segunda-feira, 15 de julho de 2019

Jeanette Beatriz Roszavolgyi (Canto do Cisne)

Fonte: www.pinterest.com
O barulho vinha de longe, insistente, ameaçando interromper o que estava prestes a acontecer. O homem, ignorando seus protestos, tentava tirar-lhes as roupas ao mesmo tempo em que com extrema suavidade a conduzia para a grande cama, móvel solitário naquele quarto desconhecido. Apesar de tudo, apesar de todos, ela não tinha mais forças para recuar. Na verdade, abandonara qualquer tentativa de rechaçá-lo e passara a colaborar, chegando mesmo a fazer compasso à urgência dele, O barulho foi se tornando cada vez mais próximo, mais penetrante, quase real. De súbito, ela abriu os olhos, sentou-se na cama, aturdida, ofegante, a camisola grudada ao corpo. Respirou fundo e, a contragosto, emergiu para sua realidade, que atualmente se resumia em prover a alimentação da família e a arrumação da casa.. A protagonista do romance tumultuado de anos atrás transformara-se em mera figurante. Dirigindo-se ao chuveiro, parou diante do espelho e fez um inventário perverso da imagem refletida. Nada do que via lembrava-lhe a outra, a mulher que já fora um dia, nem mesmo a beleza que o passar dos anos lhe trouxera, roubando talvez a precisão dos traços mas conferindo-lhe uma qualidade especial, de serena maturidade, a qual certamente não passaria desapercebida a olhos menos severos.

Durante o banho e o tempo em que se vestia, o sonho voltava-lhe fragmentado, à memória. Finalmente, desceu para preparar o café da manhã. O marido, interrompendo a leitura do jornal, olhou para o relógio numa admoestação muda, murmurou um bom dia e voltou às notícias. Os rapazes desceram as escadas num tropel, roçaram-lhe o rosto com beijos distraídos e sentaram-se à mesa, discutindo animadamente o jogo da véspera.

Enquanto fritava ovos e esmagava laranjas, evocava o sonho, revivendo suas sensações; entravam e saíam de quartos e salas vazias, ela e o homem, que a todo custo tentava seduzi-la. A princípio lutou contra as investidas mas, pouco a pouco, sentia sua resistência minar. Eis que estavam numa grande sala de paredes brancas, postados diante de uma lareira, de onde podiam divisar, por uma porta entreaberta, uma cama de casal. A noite ameaçava chegar e por mais que tentasse, ela não conseguia divisar seus traços. Sentia apenas que ele a fitava com intensidade, querendo-a, desejando-a, o que anulava o recato a que sempre se obrigara.

O cheiro de torradas queimadas aliado à reclamação uníssona da família foram a causa determinante de sua resolução. Assim que todos saíram, começou a arrumar a casa, tirar a louça do café, dobrar o jornal. Foi então que viu o anúncio de meia página da imobiliária. A ideia começou a tomar corpo. Por que não, afinal?

Munindo-se de coragem, discou o número que aparecia destacadamente no anúncio. Sim, queria ver um apartamento. Como? Três, não, quatro quartos, todos com suíte. Nos jardins, naturalmente. Disponibilidade financeira? Não saberia precisar, ou melhor, é um item que não precisaria ser levado em conta no momento, Quando  Pode ser hoje mesmo. Após o almoço. Combinado.

Passou toda a manhã em estado de pânico, estupefata com a própria audácia. Como fora capaz? Telefonaria e explicaria que tudo não passara de um engano, que mudara de ideia, um compromisso inesperado. Enquanto isso, as horas passavam inexoráveis. Sempre debatendo consigo própria, arrumou a casa com zelo excessivo, tomou outro banho, desta vez bem prolongado, fez uma refeição leve e começou a se arrumar. Pela segunda vez naquele dia deteve-se diante do espelho. O que fazer com as rugas debaixo dos olhos? E os fios brancos que teimavam em se evidenciar na cabeleira escura? Um pouco de corretivo, maquiagem leve, lápis, batom, a roupa deixando entrever as formas ainda desejáveis (seriam mesmo?) e finalmente, o perfume discreto.

Buzina. Olhou o relógio, o coração descompassado, desceu correndo e viu o Gol vermelho, velho, descuidado. Solícito, o homem a esperava fora do carro. Relativamente moço, cabelo escasseando, barriga um tanto protuberante, baixo.

Entraram e saíram de vários apartamentos, salas e quartos tão impessoais como o tratamento que de lhe dispensava, uma cerimônia à prova de qualquer aproximação. A princípio, ela tentara fazer-se notar não só como uma compradora em potencial, mas acabara por desistir, fechando-se na constatação dolorosa de que seu tempo passara.

Ao fim de algumas horas, quando já estavam pensando em desistir da procura, pararam diante de um prédio de aspecto gasto, mas que deixava entrever um ar de antiga beleza. Subiram. Na sala vazia, destacava-se a lareira de mármore, para a qual se dirigiram. Lá fora, o dia já terminava e os últimos raios de sol tingiam o céu de uma luz dourada, mergulhando o ambiente num clima quase irreal. Ao longe, soavam acordes de uma música nostálgica. Não disseram nada. Apenas se olharam. Naquele instante, ela lembrou, ansiosa, que em algum lugar deveria haver uma porta entreaberta, de onde se poderia divisar uma cama de casal.

Fonte:
Associação de Poetas e Escritores da Baixada Santista. V Antologia: A Lua e a Pena. Santos: Ed. Destaque, 1996.

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