sexta-feira, 12 de julho de 2019

Luiz Gonzaga da Silva (Trovas Dispersas)



Acostumei-me demais 
ao frescor da tua essência, 
mas aos poucos te afastais 
deixando apenas ausência. 

Acre odor de mata em chama,
fumaça que faz chorar,
meu peito gemendo clama
para a queimada acabar.

A deusa da minha rua
mora bem perto de mim:
– vive a contemplar a lua
que ilumina o meu jardim.

A mulher de meia idade,
madura e bem assumida,
tem a preciosidade
de uma vinha enobrecida.

A nossa fé compartida 
numa promessa de paz 
é como luz refletida 
na pureza dos cristais. 

As flores que me ofereces
perfumando os nossos dias, 
são meu rosário de preces, 
meu buquê de fantasias.

Caminhando nas planuras 
do meu mundo interior, 
eu sublimo as amarguras 
que o destino preparou.

Caminhante, aonde vais,
neste caminhar fremente,
não vês que o mundo não trás 
quietude à nossa mente?

Esta angústia que me invade, 
asfixiando o meu ser, 
amarga mais que a saudade, 
dói muito mais que morrer. 

Nesta vida multiforme, 
em que a sorte vai e vem, 
ainda há quem se conforme 
e só siga a luz do bem. 

Nesta vida tão atroz,
de multiformes percalços,
milhares são os heróis
que lutam de pés descalços.

No meu jardim plantei rosas, 
pensando nos seus carinhos, 
mas as minhas mãos calosas 
colheram só os espinhos.

O pelourinho na praça 
traz um grito do passado: 
grito de dor e desgraça 
de um grande povo ultrajado. 

O sertão está molhado... 
Não de chuva... mas do pranto 
desse povo abandonado 
que a seca castiga tanto!... 

O velho com suas dores, 
vergado ao peso dos anos, 
carrega ainda os amores, 
as glórias e os desenganos...

Passando fome em criança,
privações na mocidade,
será que a tal esperança
resiste à terceira idade?

Segue a vida em seu passar
na corredeira dos anos:
– de salto em salto o sonhar,
– de queda em queda os enganos.

Tua luz suave ilumina
meus passos de caminhante:
– és a estrela matutina,
– eu, o peregrino errante!

Um sonho de juventude
não morre nunca, eu suspeito
pois me assusta a inquietude
que ainda carrego ao peito.

Vivendo sem sul, sem norte,
suportando a minha dor,
sou "antes de tudo um forte"
- sertanejo e trovador.

Vivo na vida sem ninho, 
sem carinho e sem fanal, 
abraçado ao pelourinho 
do meu destino fatal. 

Fonte:
O Trovador

Vinicius de Moraes (Chorinho para a Amiga)


Se fosses louca por mim, ah eu dava pantana, eu corria na praça, eu te chamava para ver o afogado. Se fosses louca por mim, eu nem sei, eu subia na pedra mais alto, altivo e parado, vendo o mundo pousado a meus pés. Oh, por que não me dizes, morena, que és louca varrida por mim? Eu te conto um segredo, te levo à boate, eu dou vodca pra você beber! Teu amor é tão grande, parece um luar, mas lhe falta a loucura do meu. Olhos doces os teus, com esse olhar de você, mas por que tão distante de mim? Lindos braços e um colo macio, mas porque tão ausentes dos meus? 

Ah, se fosses louca por mim, eu comprava pipoca, saía correndo, de repente me punha a cantar. Dançaria convosco, senhora, um bailado nervoso e sutil. Se fosses louca por mim, eu me batia em duelo sorrindo, caía a fundo num golpe mortal. Estudava contigo o mistério dos astros, a geometria dos pássaros, declamando poemas assim: "Se eu morresse amanhã... Se fosses louca por mim... ". Se você fosse louca por mim, ô maninha, a gente ia ao Mercado, ao nascer da manhã, ia ver o avião levantar. Tanta coisa eu fazia, ó delícia, se fosses louca por mim! Olha aqui, por exemplo, eu pegava e comprava um lindo peignoir pra você. Te tirava da fila, te abrigava em chinchila, dava até um gasô pra você. Diz por que, meu anjinho, por que tu não és louca-louca por mim? 

