Carnaval. Noite de sábado — aquele apêndice agregado ao calendário, ampliador dos três dias programados para a folia.
Zulma, Carlão e Zico — trio escolhido para representar a tríade mais famosa das folias de Momo — Colombina, Pierrô e Arlequim. Noite quente, sem chuva. Ar parado. Noite de fevereiro, autêntica, prenunciadora das águas de março, próximas.
A moça acordara cedo. Banhada e perfumada, desenrolava os bobes, soltando as mechas de cabelos negros. A fantasia de Colombina, estendida na cama, descalçava, por antecipação, da refrega que teria de enfrentar, logo adiante.
— Tira a mão daí, menina. Vai vestir a tua borboleta azul.
E a caçula voou, sem asas, em busca das asas embrionárias, dobradas, ainda, na gaveta-crisálida.
Carlão e Zico. Um dilema a ser resolvido. Por ironia, os dois pretendentes ao coração da moça. assumiam figuras polêmicas que mais confundiam seus sentimentos, a impedir que chegasse a uma decisão, na vida real.
Zico ou Carlão. Arlequim ou Pierrô?
Carlão romântico, tímido, sem muita iniciativa, música de fundo, suave e transparente como bola de cristal. Pierrô autêntico, carente de carinho, despertando ternura e amor.
Zico. O oposto. Auto-suficiente, algo arrogante, narciso, dominador. Autêntico Arlequim, volúvel e imediatista, arrastando à paixão.
Perfeitos! Carlão nunca poderia ser um Arlequim. Zico, jamais um Pierrô!
Zulma sorriu para o espelho, enquanto pingava no canto direito da face uma pinta negra, que lhe emprestava a coqueteria indispensável à figura que encarnava.
Quando a Escola adentrou a av. Tiradentes, e o ritmo das baterias sacudiu as almas, Colombina estremeceu no alto da plataforma apoiando-se nas duas bengalas prateadas, fincadas como arrimo às suas evoluções. Delas dependiam, pelo menos, noventa por cento da sua segurança. Grande responsabilidade! Acarinhou-as com respeito.
Lá em baixo, um Pierrô de cara branca e triste, vestido de cetim azul celeste, com sua gola entiotada, abraçando o alaúde estilizado, propositadamente alongado e enfeitado de fitas. Uma lágrima de prata, brilhando na cara branca.
Do outro lado, exuberante Arlequim, exibindo o colante de losangos coloridos, máscara negra, sensual e misteriosa, e um sorriso amplo, absolutamente confiante de que sua presença agradava, sem exceções.
O eterno triângulo, vezes se conta, repetido dentro e fora do Carnaval!
Às tantas, não se sabe como, nem se sabe por quê, a frágil Colombina despencou do alto da plataforma, candidata a múltiplas fraturas e mesmo, quem sabe, a sucumbir face a qualquer delas!
A surpresa amarrou a todos. Estupefação! Nem mesmo a decantada auto-suficiência do Zico conseguiu vencer o estupor geral.
Surpresa maior, foi, no entanto, a providencial e presta atitude de um Pierrô apaixonado, conseguindo aparar nos braços, com força imprevista, o corpo da bela Colombina, aparentemente desacordada.
Ao abrir os olhos, Zulma encontrou outros dois olhos, ansiosos, iluminando uma cara branca. A lágrima de prata brilhava mais ainda, autenticada por outras que abriam sulcos na face alvaiada.
Carlão virou herói! E o coração de Zulma deixou de balançar, indeciso. Pendeu, definitivamente, para o lado certo!
Pela primeira vez, quem sabe, na turbulenta história do Carnaval, um Arlequim, fascinante e extrovertido, perdeu, fragorosamente, para um tímido e sonhador Pierrô!
Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
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