E eu pensarei: Que bom, nem é preciso respirar
Cecília Meireles
Não fui ao teu enterro, Suave Amiga.
Os enterros, eliminei-os de minha vida para que possa lembrar vivos os meus mortos. Quando os vejo morrer, ou lhes velo os despojos, ou os acompanho em seu último e inútil passeio, eles se vão pouco a pouco fazendo imparticipantes; deixam-se frios e reservados como hóspedes de uma longínqua Marienbad. Sim, Suave Amiga, muito esnobes ficam os mortos para meu gosto. Prefiro pensá-los em viagem, capazes de inesperadamente surgir em minha imaginação, como sucediam no meu tempo; vivos itinerantes, sempre partindo e sempre de volta. Porque, assim como eu, todos os meus amigos viajam muito.
Em algum lugar andarás agora, Suave Amiga, algum Tibete ou algum Nepal, a te moveres entre templos, levada pelo ímã do teu olhar de prata. Em algum lugar estará acontecendo o teu silêncio, a tua sombra, a tua dúvida. Ora deves parar em doce postura para ouvir de algum velho monge fórmulas mágicas capazes de imobilizar o tempo, dar voz às rosas, transformar tudo em distância; ora ensimesmar-te diante de horizontes infinitos até a evaporação total da carne feita bruma, feita nuvem, feitá pólen lunar: bruma, nuvem, pólen lunar habitados por imensos olhos verdilúcidos a caminharem para a grande treva fluida esgarçada de véus brancos.
Suave Amiga, que saudade antiga... Saudade de quando entravas na sala de mesas toscas e, à tua chegada, nós nos iluminávamos; e o teu olhar fazia tudo verde, mas não verde-que-te-quero-verde: verde-conta, verde-cecília, cristal verde. Era Manuel Bandeira, cujo beijo deves ainda guardar na face fria; era Ribeiro Couto, que nunca mais vai voltar de Belgrado e era eu nos meus 28 anos, investindo com a lança do Silêncio contra os cavaleiros do Som, em combate cinematográfico desigual; éramos nós, teus poetas, e eras tu, poeta nosso, poeta-nuvem, poeta-gaivota a pescar na névoa de teu mar os peixes luminosos de teus versos. Era outro dia, era outra fábula. De mesmo só havia uma grande vontade de chorar.
Suave Amiga, que cantiga triste... Que triste história a não contar mais nunca, essa do tempo que passa, do teu vulto avançando na penumbra da sala para logo se perder, da luz de teu sorriso e da calma dos teus olhos sem paz... Não importa onde estejas agora, nos caminhos do Sinai tangendo estrelas, ou a dormir num aquário no fundo de um lago, a graça de teu vulto acompanha nossos passos. À noite, em silêncio, pensamos em ti, ó poeta-pássaro, e sentimos o roçagar inaudível de tuas asas. Um dia, quando menos esperares, estaremos a teu lado. E eu sei que, inclinando graciosamente o corpo sobre o abismo, vigiarás nossa escalada e, no último lance, nos darás a mão. E tu serás para nós, teus poetas, a adorável cicerone desse mundo sem som onde hoje vagas ao sabor da inexistência de tudo, na imensa disponibilidade de quem não tem para onde ir. E nós talvez possamos escrever no grande quadro-negro incolor do espaço, como alunos aplicados, as primeiras palavras inexistentes da poesia que não foi.
Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.
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