Ai, meu Deus, como é triste viver nesta dura incerteza cruel! Perco a fome, não vou ao cinema, só de achar que não és louca por mim. (E no entanto direi num aparte que até gostas bastante de mim...). Mas não sei, eu queria sentir teu olhar fulgurar contra o meu. Mas não sei, eu queria te ver uma escrava morena de mim. Vamos ser, meu amor, vamos ser um do outro de um modo total? Vamos nós, meu carinho, viver num barraco, e um luar, um coqueiro e um violão? Vamos brincar no Carnaval, hein, neguinha, vamos andar atrás do batalhão? Vamos, amor, fazer miséria, espetar uma conta no bar? Você quer que eu provoque uma briga pra você torcer muito por mim? Vamos subir no elevador, hein, doçura, nós dois juntos subindo, que bom! Vamos entrar numa casa de pasto, beber pinga e cerveja e xingar? 

Vamos, neguinha, vamos na praia passear? Vamos ver o dirigível, que é o assombro nacional? Vamos, maninha, vamos, na rua do Tampico, onde o pai matou a filha, ô maninha, com a tampa do maçarico? Vamos maninha, vamos morar em jurujuba, andar de barco a vela, ô maninha, comer camarão graúdo? Vem cá, meu bem, vem cá, meu bem, vem cá, vem cá, vem cá, se não vens bem depressinha, meu bem, vou contar para o seu pai. Ah, minha flor, que linda, a embriaguez do amor, dá um frio pela espinha, prenda minha, e em seguida dá calor. És tão linda, menina, se te chamasses Marina, eu te levava no banho de mar. És tão doce, beleza, se te chamasses Teresa, eu teria certeza, meu bem. Mas não tenho certeza de nada, ó desgraça, ó ruína, ó Tupá! Tu sabias que em ti tem Taiti, linda ilha do amor e do adeus? Tem mandinga, tem mascate, pão-de-açúcar com café, tem chimborazo, kamtchaka, tabor, popocatepel? tem juras, tem jetaturas e até danúbios azuis, tem igapós, jamundás, içás, tapajós, purus! - tens, tens, tens, ah se tens! tens, tens tens, ah se tens! 

Meu amor, meu amor, meu amor, que carinho tão bom por você, quantos beijos alados fugindo, quanto sangue no meu coração! Ah, se fosses louca por mim, eu me estirava na areia, ficava mirando as estrelas. Se fosses louca por mim, eu saía correndo de súbito, entre o pasmo da turba inconsútil. Eu dizia : Woe is me! Eu dizia: helàs! pra você… Tanta coisa eu diria que não há poesia de longe capaz de exprimir. Eu inventava linguagem, só falando bobagem, só fazia bobagem, meu bem. Ó fatal pentagrama, ó lomas valentinas, ó tetrarca, ó sevícia, ó letargo! Mas não há nada a fazer, meu destino é sofrer: e seria tão bom não sofrer. Porque toda a alegria tua e minha seria, se você fosse louca por mim… Mas você não é louca por mim... Mas você não é louca por mim...

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Serás Ministro)


— Esse vai ser ministro — sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu.

— E você, com esse ordenado mixo de servente, tem lá poder pra fazer nosso filho ministro? — duvidou a mãe.

— Então, só porque meu ordenado é mixo ele não pode ser ministro? A Rádio Nacional deu que Abraão Lincoln trabalhava de cortar lenha no mato e chegou a presidente dos Estados Unidos.

— Isso foi nos Estados Unidos.

— E daí? Nem eu estou querendo tanto pra ele. Só quero uma de ministro.

— Tonzinho, deixa isso pra lá.

— Pra começar, a gente convida o ministro pra padrinho dele.

— O ministro não vai aceitar.

— Não vai por quê? Trabalho no gabinete há dois anos.

— Ele é muito importante, filho.

— Por isso mesmo. Com padrinho importante, o garotinho começa logo a ser importante.

— O ministro é tão ocupado, você mesmo diz. Vê lá se tem tempo pra batizar filho de pobre.

— Pois sim. Ele me trata com toda a consideração, de igual pra igual. Hoje mesmo eu faço o convite.

Fez. O ministro não pôde comparecer, mas enviou representante. Era quase a mesma coisa. Na hora de dizer o nome do menino, o pai não vacilou; disse bem sonoro:

— Ministro.

