segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Guilherme de Azevedo (A Alma Nova) II

foi mantida a grafia original.
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GRAÇA PÓSTUMA

Depois da tua morte eu hei de ver se arranco,
Numa noite serena, ao teu berço final,
Um produto mimoso; — um grande lírio branco
Da alvura do teu colo ebúrneo e divinal!

Aquela flor suave, ó minha visão etérica,
Debruçada gentil, na taça em que a puser,
Far-me-á lembrar a graça cadavérica
Do teu corpo franzino e etéreo de mulher!

E mesmo conterá, decerto, alguma cousa
Do que me traz submisso e preso ao teu olhar:
— Teu corpo a pouco e pouco irá fugindo à lousa
Depois tornado em lírio à terra há de voltar! —

E em longas noites, nele, eu beberei sozinho,
Sonhando as convulsões duns lindos braços nus,
A fragrância que exala a candidez do linho
Em que hoje ondeias leve e onde os meus lábios pus,

— Saudando a boa mãe que faz com que eu te goze
Depois do verme vil teu seio poluir,
Mais pura no frescor de tal metamorfose
Do que eras a cismar, do que eras a sorrir!

Ó minha doce Ofélia! Os rápidos momentos
Da vida são cruéis mas passam como um som!
Um dia quando enfim dos velhos sedimentos
Teu corpo renascer num lírio imenso e bom,

Talvez que eu durma já também sob os matizes
Das flores, ao sorrir das mil germinações,
Dando um pasto fecundo às tuas sãs raízes
Depois de te sagrar as últimas canções!

HISTÓRIA SIMPLES

Havia um rapaz são, robusto, bom, valente,
De espádua larga e rija; um ceifador gentil.
Cavava todo o dia, andou sempre contente
E a féria dava à mãe sem falta dum ceitil*.

Ele amava a campina e os céus largos, serenos.
Aos domingos a mãe deixava-lhe uns dez reis.
Deitava-se ao luar, dormindo sobre os fenos,
Na fragrância do trevo, ao pé dos cães fiéis.

A mãe tinha de seu duas vaquitas mansas:
Num cerro agreste e vil alguns palmos de chão.
E tinha ainda mais não sei quantas crianças
Que andavam nuas sempre e sempre a pedir pão.

O pai mal se sustinha às vezes sobre as pernas:
Era bêbado e mau, batia na mulher;
E à noite, ao cintilar dos vinhos nas tabernas.
Cantava canções vis de a gente ensurdecer.

Um dia uma senhora honesta da cidade,
Esplêndida, gentil, sabendo-se sorrir,
Reparou no rapaz; achou-lhe própria a idade
E fez-lhe um certo gesto: — o moço não quis ir.

Teve um assomo de raiva, então, sua excelência.
Ordenou-lhe que fosse: o moço disse, — irei!
Despediu-se dos seus: devia obediência
À senhora gentil que se chamava... A Lei!

Pegou no velho alforge e no bordão nodoso
E meteu-se a caminho. Os pobres dos irmãos
Choravam à partida: — um quadro doloroso!
A mãe louca de dor torcia as magras mãos!

Chegando no outro dia ao ponto onde o chamaram
Primeiro foi medido e todos a final,
Depois de bem revisto, à uma, concordaram
Que ao serviço do rei convinha este animal!

Aqueloutra senhora, astuta, grave, terna,
— A Ordem — jubilava em doces pulsações!
Contava mais um servo, um filho, na caserna,
Gastando pouco mais: — uns cobres e uns feijões!...

Agora quando passa o batalhão luzente
Na rua, podeis ver o pobre cavador
Com modos imbecis, marchar pesadamente
— herói por conta alheia — ao rufo do tambor!

Não sabe onde caminha entre as guerreiras hostes!
Perguntem-lhe o que é pátria e liberdade e lei!
Caminha simplesmente às ordens dos prebostes*
Que trazem no chicote a salvação do rei.

E na pobre cabana ainda se conserva
O mesmo quadro triste: — a lacrimosa mãe;
Alguns pequenos nus rolando sobre a erva,
E um ébrio que pragueja e não pensa em ninguém!

Mulher não chores mais: a quadra é pura e bela:
Enquanto na campina alouram os trigais,
Teu filho guarda o mundo e a Deus faz sentinela:
Receiam que Deus faça andar o mundo mais.

Em breve ele virá de júbilo e de assombro
Encher tua alma, enfim, quando amanhã voltar
Com seu velho canudo, a trouxa posta ao ombro,
Trazendo novamente a luz ao pobre lar.

E tu perguntarás: o que é meu filho, é ouro!
A quantas guerras foste? Ó céus, como tu vens!
— Mãe tome essa lata! Esconda o meu tesouro
E deixe-me ir dormir no feno ao pé dos cães!

À mesa do festim, cercada de formosas,
O canto dos cristais e o cintilar dos vinhos
Saudavam juntamente os belos desalinhos
Das galantes visões das ceias luminosas!

Molhavam-se em champanhe as pétalas das rosas!
E em baixo, a nossos pés, em leves murmurinhos
A gaze sobreposta à candidez dos linhos
Erguia-se num mar de vagas caprichosas!

Ali tudo era paz! Nem ódios vis nem zelos!
Os lábios pois limpando às rendas e aos cabelos
Da menos trivial das fadas tentadoras,

Eu brindo aos mortos! — disse: à legião sagrada
Que foi à solidão, à eternidade, ao nada!
— Às almas e ao pudor destas gentis senhoras.

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Notas:
Ceitil – Moeda antiga portuguesa que valia um sexto de real.
Preboste – Nome dado antigamente a um magistrado militar que havia nos corpos do exército e nos navios.


Fonte:
http://luso-livros.net/

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