Ao ser convidado para padrinho de casamento, ia ponderar que há muito perdera a fé, não lhe ficava bem participar de ato religioso. O noivo cortou-lhe a objeção:
— Estou convidando você para padrinho do civil.
— Quer dizer: testemunha.
— É a mesma coisa.
Não era. Testemunha ele podia ser, sem nuvem na consciência. Padrinho, ao pé do altar, diante do padre e de Deus, era coisa mais grave, para a qual não se sentia credenciado.
— É em casa ou na Pretoria?
— É na sacristia, meia hora antes do religioso. O juiz agora vai à igreja, você sabia?
Não sabia; nunca soube nada antes dos outros, ou se sabe esquece logo.
— Se o juiz vai à igreja eu também vou, para casar você. É uma alegria para mim.
— Para mim, então!
— Uma honra.
— Deixa disso, a honra é toda minha.
— Bondade de você.
— De você.
— Vamos aos fatos. Você se casa simples ou solene, com aquele cerimonial todo?
— A coisa mais simples do mundo.
— Não vai ter fraque?
— Que fraque nem mané-fraque!
— Porque — vou ser franco —, se tiver fraque, eu…
— Era o que faltava, botar você de fraque na sacristia!
Deu uma olhada no terno escuro, mandou passá-lo na lavanderia, e estava inocente da vida, na noite de véspera do casamento, quando o noivo telefona:
— Queria dizer a você que o casamento civil não vai ser mais na sacristia. Agora é mais simples.
— Onde é então?
— No altar-mor.
— Complicou.
— Pelo contrário. O civil e o religioso são celebrados ao mesmo tempo.
— Não entendi. O padre e o juiz juntos, no altar?!
— Só o padre, mas ele casa pelos dois, para simplificar. Lavra dois termos, e um deles vai para o Registro Civil.
— Cada dia uma novidade.
— É mesmo. Sendo assim, você vai ficar com os outros padrinhos, ao lado do altar-mor.
— Bem, eu…
— Já sei, não é religioso. Mas também não vai me dizer que é ateu. Quem vai à sacristia não custa chegar até o altar. E depois, você é do civil.
— Está certo.
— Outra coisa. Os padrinhos de minha noiva chegaram de São Paulo e trouxeram fraques. Acham que assim fica melhor, mais distinto. Não estava nos meus planos, mas fico sem jeito de contrariá-los. Não digo que você também vista fraque, pode ir inteiramente a seu gosto, mas se quiser…
— Querer o quê, a uma hora dessas? Eu não tenho, nunca tive esse balandrau.
— Por isso não, que eu arranjei emprestados dois de seu corpo. São de amigos meus, pessoas magras, você experimenta, pode até combinar calça de um com fraque de outro, se der mais certo.
— Isso não. Para que incomodar pessoas que não conheço?
— Então vá como pretendia ir. Não tem problema. Apenas avisei porque se você preferisse ir como os paulistas…
Os paulistas! Passou a noite infeliz, pensando nos paulistas, ele mineiro fazendo feio ao lado dos paulistas, sempre os paulistas. Na manhã seguinte, cedinho, bateu para a Casa Rolas, salvação dos insuficientemente roupidos, e pediu um fraque.
— De colete branco ou de colete preto?
— Qual que acha melhor?
— O senhor é quem resolve.
— Resolva por mim.
— Uns preferem preto, outros branco.
— E então?
— Tanto faz ir com branco ou com preto.
— Vamos tirar a sorte com os dedos. Par é branco, ímpar é preto. Deu ímpar.
— Eu se fosse o senhor ia com branco. Usa mais.
(Os consultores são assim, só em último caso atendem à consulta.)
Pela primeira vez viu-se metido num fraque. As abas não estariam demasiado compridas? O colete, folgado em excesso? E o comprimento da calça? As listras não lhe davam um ar de zebra de dois rabos? Ó angústia indumental, ramo impressentido da velha angústia existencial que acompanha o homem do berço aos sete palmos! O empregado reanimou-o:
— Uma luva. Nem que fosse feito para o senhor.
A angústia recolheu-se, para reaparecer à tarde, ao aproximar-se a hora da entrega a domicílio do fraque alugado. Se não chegasse a tempo? E os paulistas, com seus negros fraques espetaculares? Ah, mundo cão! O portador explicou o atraso: tanta encomenda naquele dia, só num hotel em Copacabana entregara três fraques.
Entrou na igreja fazendo força por deixar patente que nascera de fraque e o usara a vida inteira, mas não estaria ainda mais patente a falsidade da pose? Era como se ostentasse à lapela a etiqueta com o nome da casa, o número da peça…
Fotografado, televisionado, alvo de olhares perscrutadores, não viu bem o casamento, não reparou na beleza da noiva nem no aplomb dos paulistas. Como se ele é que estivesse casando, e de certo modo estava: com o fraque.
— Você está bacanérrimo, está bárbaro de fraque! — disse-lhe o irmão do noivo, empolgado, à hora do champanhe. — Nem se compara com os outros padrinhos, que vieram diretamente do Rolas para o casamento.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.
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