— Como? — estranhou o padre.

— Ministro, sim senhor.

A mulher ia atalhar: “Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente combinou?”, mas era tarde.

No cartório, também estranharam:

— Ministro por quê?

— Porque eu escolhi. Acho lindo.

— Não é nome próprio.

— Pois eu cá acho muito próprio. Não tem aí uma família chamada Ministério, aliás com pessoas distintas, médicos, dentistas etc.?

— Tem.

— Pois então. Meu filho é Ministro, só isso. Ministro Alves da Silva, futuro cidadão útil à pátria. Tem alguma coisa demais?

O garoto registrou-se. Cresceu. Na escola, a princípio achavam-lhe graça no nome. Parecia apelido. Depois, o costume. Há nomes mais estranhos. Ministro não era o primeiro da classe, também não foi dos últimos.

Já moço, o leque das opções não se abriu para ele. Entre o ofício sem brilho e o andar térreo da burocracia, acabou sendo, como o pai, servente de repartição. Promovido a contínuo.

— Eu não disse? — festejou o pai. — Começou a subir.

O máximo que subiu foi trabalhar no gabinete do ministro.

— Ministro, o senhor ministro está chamando.

— Ministro, já providenciou o cafezinho do senhor ministro?

— Sabe quem telefonou pra você, Ministro? A senhora do senhor ministro. Diz que você prometeu ir lá consertar umas goteiras e esqueceu.

— Ministro! Roncando na hora do expediente?!

Começaram os equívocos:

— Telefonema para o Ministro.

— Qual? O Ministro ou o senhor ministro?

— Esse Ministro é um cretino! Me fez esperar uma hora nesta poltrona!

— Perdão, deputado, o senhor está ofendendo o senhor ministro.

— Eu? Eu? Estou me referindo a esse animal, esse…

Até que se apurasse que o animal era Ministro, o contínuo — que confusão! O ministro de Estado, ciente da confusão, recomendou ao assessor:

— Faça esse homem trocar de nome.

— Impossível, senhor ministro. É o seu título de honra.

— Então suma com ele da minha vista.

Mandaram-no para uma vaga repartição de vago departamento. Queixou-se ao pai, aposentado, que isso de se chamar Ministro não conduz a grandes coisas e pode até atrasar a vida.

— Ora, meu filho, hoje no bueiro, amanhã no Pão de Açúcar. E você não tem de que se queixar. Num momento em que tanta gente importante sua a camisa pra ser ministro, e fica olhando pro céu pra ver se baixa um signo do astral, você já é, você sempre foi Ministro, de nascença! de direito! E não depende de governo nenhum pra continuar a ser, até a morte!

Abraçaram-se, chorando.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Arthur de Azevedo (O Paulo)


Se o senhor conhecesse o meu amigo Paulo, com certeza o estimaria: era um excelente rapaz, um belo camarada.

Há dezesseis anos que ele se tinha casado, por amor, com uma linda moça, e nunca houve marido mais amante, mais solícito, mais cumpridor dos seus deveres, para empregar aqui esta frase cômoda, em que o vulgo envolve todas as virtudes maritais.

Ao cabo de um ano de casamento, nasceu ao Paulo uma filha que completou a sua felicidade, e fez com que ele se considerasse a mais venturosa das criaturas humanas.

Essa ilusão durou muito tempo, durou até o dia em que o pobre rapaz, perdendo o emprego que tinha, e arranjando outro menos rendoso, foi obrigado a mudar-se para uma casa mais modesta e a restringir as suas despesas. A mulher, que gostava muito de se embonecar e de se divertir, achou que isso era a miséria e o deu a perceber ao marido. Este afligiu-se tanto que adoeceu.

Em janeiro deste ano, uma tarde, voltando para casa, depois do trabalho, o Paulo não encontrou a mulher.

– Que é de tua mãe? – perguntou à filha.

– Saiu; não me disse onde ia, mas deixou uma carta para papai.

Ele sentiu logo um grande abalo no coração e teve um terrível pressentimento. As mulheres que abandonam o domicílio conjugal fazem, por via de regra, como os homens que se matam: deixam uma carta. O Paulo sabia disso e tremeu.

