ver se arranjo mais algum cobre, vai ter à casa de tua noiva e pede à velha que consinta depositarmos lá a menina. Creio que ela não se oporá a isto; que achas!

— Não sei, vou ver...

— Pois então vai quanto antes e volta aqui imediatamente. E quase meio-dia, às duas horas podemos estar juntos; iremos então tratar do carro e do resto; depois jantaremos no hotel e às nove partiremos para Botafogo. A ocasião não pode ser mais favorável ao rapto; a noite há de ser escura; a francesa está doente e de cama e, quando chegarmos, é natural que o comendador já se ache no segundo sono e os criados no terceiro!

— Eu serei o cocheiro do carro, disse Coruja; sabes que tenho boa mão de rédea.

— Bem lembrado! Escusa de metermos estranhos no negócio. E, olha, para melhor disfarce, porás a libré do Caetano e levarás o seu chapéu de feltro.

— A libré do Caetano há de chegar-me até aos pés...

— Melhor, ninguém te reconhecerá.

— Isso é verdade...

— Sabino?

— Meu senhor.

— Preciso hoje de você. Às quatro e meia no hotel. Ouviu?

— Já ouvi, sim senhor.

— Olha! Traze-me uma garrafa daquelas que estão no guarda-louça.

Era um presente de Moscatel d'Asti espumoso, que lhe fizera Leonília no dia dos anos dele.

— Vais beber agora? perguntou o Coruja.

— Vou; sinto-me sufocado! Preciso de um estimulante. Conserva tu em perfeito juízo a tua cabeça e deixa-me beber à vontade.

Encheu duas taças e, erguendo uma delas, disse ao amigo:

— Ao novo horizonte que se rasga defronte de nossos olhos! Ao amor e à fortuna!

Coruja levou a sua taça aos lábios, bebericou uma gota de vinho e afastou-se logo para ir à casa de D. Margarida; enquanto o outro, esticando-se melhor na cadeira em que estava e soprando com volúpia o fumo do seu charuto, murmurava de si para si:

— Amanhã a estas horas tenho à minha disposição uma mulher encantadora e um dote de cem contos de réis! Ah! Geração de imbecis, agora é que vais saber quem é Teobaldo Henrique de Albuquerque!
–––––––––
continua…

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