quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Érico Veríssimo (Clarissa)


 Neste livro de 1933, primeiro romance de Érico Veríssimo, pertencente ao modernismo de segunda fase, o gosto pelo rigor da descrição, pela minúcia da fotografia, manifestasse como característica que o acompanharia sempre. Sua fidelidade à vida tal como ela é em toda a multiplicidade de variados aspectos, inclusive aqueles que se apresentam sórdidos e desagradáveis.

 Trata-se de uma composição realista que assegura a veracidade do cenário retratado e dos seres que nele se movimentam. O romancista não se impõe às personagens; ao contrário, prefere ver o mundo através das personagens; e isso as faz viver como gente de carne e osso.

 O universo de Clarissa, dependendo do ângulo em que observamos, pode ser muito limitado ou infinitamente amplo em sugestões e promessas. Na verdade, está circunscrito no estreito território da pensão da Tia Zina e sua população pequeno-burguesa consumida na luta inglória pelo ganha-pão de cada dia. Entretanto, a presença de Clarissa amplia pouco a pouco a significação desse cenário, porque a narrativa se organiza em torno de seu desdobramento psicológico, e o que de fato interessa é a sua descoberta em relação aos seres e às coisas que a cercam. Imperceptivelmente, o autor se dissimula, quase escondendo-se num segundo plano, e deixa que a revelação do mundo observado se apresente através das surpresas, dúvidas e curiosidades que preenchem a consciência de Clarissa. Assim, fica aberto um caminho que permite a passagem da simples fotografia para o romance psicológico, de maneira que o leitor já não perceba a história como coisa "armada", sentindo-a antes como parte integrante de uma experiência vivida. 

 A "naturalidade" do relato guarda esse atributo indispensável à grande ficção de onde nasce o verdadeiro mundo das personagens: a possibilidade de existir na realidade. Este segredo do romancista é a prova da sua sensibilidade diante do assunto extremamente complexo que escolheu - o mundo banal e opaco de todas as horas, redescoberto através da perspectiva (meio lógica, meio fantástica) da adolescência:

 "...sobre uma coluna de madeira escura, a um canto da sala rebrilha o aquário. Pirolito está agitado. Será que a luz elétrica o assusta? Clarissa se aproxima do vaso de cristal. Agora nota que a água parece toda cheia de rebrilhos. A janela, as lâmpadas elétricas, os móveis da sala, tudo se reflete no aquário."

 Ultrapassando o perigo, Érico Veríssimo preferiu que Clarissa, ela própria, o conduzisse entre coisas que vão aparecendo no fluxo da descoberta. O mundo juvenil, povoado de sonhos e fantasias, possuía uma peculiaridade inconfundível: estava todo ele "refletido no aquário", mudando o desenho a todo momento, metade de cada coisa revelada e a outra metade ainda interrogável na sombra. A realidade teria de ser captada no contorno do aquário, respeitando o mistério do universo de Clarissa que só a ela pertence. Se trata, basicamente, de um problema de linguagem, isto é, encontrar a linguagem que narre a consciência fantasiosa de Clarissa e, ao mesmo tempo, preserve a sua identidade, sem se confundir com a perspectiva adulta e racional do seu criador.

Personagens

Clarissa - adolescente que morava numa fazenda e foi estudar na cidade grande.

Ondina - a infiel, casada com Barata.

Amaro - um musico que cortejava Clarissa.

Tonico - garoto que perdera as duas pernas num acidente, era muito frágil e acaba morrendo.

Vasco - primo de Clarissa que vive em Jacarecanga.

Linguagem

 Fiel à estrutura da narrativa psicológica e à natureza da personagem, Érico Veríssimo optou por um estilo pictórico, no qual as descrições valorizam sobremaneira a visualidade. Tudo se oferece mediante uma infinita gama de variações cromáticas, tonalidades e reflexos que buscam estabelecer, na órbita do cenário físico, o espelho das filigramas psicológicas que compõem a imaginação juvenil. Daí a preferência do romancista, neste livro, pelo adjetivo, pelas imagens que realçam a natureza e integram uma visão caleidoscópica, iluminando o espaço circundante. Justamente sob esse aspecto, o autor de Clarissa evidencia sua vinculação com o panorama literário da época. Se a linguagem pictórica, o estilo cromático, tornam-se um recurso inteligente na elaboração da personagem, não é menos verdade que já pertencia a uma longa tradição da literatura sulina, que iria alcançar um de seus pontos altos naqueles dias da publicação de Clarissa. Trata-se da tradição simbolista, na qual germinaram as obras de Eduardo Guimaraens e Alceu Wamosy, cujas raízes profundas se estendem por toda a produção literária do início do século para alcançarem, por volta de 1930, as melhores manifestações do modernismo no Rio Grande do Sul. 