Não se enganava. A desgraçada deixou-o e deixou também a filha, uma pobre moça de quatorze anos, que precisava tanto dos cuidados maternos.

O Paulo era forte de coração, mas fraco de espírito; o golpe aniquilou-o; entretanto, fez das fraquezas força e continuou a viver e a trabalhar por amor da filha, que confiou a uma família amiga.

Passados alguns meses, a mulher, que tinha ido viver em companhia de um amante, sentiu saudades da menina, e tentou reavê-la. Não o conseguindo, naturalmente, por meio de súplicas e sabendo que não tinha a lei por si, a desgraçada teve uma ideia monstruosa, talvez sugerida pelo seu digno amante: escreveu uma carta ao marido afiançando-lhe que ele não era pai daquela criança.

A carta infame produziu o desejado efeito: o pobre Paulo, depois de alguns dias de profunda melancolia, teve um violento acesso de loucura e foi internado no Hospício.

Ao cabo de algum tempo foi removido para a casa de um parente, mas durou apenas uma semana. Faleceu anteontem e foi enterrado ontem.

A viúva provavelmente vai casar-se com o amante, e a infeliz menina ficará sob a tutela do padrasto.

Aí tem, meu ilustre amigo, um caso que se passou neste ano de 1908, caso verídico e pungente pelo qual substituo hoje um conto inventado, sem mesmo disfarçar o nome do meu desventurado amigo, que se chamava realmente Paulo.

Fonte:
Arthur Azevedo. Contos.

Caldeirão Poético XXVI


GREGÓRIO DE MATOS GUERRA 
(1633-1696)

CIDADE DA BAHIA

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.

ALEXANDRE DE GUSMÃO 
(1695-1753)

A JÚPITER, SUPREMO DEUS DO OLIMPO

Númen que tens do mundo o regimento,
Se amas o bem, se odeias a maldade,
Como deixas com prêmio a iniquidade,
E assoçobrando ao são entendimento?

Como hei de crer que um imortal tormento
Castigue a uma mortal leviandade?
Que seja ciência, amor ou piedade
Expor-me ao mal sem meu consentimento?

Guerras cruéis, fanáticos tiranos, 
Raios, tremores e as moléstias tristes
Enchem o curso dos pesados anos;

Se és Deus, se isto prevês e assim persistes,
Ou não fazes apreço dos humanos,
Ou qual dizem não és; ou não existes.

ALVARENGA PEIXOTO 
(1744-1793)

ESTELA E NIZE

Eu vi a linda Estela, e namorado
Fiz logo eterno voto de querê-la;
Mas vi depois a Nize, e é tão bela,
Que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se neste estado
Não posso distinguir Nize de Estela?
Se Nize vir aqui, morro por ela;
Se Estela agora vir, fico abrasado.

Mas, ah! que aquela me despreza amante,
Pois sabe que estou preso em outros braços,
E esta não me quer por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços,
Ou faz de dois semblantes um semblante,
Ou divide o meu peito em dois pedaços!

JOSÉ MARIA DO AMARAL 
(1813-1885)

DESENGANO

Uma por uma, da existência as flores,
Se a existência que temos é florida,
Uma por uma, no correr da vida,
Fanadas vi sem viço e vi sem cores.

Sonhos mundanos, sois enganadores,
Alma que vos sonhou, geme iludida;
Existência, de flores tão despida,
Que te fica senão tristeza e dores?

Do mundo as ilusões perdi funestas,
Ao noitejar da idade, em amargura,
Esperança cristã, só tu me restas!

Fujo contigo desta vida impura,
Nas crenças que tão mística me emprestas,
Transponho antes da morte a sepultura.

FRANCISCO OTAVIANO 
(1825-1889)

MORRER... DORMIR...

Morrer... dormir... não mais! Termina a vida
e com ela terminam nossas dores:
Um punhado de terra, algumas flores,
E às vezes uma lágrima fingida!

Sim! minha morte não será sentida;
Não deixo amigos, e nem tive amores!
Ou, se os tive, mostraram-se traidores,
Algozes vis de uma alma consumida.

Tudo é podre no mundo. Que me importa
Que ele amanhã se esb'roe e que desabe
Se a natureza para mim é morta!

É tempo já que o meu exílio acabe...
Vem, pois, ó morte, ao Nada me transporta!
Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe?

