sábado, 13 de julho de 2019

Luiz Poeta (Racionalidade Animal)


O sinal toca. Os alunos saem numa natural algazarra. Vou junto com eles. Preciso colocar algumas cartas no correio num tempo inábil. É o último dia para a postagem. Quase corro. Tenho apenas meia hora para retomar de um percurso a pé de mais ou menos novecentos metros.

Isto feito, após receber o comprovante do envio dos envelopes, saio na mesma velocidade da vinda, mas levo um susto tremendo: deparo-me com um cão preto, de porte médio, parecendo bloquear a minha passagem.

O respeitável animal perscruta-me numa atitude solene.

Não há nele, nenhum tom ameaçador. Já não tenho medo, entretanto respeito-o. Os olhos amendoados parecem humanos. Fita-me por alguns segundos eternos, a língua de fora numa espécie de riso compartilhado, misturado num aparentemente tênue cansaço. Ando devagar, temendo ameaçá-lo involuntariamente.

Ele me segue.

Quando paro para um cumprimento eventual ou mesmo na intenção de observar um calçado em uma vitrine, ele também estaca. Parece conhecer-me há muito tempo.

Apresso-me. O cão me segue sem o mínimo pudor. 

Atravesso o túnel que liga os dois extremos do meu bairro abaixo da linha férrea. Desço e subo degraus de concreto, o cão, sem hesitar, ritma-se solidariamente a cada passada que 
dou. Estamos diante da avenida principal. O sinal fecha para os pedestres. Temo pelo bicho.

Alguns carros avançam ruidosamente. O sinal parece demorar uma eternidade para esverdear-se. Continuo com pressa. Preciso chegar à escola antes do toque da sirene que anuncia o término do recreio. Os próximos veículos estão a uns cem metros de mim. Entendo que há tempo suficiente para a travessia, mas tenho que correr. Contrariando as leis de trânsito, avanço cautelosa e rapidamente sem perder os carros de vista. Lembro-me do cão. Esqueci-me dele, todavia constato, aliviado, que não me acompanhou, ficou do outro lado, próximo a algumas pessoas atentas ao tráfego dos veículos.

O sinal se abre para os transeuntes. A exemplo das pessoas, o cão olha para ambos os lados, mira o semáforo, mostra-se seguro e atravessa calmamente o espaço que separa as duas calçadas. Sinto-me envergonhado.

O animal pára diante de mim numa pausa que parece criticar e ao mesmo tempo compreender o meu jeito encabulado de observá-lo e finalmente se afasta num último sorriso de língua de fora, ante a perplexidade de um educador... deseducado.

Reverencio-o taciturnamente, num silencioso pedido de desculpas expresso apenas por nossa última troca de olhares caninamente humana e humanamente animal.

Rio de mim para mim, questiono minha pseudo-soberania racional e constato, comovido, que tive uma canina aula de cidadania... animal.

(Crônica premiada em I" Lugar em concurso realizado pela União Brasileira de Escritores)

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Nenhum comentário: