sábado, 13 de julho de 2019

Carolina Ramos (Da Cidade Grande)


Olhou em volta. Ninguém. O relógio, na boca do estômago, marcava tempo de fome. Hora do "rango". Encostou a "magrela" na parede. Olhou-a com enlevo de enamorado. Pintadinha de novo. Descaracterizada. Nem mesmo o arguto sherloquismo do antigo dono a reconheceria. Joia!

Descansou o traseiro na mesma parede. Ficou à espreita. Ou, como diria, "morou na paquera". O primeiro incauto aproximava-se. Gordo. Despreocupado. Paletó aberto, bem ao gosto da cintura rotunda. Bem ao gosto, também, dos amigos do alheio. O gordo parou no ponto do ônibus. Mão Leve sentiu a descarga compulsiva da adrenalina: — Já!

Como se chamava, na realidade, ninguém sabia. A pia batismal da malandragem alcunhara-o de Mão Leve. E, Mão Leve, ficara sendo.

Aproximou-se da vitima, como quem não quer nada:

— Tem um "fosfro" aí, amigo?

— Não... não tenho. Não fumo.

Diálogo curto. Suficiente para levar a termo o expediente. Dois dedos. Só dois dedos, ágeis e habilidosos, deram conta do serviço. Almoço garantido!

Sem carteira, o gordo emagreceu alguns gramas. Fácil!

Mão Leve conhecia a fundo a profissão. Por isso mesmo, eram seus o respeito e a admiração do bairro. Qualquer pivetezinho, com veleidades punguísticas, via nele um ídolo, um mestre, que dava até diploma, dependendo do feito... se bem feito! Nas horas de lazer, a roda fechava-se à sua volta. Gente jovem. Indócil por natureza. Estática, quando presa às fanfarronadas do malandro, na praça, que só não era o Pátio dos Milagres, porque sem bonecos, nem guizos. Vez ou outra, um velho camburão apontado ao longe, punha água na fervura e fim às aulas. Toda uma comunidade, hóspede em potencial de Febens e similares, se dispersava ou se descaracterizava como a "magrela" do pilantra.

Mão Leve, contudo, acabara por fazer escola. O bairro virara mesmo da pesada, E da pesada, mesmo!

Acariciou, por fora do bolso, a carteira gorda do gordo. Voltou para a bicicleta, sem demonstrar pressa. Cavalgou-a com arte e disparou, dobrando a esquina.

O peso, alternado sobre os pedais, energizava a fuga. Fuga estudada e programada com estilo. Cruzou velozmente a avenida, como água ladeira abaixo.

Quando o furgão apanhou-o, trazia em mente o filé mal passado, ilhado entre fritas, que teria no prato, daí a um nada.

Alheio à sangueira que esparramara, o furgão perdeu-se na distância.

Numa fração, mais rápida que a rápida ação dos próprios dedos, Mão Leve, que já perdera o filé com fritas, perdeu a bicicleta, agora esfolada e bastante amassada; perdeu o relógio, a gorda carteira do gordo... e tudo mais que seus bolsos guardavam.

Bairro da pesada! Alunos de primeira, honrando o mestre!

Um gaiato tripudiou, deixando sobre o corpo despojado, o bilhete: — ''Ei, Mestre... cadê meu diploma?"

Mão Leve, apesar das contusões, parecia sorrir… sem fome, sem bens e sem ambições. Absolutamente em paz!

Embuçada em névoa, a cidade grande acendeu as luzes, para enfrentar mais uma noite de vigília, de vícios e de violência!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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