D. PEDRO DE ALCÂNTARA 
(1825-1891)

ASPIRAÇÃO

Deus, que os orbes regulas esplendentes,
Em número e medida ponderados,
Neles abrigo dás aos desterrados,
Que se vão suspirosos e plangentes.

Assim, dos céus às vastidões silentes
Ergo os meus pobres olhos fatigados,
Indagando em que mundos apartados
Lenitivo à saudade nos consentes.

Breve, Senhor, do cárcere de argila
Hei de evolar-me, murmurando ansioso
Tímida prece: digna-te de ouvi-la!

Põe-me ao pé do Cruzeiro majestoso,
Que no antártico céu vivo cintila,
Fitando sempre o meu Brasil saudoso!

JOSÉ BONIFÁCIO, O MOÇO 
(1827-1886)

O RETRATO

Incline o rosto um pouco... assim... ainda;
arqueie o braço, a mão sobre a cintura;
deixe fugir-lhe um riso à boca pura
e a covinha animar da face linda.

Erga a ponta do pé... que graça infinda!
Quero nos olhos ver-lhe a formusura,
feitiço azul de orvalho que fulgura,
froco de luz suave, que não finda!

Há pouca luz... eu vejo-a... está sentada.
Passou-lhe a sombra de um cuidado agora,
na ruguinha da fronte jambeada.

Enfadou-se? Meu Deus, ei-la que chora!
Pois caiu-me o pincel. Que mão ousada!
Pintar de noite o levantar da aurora!

LUÍS DELFINO 
(1834-1910)

CAPRICHO DE SARDANAPALO

"Não dormi toda a noite! A vida exalo
Numa agonia indômita e cruel!
Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo!
Faço-te agora amigo meu fiel...

Deixa o leito de sândalo... A cavalo!
Falta-me alguém no meu real dossel...
Ouves, escravo, o rei Sardanapalo?
Engole o espaço! É raio o meu corcel!

Não quero que igual noite hoje em mim caia...
Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia,
Ao sol, à lua... voa, Radamés,

Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho,
Quero dormir também, feliz, debaixo
Das duas curvas dos seus brancos pés!..."

Vinicius de Moraes (Suave Amiga)


E eu pensarei: Que bom, nem é preciso respirar 
Cecília Meireles 

Não fui ao teu enterro, Suave Amiga. 

Os enterros, eliminei-os de minha vida para que possa lembrar vivos os meus mortos. Quando os vejo morrer, ou lhes velo os despojos, ou os acompanho em seu último e inútil passeio, eles se vão pouco a pouco fazendo imparticipantes; deixam-se frios e reservados como hóspedes de uma longínqua Marienbad. Sim, Suave Amiga, muito esnobes ficam os mortos para meu gosto. Prefiro pensá-los em viagem, capazes de inesperadamente surgir em minha imaginação, como sucediam no meu tempo; vivos itinerantes, sempre partindo e sempre de volta. Porque, assim como eu, todos os meus amigos viajam muito. 

Em algum lugar andarás agora, Suave Amiga, algum Tibete ou algum Nepal, a te moveres entre templos, levada pelo ímã do teu olhar de prata. Em algum lugar estará acontecendo o teu silêncio, a tua sombra, a tua dúvida. Ora deves parar em doce postura para ouvir de algum velho monge fórmulas mágicas capazes de imobilizar o tempo, dar voz às rosas, transformar tudo em distância; ora ensimesmar-te diante de horizontes infinitos até a evaporação total da carne feita bruma, feita nuvem, feitá pólen lunar: bruma, nuvem, pólen lunar habitados por imensos olhos verdilúcidos a caminharem para a grande treva fluida esgarçada de véus brancos. 

Suave Amiga, que saudade antiga... Saudade de quando entravas na sala de mesas toscas e, à tua chegada, nós nos iluminávamos; e o teu olhar fazia tudo verde, mas não verde-que-te-quero-verde: verde-conta, verde-cecília, cristal verde. Era Manuel Bandeira, cujo beijo deves ainda guardar na face fria; era Ribeiro Couto, que nunca mais vai voltar de Belgrado e era eu nos meus 28 anos, investindo com a lança do Silêncio contra os cavaleiros do Som, em combate cinematográfico desigual; éramos nós, teus poetas, e eras tu, poeta nosso, poeta-nuvem, poeta-gaivota a pescar na névoa de teu mar os peixes luminosos de teus versos. Era outro dia, era outra fábula. De mesmo só havia uma grande vontade de chorar. 

Suave Amiga, que cantiga triste... Que triste história a não contar mais nunca, essa do tempo que passa, do teu vulto avançando na penumbra da sala para logo se perder, da luz de teu sorriso e da calma dos teus olhos sem paz... Não importa onde estejas agora, nos caminhos do Sinai tangendo estrelas, ou a dormir num aquário no fundo de um lago, a graça de teu vulto acompanha nossos passos. À noite, em silêncio, pensamos em ti, ó poeta-pássaro, e sentimos o roçagar inaudível de tuas asas. Um dia, quando menos esperares, estaremos a teu lado. E eu sei que, inclinando graciosamente o corpo sobre o abismo, vigiarás nossa escalada e, no último lance, nos darás a mão. E tu serás para nós, teus poetas, a adorável cicerone desse mundo sem som onde hoje vagas ao sabor da inexistência de tudo, na imensa disponibilidade de quem não tem para onde ir. E nós talvez possamos escrever no grande quadro-negro incolor do espaço, como alunos aplicados, as primeiras palavras inexistentes da poesia que não foi.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 

domingo, 30 de junho de 2019

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) 3


A Justiça é muito lenta 
e de Jó tira a paciência;
ninguém mesmo se contenta 
com tamanha sonolência.

Analisem-se de novo,
perguntem aos coliseus:
“Quando será que este povo
terá mesmo a voz de Deus?”

As horas todas do mundo
pertencem ao João-preguiça,
dá vida em ser vagabundo
– nem por viver tem cobiça.

Burlesco é todo ciumento
que está sempre alucinado;
destrói o seu casamento,
mas se diz apaixonado.

Caindo na poça d’água,
à imagem que ali flutua,
o bêbado diz sem mágoa:
“Caramba!… Eu estou na Lua?!”

Cheque é bom, coisa valiosa,
quando vem de lá pra cá;
mas é coisa dolorosa
quando vai daqui pra lá.

Corri… e “dobrei a esquina”,
entrei na boca da noite…
No chão, vi a “estrela alpina”
bem antes do meu pernoite.

Dinheiro gordo e franqueado
chama a atenção de repente:
Deixa doce, bem melado,
falsos amigos da gente.

Distraído na olaria,
receita o médico ao doente:
“Tome um tijolo por dia
com mingau de telha, quente”.

Do jeito que vai o clima,
(nossa!) é desespero só!
Tudo seco. E o que anima 
é a esperança da “água em pó”…

É festa com pão e queijo
nos porões da Petrobrás;
E o dom ratão, com gracejo,
só queijo come voraz.

Ele fez rico chalé,
pro seu bem nele morar,
mas, num rancho de sapé,
foi ter sarna pra coçar.

Era garbosa gazela
toda sensual lá na praça;
como não teve cautela,
virou galinha sem raça.

Minha terra tem saci,
mas, um saci aleijado:
Tem “duas pernas”, eu vi,
pulando desengonçado.

Mulher jovem e bonita,
mansão e carro importado,
conta bancária infinita…
– eis um sonho afortunado!

O Nico é um “puxa” demente,
vê a que ponto ele vai:
Quando o patrão fica doente,
é o Nico que geme “ai, ai”!

Perde-se, às vezes, na escola,
a educação do bom lar;
o aluno prega, com cola,
que a escola é para educar.

Puxa-saco era o sujeito
que à pergunta “que horas são?”
respondeu com seu trejeito:
– As que quiser o patrão!

Quem tem a feia mulher
nada tem em sua mão:
De dia é um canhão qualquer
e à noite, uma assombração.

Torna-se escravo o avarento
do brilho vil do dinheiro;
escravo assim é tormento
e pesadelo ao herdeiro.

Vive o invejoso feliz
com toda alheia desgraça;
fingindo, é o que sempre diz:
– Coitado, ele é boa praça!

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.

Carolina Ramos (Tragédia Doméstica)


Tinha dois amores. Aliás, três, se somada a mulher miúda, clara, trabalhadeira, espalhando plantas e flores por toda a casa. Viviam todos no mesmo lar, sem complicações, em plena harmonia.

