segunda-feira, 29 de julho de 2019

Marina Colasanti (Um Espinho de Marfim)


Amanhecia o sol e lá estava o unicórnio pastando no jardim da Princesa. Por entre flores olhava a janela do quarto onde ela vinha cumprimentar o dia. Depois esperava vê-la no balcão, e, quando o pezinho pequeno pisava no primeiro degrau da escadaria descendo ao jardim, fugia o unicórnio para o escuro da floresta.

Um dia, indo o Rei de manhã cedo visitar a filha em seus aposentos, viu o unicórnio na moita de lírios.
 
 – Quero esse animal para mim.

E imediatamente ordenou a caçada.

Durante dias o Rei e seus cavaleiros caçaram o unicórnio nas florestas e nas campinas. Galopavam os cavalos, corriam os cães e, quando todos estavam certos de tê-lo encurralado, perdiam sua pista, confundiam-se no rastro.

Durante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor das fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do unicórnio.

Um dia, mais nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal da sua presença. E silêncio nas noites.

Desapontado, o rei ordenou a volta ao castelo.

E logo ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido. A princesa, penalizada com a derrota do pai, prometeu que dentro de três luas lhe daria o unicórnio de presente. Durante três noites trançou com os fios de seus cabelos uma rede de ouro. De manhã vigiava a moita de lírios do jardim. E no nascer do quarto dia, quando o sol encheu com a primeira luz os cálices brancos, ela lançou a rede aprisionando o unicórnio.

Preso nas malhas de ouro, olhava o unicórnio aquela que mais amava, agora sua dona, e que dele nada sabia.

A princesa aproximou-se. Que animal era aquele de olhos tão mansos retido pela artimanha de suas tranças? Veludo do pelo, lacre dos cascos, e desabrochando no meio da testa, espinho de marfim, o chifre único que apontava ao céu.

Doce língua de unicórnio lambeu a mão que o retinha. A princesa estremeceu, afrouxou os laços da rede, o unicórnio ergueu-se nas patas finas.

Quanto tempo demorou a princesa para conhecer o unicórnio? Quantos dias foram precisos para amá-lo?

Na maré das horas banhavam-se de orvalho, corriam com as borboletas, cavalgavam abraçados. Ou apenas conversavam em silêncio de amor, ela na grama, ele deitado a seus pés, esquecidos do prazo.

As três luas, porém já se esgotavam. Na noite antes da data marcada o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa. Desconfiado, olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o unicórnio que comia lírios tinha cheiro de flor, e escondido entre os vestidos da princesa confundia-se com os veludos, confundia-se com os perfumes.

Amanhã é o dia. Quero sua palavra cumprida, disse o rei - virei buscar o unicórnio ao cair do sol.

Saído o rei, as lágrimas da princesa deslizaram no pelo do unicórnio. Era preciso obedecer ao pai, era preciso manter a promessa. Salvar o amor era preciso. Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde, e a noite inteira cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma vez encheu de luz as corolas. E como no primeiro dia em que se haviam encontrado a princesa aproximou-se do unicórnio. E como no segundo dia olhou-o procurando o fundo dos seus olhos. E como no terceiro dia segurou- lhe a cabeça com as mãos. E nesse último dia aproximou a cabeça do seu peito, com suave força, com força de amor empurrando, cravando o espinho de marfim no coração, enfim florido.

Quando o rei veio em cobrança de promessa, foi isso que o sol morrente lhe entregou, a rosa de sangue e um feixe de lírios.

Fonte:
Marina Colasanti. Um espinho de marfim e outras histórias.

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