 Na linguagem de Clarissa encontra-se muito dessa herança simbolista presente no ambiente da época, os mais profundos estados de ânimo entregando-se na pura visualidade.

 O trabalho criador de Érico Veríssimo exerceu-se na reelaboração dessa vertente estilística, transferindo uma linguagem até aí mais própria à poesia para a prosa descritiva de Clarissa. A expressão apoiada no adjetivo e na seqüência de imagens visuais garante o clima encantatório da narrativa, aliás o único em que poderia nascer com verossimilhança a história de uma adolescente de quatorze anos ainda mergulhada no deslumbramento do descobrir-se. O próprio Érico viria a considerar, mais tarde, o seu livro como "uma coleção de aquarelas e poemetos em prosa em torno da vida cotidiana".

 No entanto, também o lado obscuro e amargo da vida ganha lugar no contexto de Clarissa. Está refletido na personagem de Amaro, o músico frustrado, já na casa dos quarenta anos, que contempla na vitalidade física e espiritual de Clarissa tudo aquilo que a vida lhe negou: segurança, alegria, imaginação - o sentimento de participar do mundo que se constrói a cada instante. Mas é tarde para voltar atrás; o tecido do tempo passado não se recompõe; e Amaro ama Clarissa à sua maneira, transferindo para ela a imagem da mulher que sempre idealizara e sabe que nunca chegará a possuir. Em certa altura, essa personagem, marcada pelo curso dos dias opacos e inglórios que lhe couberam, expressa a melancolia diante do futuro que não está mais ao seu alcance:

 "O raio de sol é de um outro mundo. Clarissa, se pudesse falar, se tu pudesses entender. Eu te diria que nunca desejasses que o tempo passasse. Eu te pediria que fizesses durar mais e mais este momento milagroso."

 Ao opor entre si as personagens de Clarissa e Amaro, como se tratasse de dois pólos da existência, a luz e a sombra, o passado e o futuro, este romance permite vislumbrar uma preocupação que, alimentada por Érico Veríssimo em livros posteriores, veio a ser um de seus temas recorrentes - o tempo; o comportamento dos seres perante o decurso do tempo, que é vida e morte, descoberta e esquecimento. 

 Outra marca da identidade do romancista é a preferência por personagens femininas. Neste romance, a "parte forte" da vida está representada muito mais nas mulheres (autoritárias como Tia Zina, promessas futuras como Clarissa) do que nos homens, que em geral, são indolentes, frustrados ou insensíveis.

Enredo

Clarissa marca o início de uma atividade criadora no qual Érico Veríssimo elevou o romance sulino ao seu ponto mais alto: recém-chegada do interior, Clarissa vai morar numa pequena pensão em Porto Alegre. Em contato com criaturas frustradas, entregues às pequenas misérias do cotidiano, a garota descobre a vida aos poucos, ora tranqüila ora aos sobressaltos.

 Nesta história, espécie de iniciação à vida adulta, Clarissa se depara com uma realidade que se revela em toda a sua crueza. Seu sonho, porém, é maior do que tudo.

 Retrato lírico de uma adolescente às vésperas de se transformar em mulher, Clarissa é um romance comovente que integra a observação social e o realismo psicológico.

Fonte:

Beatriz Bastos (O vestido dela era amarelo...)


 O vestido dela era amarelo feito cor de jabuticaba
 feito Manuel Bandeira e sua voz anasalada
ao ler Pasárgada
 e mesmo que fosse bonita, mesmo sendo bonita,
 a leitura em voz alta, o som do poeta, era ainda
 mais bonito quando só palavra impressa preta
 pequena num livro velho folheado guardado
 amarelo esquecido
    a voz do poeta são as letras

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_bbastos_ovestido.asp

Affonso Romano de Sant'Anna (O Cronista é um Escritor Crônico)


 O primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico.

 O que é um cronista?

 Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula.

 Já andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acaba virando um estilista.

 O cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e defende temas e idéias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de utilidade pública.

 Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.

Fonte:
http://www.releituras.com/arsant_ocronista.asp

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 693)



Uma Trova de Ademar  

Se por piedade ou por pena, 
o casal NÃO se desfaz; 
vivem os dois triste cena... 
Onde nem pena tem mais! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Deus nos mostra seus valores 
nos contrastes mais pungentes... 
um vendaval mata as flores, 
porém, conserva as sementes. 
–Adilson Maia/RJ– 

Uma Trova Potiguar  

A cigana ao ler a mão 
da pessoa requerida, 
vê cada palmo de chão 
na palma da sua vida... 
–Marcos Medeiros/RN– 

Uma Trova Premiada  

1999   -   Itanhaém/SP 
Tema   -   CANOA   -   M/E 

Mesmo numa noite triste
quando meu mar se encapela,
minha canoa resiste:
é que Deus vai dentro dela.
–Elen de Novais Felix/RJ– 

...E Suas Trovas Ficaram  

De um sentimento profundo,
no silente ou no escarcéu,
prosa é linguagem do mundo,
o verso, a prosa do céu.
–Fernando Vasconcelos/PR– 

Uma  Poesia  

Pra retratar o sertão 
em sete versos apenas, 
mergulho na natureza 
busco inspirações serenas 
e, qual um grande pintor 
para a obra ter mais valor, 
crio minhas próprias cenas! 
–Ademar Macedo/RN– 

Soneto do Dia  

REAÇÃO EM CADEIA... 
–Darly O. Barros/SP– 

Sem nem saber por onde é que eu começo, 
sob emoção, fremindo, em regozijo 
ao prévio aviso, enfim, do seu regresso, 
feliz da vida, à sala eu me dirijo: 

abro as janelas – chega de recesso 
e de bolor, em meio ao qual me aflijo – 
basta de sombras e de peito opresso, 
ar puro, flores, verde e sol, exijo! 

Faxino a casa inteira, faço o almoço, 
e ao meio-dia, presa de alvoroço, 
enquanto a adrenalina se acelera, 

num coro ao chilrear lá do quintal, 
saudando a convidada especial, 
recebo, Sua Alteza, a Primavera!

Adriana Kairos (Eu Conto Carneirinhos)


Gosto de sonhar. Penso que os sonhos são passeios da alma. Sabe,quando queremos espairecer. Sair por aí. Distrair.

 Só que os sonhos fazem viagens bem mais empolgantes. Viajam pelas lembranças, exploram o desconhecido, visitam até o que tememos e nos assustam com terríveis pesadelos. Mas são só pesadelos.

 Revemos amigos, outros bem mais queridos e encontramos até gente nova. Sim!!! Acredito nisso. Sabe quando vemos alguém pela primeira vez e dizemos: "Eu não te conheço de algum lugar?" Sei lá, mas eu acho que é lá das voltinhas dos sonhos, que já o vimos antes.

 Por isso é que gosto quando a noite chega. E espero ansiosa a hora de dormir, só pra saber a surpresa que terei. Que passeio farei, embalada em canções antigas de ninar. Quem sabe hajam caminhos de jujubas e rios de refrigerantes, laguinhos de chocolate com patinhos de bombom. Sei lá... As vezes a grande viajem é refugiar-se apenas no inimaginável.

 Não sou mística ou qualquer outra coisa. Nem gosto de religião. Só quero compartilhar os meus humildes pensamentos. E convidar a sua alma a pôr o pé na estrada te lembrando o quanto é bom sonhar.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_asantos_conto.asp

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 692)



Uma Trova de Ademar  

No instante da despedida, 
arquivei no pensamento 
a tristeza da partida 
e a dor do meu sofrimento. 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Toda a cicatriz que o arado 
provoca, ao rasgar o chão, 
não é ofensa, é agrado 
...e a colheita é a gratidão! 
–Yedda Maia Patrício/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Minha vida é semelhante 
ao curso de uma jangada: 
"onda" pequena ou gigante 
não me "afoga" na jornada. 
–Tarcício Fernandes/RN– 

Uma Trova Premiada  

1991   -   Barra do Piraí/RJ 
Tema   -   HORA   -   M/H 

Destino, relógio antigo, 
cujos ponteiros, tiranos, 
marcaram hora comigo 
no encontro dos desenganos... 
–Divenei Boseli/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

O amor se foi, eu garanto,
não deixou nenhum desgosto..
Mas, meu Deus, por que este pranto
teimando em molhar meu rosto?... 
–Marisol/RJ– 