Os outros dois amores pertenciam, um, ao sexo feminino, o outro, ao masculino. Não, nada de alarmar. E quem pensou em filhos, também errou. O casal jovem ainda não os encomendara. Então, quem eram esses dois amores? Pois, um era a Juma, ruiva, olhos lânguidos, sempre fidalgamente bem penteada. O outro, frágil, lindo, exuberantemente alegre, dotado de voz privilegiada que a todos encantava. Uma cadela setter, pelo avermelhado, e um loiro canarinho cantador — os outros dois amores de Raul, marido de Tereza.

Havia ainda, uns três ou quatros gatos, hospedes bissextos, descompromissados com a casa, que apareciam quando lhes dava na telha. Mas, era inegavelmente, Sol, o canarinho cantador, que enchia de alegria o lar, conquistando, com sua graça, as boas graças da pequena família. Despertava ao despertar o sol, justificando o nome. Iniciada a função matinal, ninguém mais dormia! E, sem função, os despertadores perderam o emprego. Loiro como pé de ipê em tempos de primavera, biquinho sempre aberto, trinava a plenos pulmões o canarinho, expandindo seu canto ensolarado, ainda que chovesse. Canto vibrante de amor à vida!

O que ninguém entendia é como, Raul, que sempre, ostensivamente se opusera aos que mantinham aves em cativeiro, agora, sem mais nem menos, gabava os méritos do canarinho cativo. E defendia-se com os mesmos argumentos que antes contestava! Se outrora enfatizava:

— As aves nasceram para ser livres. Mais livres do que qualquer outro ser! Já nasceram com asas! Para voar. Para irem aonde quiserem. Sem ninguém para impedi-las. São donas do espaço. Se conseguimos voar, fabricando asas de aço, é porque somos invasores. O chão é nosso. O azul só delas! Prender uma ave, é condená-la sem culpas. Patati-pa-tatá, seguia, intransigente, nessa linha. Convicto de suas verdades. E, de repente, lá estava ele, fascinado, a defender a facção oposta, com a mesma convicção! E, com a mesma eloquência, justificava-se:

– O "bichinho" já nasceu na gaiola. Soltá-lo é matá-lo! Não sabe enfrentar o mundo lá fora! Qualquer gatinho neném faz dele um camundongo temperado para almoço. Coitadinho! Aqui, tem tudo de graça! Não precisa nem lutar pela subsistência. Falta-lhe apenas uma companheira. Logo vou tratar disso, etc, etc.,.

Antes do fim do discurso, todo o mundo adivinhava que Raul estava absolutamente apaixonado pelo canarinho cantador! Começara assim: — Todos os dias, antes das aulas, passava pela pequena livraria do Simon, para vasculhar, descontraidamente, as prateleiras e os escaninhos, à procura de um novo livro, ou de um livro velho ou, sabe-se lá o quê lhe pudesse prender o interesse. Questão de rotina. Um dia, despertou-lhe a atenção o canto mavioso que vinha do interior. Espetacular! Isto acontecera algumas vezes. Até que se decidira a indagar:

— Seu Simon, posso ver de perto esse canário? Como canta!

— Pois não, lá está ele. Foi presente do meu neto. Tem raça. Raça demais! Canta, canta, e canta, que até chega a me incomodar! Coisas de velho. Meus ouvidos não se dão bem com essa cantoria toda, dia após dia. Nem consigo pensar! Já quase o devolvi ao neto.

Pararam ao pé da gaiola. O canarinho belga calou-se tão logo percebeu gente estranha nas paragens. Raul, enamorado, achegou-se mais um pouco. A avezinha grudou nele o olho irrequieto, conquistando-o, definitivamente, com pio significativo que, para Raul, soou como convite: — Me leva pra casa?

— Eu compro! Seu Simon, me venda o canarinho. Faça preço.

— E que preço vou fazer? Nunca vendi canário nenhum! Nem sei quanto custa. Meu neto é que cuida disso. Faz criação. Eu não entendo nada de nada, além de livros, revistas e jornais.

— Olhe. Dou tudo o que tiver nos bolsos — insistiu Raul.

Sabendo não arriscar demasiado, esvaziou as algibeiras. Por oitenta mil, levou o canarinho para casa. Feliz! Não menos feliz, ficou o dono da livraria, que vendeu o canário por preço superior a um livro e ainda ficou livre da "barulheira" que lhe perturbava a senilidade.

Tereza, acostumada a aceitar sem discutir, recebeu o novo hospede com naturalidade, sem sequer indagar o porquê da mudança de princípios do marido. Nem tentou questioná-la. Arrumou o prego para pendurar a gaiola e ponto final. A própria ave encarregou-se, logo, de explicar tudo.

Ninguém ficava imune à sua magia. Não havia como resistir ao pequeno Sol! Realmente um campeão! A partir de então, houve mais luz naquela casa. Mais alegria! Mais aconchego. Era o centro do sistema. Planetas e satélites gravitavam-lhe ao redor.

— Olha o Sol se balançando ao poleiro! Olha lá.., está bebendo água. Tomando banho na tigela de areia! Que coisa linda! Como canta!

E Juma? Apesar de ser cão de raça, Juma fora achada na rua, abandonada, portadora de doença aparentemente incurável. Doença grave a requerer cuidados sérios, despesas altas, e, principalmente, muito amor. Nada disto lhe faltou. Livre da moléstia, a cadela transformou-se num belo exemplar da raça. E vários ''donos' apareceram de pronto. E se de pronto vieram, de pronto se foram, ao tomarem conhecimento da possível exigência de ressarcimento de despesas.

Findo o assédio, Juma foi integrada à família, para alegria de todos.

Um dia, a tragédia aconteceu. Juma foi o pivô da questão. Ou teria sido Sol? Ciúmes da Juma? Quem saberá? Talvez que a ruiva temperamental contasse alguns tapinhas carinhosos a menos, desde a chegada do canarinho. Talvez. Ou quem sabe se o chinelo que trazia na boca e entregava ao dono, quando chegava da Faculdade, não recebesse a mesma acolhida pronta, seguida de afagos. Raul, chegado, ia direto para a frente da gaiola. E Sol, todo exibido, saltava de poleiro a poleiro, batendo as asas, saudando alegremente a presença do dono. Ou teria sido apenas impulso instintivo? Irresistível, inevitável? O mais viável. Bicho é gente boa! Naquele dia de triste memória, quando a gaiola era limpa, tarefa exclusiva de Raul, a avezinha escapuliu e foi pousar na área externa, bem próximo a Juma, aparentemente adormecida. Um bote só! E Sol sumiu, para sempre, nas sombras. Berros, tapas, pontapés e muito desespero, antes que a cadela devolvesse á luz o corpinho masserado da pequena vítima, pescoço mole, quebrado, biquinho semi-aberto, mudo!

Houve "choro e ranger de dentes" naquele dia sombrio!

Sol morrera, deixando em seu lugar as sombras da saudade. Por sua vez Juma sofreu por muito tempo o repúdio do dono, sem que atinasse o porquê. Desistiu do transporte do pé de chinelo, não mais recebido com alegria. Não perdeu, contudo, o costume de deitar-se aos pés do jovem professor, sempre que se dispunha a preparar aulas ou corrigir provas.

Lutou, por algum tempo, contra a porta intencionalmente fechada, com arranhadelas, grunhidos e lamentosos latidos. 

Venceu! Sem carinhos, sem festas, cauda murcha, reconquistou o direito de deitar-se, desconsolada, junto aos pés que a haviam chutado, nada pedindo para si, a não ser a consolação de amar a quem não mais a amava. O amor não aceita limites! Juma, um dia, ousou mais, passando a língua morna na mão que se estendera quase até ela, num esboço de carinho abortado. Foi um choque para Raul a carícia morna de Juma. Um toque de amor que encontrou eco. Em resposta, coçou-lhe, de leve, a cabeça ruiva, onde brilhavam dois olhos tristes. Nada mais foi preciso. Um rio de ternura recalcada, saltou diques, atirando-se sobre Raul que, lambido da cabeça aos pés não reprimiu os afagos.

Um raio de sol entrou pela janela e veio brincar com eles.

Dependurada no teto, vazia, a gaiola deixou de ser estigma. Virou jardineira, abrigando plantas cujas folhas evadiam-se pelas grades, oferecendo beleza e perdão. Toque feminino encerrando a história.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.