terça-feira, 16 de julho de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Quadro na Parede)


— Esse quadro está torto desde o começo do mundo e ninguém se lembra de consertar sua posição — observou o sr. Borges, levantando a cabeça, entre o primeiro e o segundo goles do café da manhã.

— Há pessoas realmente exageradas — ponderou a sra. Borges, enquanto passava geleia no brioche. — Esse quadro está assim apenas há uma semana.

— Uma semana parece tempo suficiente para alguém corrigir a posição de um quadro na parede — retrucou o sr. Borges, sorvendo mais um gole e desdobrando o jornal.

— Admitindo-se que assim seja, embora a colocação de um objeto de arte exija muitas experiências e tempo indeterminado de observação e crítica, até que seja atingido o resultado ideal, presume-se que a pessoa não satisfeita com a posição de um quadro…

A sra. Borges fez uma pausa para levar aos lábios a fatia de brioche, mastigá-la e engoli-la, concluindo placidamente:

— … Tome a iniciativa de modificá-la para melhor.

Ao que o sr. Borges emitiu este juízo:

— A presunção envolve problema de competência — e olhou para um ponto indefinido no espaço. — Seria conveniente indagar, de início, a quem, no âmbito de uma residência, compete cuidar da boa arrumação das coisas.

A sra. Borges considerou com minuciosa atenção a colherzinha de prata colocada entre os seus dedos polegar e médio, como se ambicionasse descobrir nela uma propriedade oculta, e, ao cabo de minuto e meio, manifestou-se:

— Não existe código especificando os diferentes casos e situações em que determinada pessoa deva fazer isto ou aquilo. Além do mais, os conceitos estabelecidos lucrariam em ser revistos à luz da razão.

A página política passou a interessar tão acentuadamente o sr. Borges que ele levou tempo para dizer:

— De qualquer maneira, um quadro torto na parede é um quadro torto na parede.

Dos abismos da sua prospecção, a sra. Borges emergiu trazendo à tona uma restritiva:

— Um quadro torto na parede nem sempre é um quadro realmente torto na parede.

Como o sr. Borges, engolfado na leitura, não obtemperasse, a sra. Borges houve por bem desenvolver o seu ponto de vista:

— O quadro torto na parede pode estar mais certo do que o quadro convencionalmente certo na parede.

O sr. Borges não deu sinal de aceitar a tese da sra. Borges nem de repeli-la, e a explanação de sua esposa prosseguiu:

— Há muitas maneiras de ver um quadro, como também há muitas maneiras de colocá-lo, inclusive, e tem acontecido em museus, de cabeça para baixo, com rendimento óptico.

O sr. Borges virou a página, pigarreou e sentenciou:

— Nem todas as pessoas gostam de plantar bananeira para contemplar normalmente uma obra de arte.

O café da manhã parecia ter duração imprevisível, tão vagarosos eram os gestos e repetidas as pausas do sr. Borges e da sra. Borges. Ouviu-se, afinal, a sra. Borges:

— A colocação de um quadro não está subordinada às linhas geométricas previstas pelo pintor, podendo variar com a sensibilidade visual de quem o desfruta.

O argumento não pareceu impressionar o sr. Borges, a julgar pelo que saiu do seu interior:

— Nesse caso, os bens desfrutados em comum se sujeitariam a variações simultâneas e inconciliáveis, pela diversidade de gostos.

— Há gostos mais apurados e outros menos apurados — foi o comentário da sra. Borges.

— Indiscutivelmente, o quadro está torto, o que não é questão de gosto, mas questão de fato — e o sr. Borges alçou ligeiramente a voz. — E não há computadores para avaliação do gosto.

— Desde que ele ficou assim, ganhou um novo sentido — disse a sra. Borges, fixando o olhar, embevecidamente, no quadro em questão. — Foi a arrumadeira que o colocou nessa posição, e o efeito benéfico logo se fez sentir. Os volumes se equilibraram melhor, a composição ganhou mais força, o quadro comunica mais.

— As arrumadeiras tornaram-se peritas em belas-artes e deve ser-lhes confiada a direção dos museus, ao que parece — foi a glosa do sr. Borges. — Bom proveito a quem lhes seguir a orientação estética.

— Euclides, você está me ofendendo — irritou-se a sra. Borges.

— Você já me ofendera antes — contra-atacou o sr. Borges.

— Esta situação é intolerável, e eu exijo que você me peça desculpas — soluçou a sra. Borges.

— Não será melhor, Zuleica, entrarmos amanhã com a petição de desquite? — detonou o sr. Borges.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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