Uma  Poesia  

Nunca mais beberei dessa desgraça 
pois passei a maior decepção, 
me levaram pras grades da prisão 
só por causa de um copo de cachaça; 
a vergonha pra mim ficou na praça 
na mistura de cana com torresmo, 
e cada passo que dou agora a esmo 
vejo um filho chorando de desgosto, 
e toda vez que eu olho pra meu rosto 
sinto muita vergonha de mim mesmo. 
–Geraldo Feitosa/PB– 

Soneto do Dia  

PRIMAVERA. (Em 2006) 
–Miguel Russowsky/SC– 

Lá fora o sol propõe uma aquarela 
com seu pincel de cor exuberante 
e convida-me a ser participante 
em moldura de verdes, sentinela. 

Aqui dentro a caneta, tagarela, 
murmura sugestões a cada instante. 
Os sonhos, cada qual mais provocante, 
tiram proveitos dos meneios dela. 

Diria: - Estou feliz!... É primavera!... 
(A realidade dói!). Ó quem me dera, 
ter asas e voar à luz serena! 

Setembro... vinte e dois... dois mil e seis... 
Não sou mais jovem ...(e nem ágil)... Eis: 
Aterrizei... Envelheci... Que pena!

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Mário Quintana (Palavra Escrita)


Victor Giudice (O Arquivo)


(1934-1997) 

Já no seu livro de estréia, O Necrológio (1971), o carioca Victor Giudice nos revelava esta pequena obra-prima que é O Arquivo, na qual o imaginário do autor consegue fundir tão bem o fantástico com o humor, como um bom discípulo de Kafka, Dino Buzzati ou Cortázar. Giudice escreveu outros livros de contos, além do romance Bolero. 

Foi crítico de música clássica do Jornal do Brasil. Morreu antes de consolidar sua obra.
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No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

João era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora, João acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

João preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal. Respirou descompassado.

- Seu João. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

João baixou a cabeça em sinal de modéstia.

- Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

- Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

- De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, João gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, João não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.

A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.

Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

- Seu João. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou 
sorrir:

- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

- Mas seu João, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

João afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa (org.). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

Errata em Trova de Mensagens Poéticas de Ontem

Na Trova de ontem, de Carolina Ramos, em Uma Trovas Premiada, das Mensagens Poéticas n. 690 (7 de outubro)

no lugar de Bandeirantes, 
leia-se Maringá.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 691)



Uma Trova de Ademar 

Na vida o que me conforta, 
está nesta frase bela: 
“Deus jamais fecha uma porta, 
sem que abra uma janela”! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional 

Minha paixão malograda, 
sufocada entre segredos, 
é como nau destroçada 
batendo contra os rochedos! 
–Myrthes Mazza Masiero/SP– 

Uma Trova Potiguar 

Corta-se a mata nativa,
fica o campo a céu aberto...
É a força bruta nociva
na construção do deserto.
–Djalma Mota/RN– 

Uma Trova Premiada 

1999  - Cachoeiras de Macacu/RJ 
Tema  - CORRENTEZA  - M/H 

Minha alma não teme abismo 
na correnteza em que avança, 
pois meu barco de otimismo 
leva cargas de esperança! 
–Héron Patrício/SP– 

..E Suas Trovas Ficaram 

Há balanços conflitantes
em vidas fúteis e loucas:
os outonos são bastantes
e as primaveras bem poucas.
–Miguel Russowsky/SC– 

U m a P o e s i a 

Depois que a velhice vem 
o corpo humano se estressa. 
No motor da existência 
todo defeito começa, 
o difícil dessa máquina 
é o dono encontrar a peça. 
–Geraldo Amâncio/CE– 

Soneto do Dia 

MEMÓRIA. 
–Francisco Garcia/RN– 

Esta dor que me fere e me magoa 
quando lembro da minha mocidade, 
pouco me importa que ela tanto doa, 
se doendo, não cura esta saudade. 

Melancolicamente eu vou lembrando, 
de saudade em saudade eu vou vivendo, 
mas não posso esquecer de quando em quando, 
que em teus braços, aos poucos vou morrendo. 

Nesta luta sem trégua, em desatino, 
eu me agarro nas rédeas do destino 
dos arquivos ingratos da velhice, 

mas não posso esquecer que fui criança, 
guardarei para sempre na lembrança 
a saudade feliz da meninice!

2ª Edição do Concurso Internacional de Contos Vicente Cardoso (Resultado Final)

Neste sábado 06/10/2012 reuniram-se os jurados da 2ª edição do Concurso Internacional de Contos Vicente Cardoso 
professor Roque Aloísio Weschenfelder graduado em Letras Português, Inglês e Literatura e escritor premiado em vários concursos literários e 
a escritora, pedagoga, orientadora educacional, arteterapeuta, Mestre em Educação, coordenadora do Grupo de Teatro Estudantil ATIVAR da Escola Estadual de Educação Básica Cruzeiro Maria Inez Flores Pedroso para decidirem os premiados e as menções honrosas deste certame literário. 

O concurso recebeu mais de trezentos trabalhos de cerca de sete países e de todos os estados do Brasil dentro do gênero ficção científica ou fantasia.

VENCEDORES

1º colocado: 
A Viúva de Monsserat
Pseudônimo: Victória Nix
Nome real: Vanessa Laís Roberti
Cidade: Três de Maio RS

2º colocado: 
O Guerreiro da Luz Púrpura
Pseudônimo: Ronald Voormann
Nome Real: Rafael de Moura Piovesana
Jundiai-SP

3º colocado : 
Gênesis 
Pseudônimo: Valentina Tereshkova
Nome real: Davi Menossi Gonzales
São Caetano do Sul, SP

4º colocado: 
O Caçador de Lágrimas
Pseudônimo: R.Rodrigues
Nome real: Regina Célia Rodrigues dos Santos
Colombo, PR

5º colocado: 
Humanoid
Pseudônimo: Angelina Crisccelys
Nome real: Talita Magalhães Ventura
São Paulo, SP

MENÇÃO HONROSA: 

A Décima segunda Porta
Pseudônimo: Florêncio Terra Cambará
Nome real: Olavo Souza Berquó
Porto Alegre, RS

O dia em que encontrei outro Henrique VIII na minha sala de estar
Pseudônimo: Dori
Nome Real: Clara Augusta d’Amaral Savelli
Rio de Janeiro, RJ

Hipérbole
Pseudônimo: Wilhelm Yatsek
Nome real: Rodrigo Zafra Toffolo (Nome artístico: Rodrigo Zafra)
Santos, SP

A Pena de Fenix
Pseudônimo: John McCartney
Nome real: Fabio Baptista 
São Paulo, SP

Empório dos Sonhos
Pseudônimo: Cesário Rey
Nome real: Ademilson Reis
Alpinópolis, Minas Gerais

As Portas da Percepção
Pseudônimo: Frederíca de Henares
Nome real: Alexandra Lopes Da Cunha
Porto Alegre, RS


domingo, 7 de outubro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 690)



Uma Trova de Ademar 

Eu aprendi a perder
mesmo sem haver perdido,
também aprendi vencer
“sem humilhar o vencido!”
–Ademar Macedo/RN–

 Uma Trova Nacional 

Já não combato a ansiedade
que me consome e angustia;
a dor da minha saudade
eu a transformo em poesia.
–Almira Guaracy Rebêlo/MG– 

 Uma Trova Potiguar 

Para que Deus não me puna
por consciência intranquila,
só quero somar fortuna
se aprender a dividi-la.
–José Lucas de Barros/RN–

 Uma Trova Premiada 

1965   -   Bandeirantes/PR
Tema   -   SOLIDÃO   -   4º Lugar

Solidão, eu te bendigo!
À tua sombra querida,
eu marco encontro comigo
e acerto os passos da vida
–Carolina Ramos/SP–

 ...E Suas Trovas Ficaram 

Quero falar... retrocedo... 
pois tenho um pavor medonho,
de que ao contar meu segredo
você destrua meu sonho...
–Luiz Otávio/RJ– 

  U m a    P o e s i a  

Desde quando tornou-se racional
que o homem procura o par perfeito,
qualquer coisa lhe deixa insatisfeito
pois a imperfeição é que é normal;
mas o homem por ser esse animal,
só escolhe outro ser que lhe interesse,
as virtudes vitais não reconhece,
quando menos espera, já perdeu;
dê valor ao que tem, enquanto é seu,
pois talvez seja mais do que merece.
–Henrique Brandão/PE– 

 Soneto do Dia 

MÃOS QUE OS LÍRIOS INVEJAM...
–Alphonsus de Guimaraens/MG–

Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas
para aliviar de Cristo os sofrimentos,
cujas veias azuis parecem feitas
da mesma essência astral dos olhos bentos;

mãos de sonho e de crença, mãos afeitas
a guiar do moribundo os passos lentos,
e em séculos de fé, rosas desfeitas
em hinos sobre as torres dos conventos.

Mãos a bordar o santo Escapulário,
que revelastes para quem padece
o inefável consolo do Rosário;

mãos ungidas no sangue da Coroa,
deixai tombar sobre a minha Alma em prece
a bênção que redime e que perdoa !

sábado, 6 de outubro de 2012

Mário Quintana (O Assunto)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 689)



Uma Trova de Ademar  

Desde o tempo de menino 
vi o quanto eu sou machão; 
pois meu lado feminino 
é um tremendo sapatão! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Me chamam de cachaceiro 
mas eu juro, nem é tanto; 
nunca tomo um copo inteiro, 
a metade eu dou pro santo! 
–Petronilo Filho/PB– 

Uma Trova Potiguar  

Por uma acusação falsa 
fui levado pra cadeia. 
Lá ganhei a meia calça 
depois de uma surra e meia...! 
–Manoel Cavalcante/RN– 

Uma Trova Premiada  

1998   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   PREGUIÇOSO   -   4º Lugar 

Até no "terreiro" em prece,
é preguiçoso, o farsante: 
quando o "santo" dele desce,
só vem... de escada rolante! 
–Selma Patti Spinelli/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Que a mulher tem duas caras, 
isto não é mais segredo: 
a primeira mostra às claras 
e a outra – de manhã cedo. 
–Jorge Murad/RJ– 

U m a P o e s i a  

Numa farmácia outro dia, 
eu fui comprar um remédio 
para evitar o assédio, 
da grande disenteria. 
Lacto-Purga, o “Zacaria”, 
mandou eu tomar ligeiro, 
me cobrou um bom dinheiro, 
aquele cabra sacana. 
Eu passei uma semana 
da cama para o banheiro... 
–Francisco Macedo/RN– 

Soneto do Dia  

AZAR. 
–Renata Paccola/SP– 

Certo dia, acordei de mau humor – 
resquício de uma noite mal dormida. 
Peguei o carro, e então fundiu o motor, 
segui para o metrô, enfurecida. 

Tentei continuar com minha lida, 
mas fiquei presa num elevador. 
Neste compartimento sem saída, 
passei horas de angústia e terror, 

e saí sob o som de bate-estaca. 
Depois, no meio de um supermercado, 
senti a dor de um burro quando empaca. 

Foi aí que vi, quase ao meu lado, 
irônicos dizeres numa placa: 
“Sorria. Você está sendo filmado!” 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Mário Quintana (Leitura 2)


Almanaque Paraná n.5 - 1a. Quinzena de Outubro (Errata)


Hoje enviei por e-mail este novo número e graças a irmã trovadora Dorothy Janson Moretti que carinhosamente me alertou:

Na trova da Amália Max, no segundo verso 
onde está escrito "sinhô", 
o correto é "sino".

O Almanaque já está disponível para download no site http://www.issuu.com, e em breve aqui no blog, este corrigido.

Obrigado e perdoem a falha
José Feldman

Olivaldo Junior (Um Menino, a Solidão e um Par de Asas com Frágeis Penas de Seda)


Este texto me foi enviado ontem, 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, mas me chegou tarde às mãos (mais precisamente, aos olhos). Quando Olivaldo se refere a Hoje, será na verdade ontem, e ao falar Amanhã, é hoje.

Hoje é Dia de São Francisco de Assis e, também, dos Animais. Animais são mais que figuras em volta de nós. Nossa vida é reanimada por eles. Amanhã é Dia das Aves. Aves são a chave da inspiração à liberdade. Não somos livres, mas levamos jornais, diria Drummond... Somos o Sonho, que Rodrigo Maranhão tão bem cantou. Cantar é minha forma de amar. E, se também toco, é porque não há quem o faça por mim. Minha solidão não tem se sentido acompanhada, como diria Chico Buarque à bela Iolanda. Ando, que as asas, suas penas, têm frágeis penas de seda e logo cedem.

UM MENINO, A SOLIDÃO E UM PAR DE ASAS COM FRÁGEIS PENAS DE SEDA

Era uma vez um menino que nasceu numa pequena cidade do interior. Altamente introspectivo, admirava os carros e pessoas que passavam na rua, sempre impossível para ele. O maior medo era o maior desejo, pois o Medo é o Desejo arruinado, sem jeito. Até que era bom, como, em potencial, são bons todos os homens. 

O menino tinha pai, mãe e um irmão mais novo, o qual queria muito que houvesse, pois sempre se sentia só. Coitado... O menino dessa história não sabia que a Solidão, sempre atenta, à espreita, em todos nós se ajeita com o passar do Tempo. O Tempo é grande amigo dela e sempre lha reserva um lugar legal no futuro. A Solidão, em alguns, nem precisa esperar tanto, pois, desde cedo, passa a ter todos. 

Passou-se o tempo, e os carros da rua ficaram mais rápidos, tanto quanto os passos, lépidos, de todos que conhecia. Meio tonto, tão tolo quanto um par de asas com frágeis penas que se tem como seus, o menino foi ficando triste. A Tristeza é uma prima do Tempo, que, em certos casos, também ama a Alegria. Não, o menino não era amigo de festas, de coisas da moda, mas de coisas do tempo em que as rodas rondavam as noites de inverno, ou verão, das casas de então. Fora do tempo, e cansado de tantas por que havia passado na vida, o menino, quase um rapaz, trancou-se no quarto e, de lá, não saiu por longo tempo. O Tempo vinha bater palmas à porta do quarto, mas nada. O menino, irredutível, reduziu-se a isto: um triste jovem com um par de asas com frágeis penas, que jamais serviam de chaves para outros ares de vida. A Morte, até mesmo a Morte, por diversas vezes, cantou seu cântico de mortandade para o triste amigo de nem um amigo. Amigos... eis o que sempre esperou aquele pobre coração vadio, vazio como um ponteiro de relógio marcando o tempo para o fim das roseiras.

O par de asas com frágeis penas de seda sempre esteve no quarto, bem ao lado do pobre. Mas os olhos nem sempre dão conta de enxergar o que existe. Existir era uma luta constante com flores e estrelas em volta da cama, no canto das portas, em cima das telhas, vermelhas, de casa onde mora um rapaz que esteve, desde cedo, atrasado.

Foi que um dia, de tanto chorar, teve secas suas lágrimas, vendo livre a sua estrada, porque há léguas que somente os pés que temos podem, ainda que não se tenha carro, ter no velocímetro em nós. As horas são mais que ponteiros.

Acordando para a vida, vendeu o Medo sem nada ter em troca e partiu. Esse pobre rapaz, tão pobre quanto quem tem o chão sem nada como seu, esse homem partiu para a vida, videira nem sempre em uvas, mas sempre em vívidas folhas. A folha em que o menino se via não era nem verde, era branca. O branco das folhas carregava o que ele mais tinha e mantinha no cerne de árvore nascida gente, gente com ares de pássaro, pássaro passando um tempo entre os presos. Presa fácil para sonhos, o homem conhecera o amor que não se pode, nem se deve tocar, mas, nem por isso, é menor. O Amor nunca é mínimo, sempre é o máximo. No entanto, cansado de nunca ser correspondido, o homem foi ficando escuro como um domingo sem sol, até que a Solidão pousasse outra vez em suas asas, tão frágeis, no quarto. O quarto de um homem é seu parto para o mundo lá fora. Fora isso, tinha sempre um por que não parar. Vai que, um dia, faz sol, e ele, lá fora, possa, enfim, se iluminar... Tinha um amigo, sim, alguém que lhe dera um raio de luz entre as horas de bruma. Mas também triste era essa estrita amizade com quem sequer, quase nunca, estava. O Tempo, suspeitoso, era sempre vão.

Queria, enfim, que o par de asas funcionasse e, Deus do Céu, ali ao lado houvesse alguém voando além. Mas nada, qual nada, nunca nada! O som da Solidão, impregnando os sons da vida em torno dele, impulsionava o coração a ser mais Ícaro e a ganhar o ar. O ar pode ser muito para um par de asas com frágeis penas de seda confundindo os ventos, se arrastando à toa para qualquer canto. Cantar era o bastante? Não sabia. Mas cantava e tocava um pouco, mesmo só, para que alguém, mesmo não lá, pudesse ouvi-lo, pudesse olhá-lo e, quem sabe, levantá-lo e devolvê-lo para ele ao fim.

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