Olhou, com pena, as mãos enrugadas e trêmulas... quanto haviam dado!
E quem se lembrava disso? Quanto carinho saído daquelas pobres e velhas mãos, tão operosas no passado, tão inúteis agora... Quanto carinho, quanto desvelo esquecido... e quanta ternura ainda poderiam dar! Mas, dar a quem? Ninguém... ninguém, mesmo, parecia interessado em sua ternura…
A solidão do seu quarto, chegava o eco da algazarra dos netos. O toca-discos, a pleno volume, violentava os ouvidos sensíveis, com a desesperante agressividade dos metais e das guitarras elétricas. Até as louças e cristais vibravam, dentro dos móveis, ao som, (som?!), do rock alucinante!
Com a palma das mãos, protegeu os ouvidos. Diziam que estava ficando surda. Como, surda, se não conseguia conviver com a metade do barulho que a maioria suportava?! Os demais, sim, seriam surdos, ou quase!
À penumbra, o pequenino quarto era como que uma sala de espera. Sala de espera do Paraíso... Reunira lá, tudo o que lhe restava de mais caro: — as fotos amareladas pelo tempo; os velhos lençóis de linho, bordados com monogramas, que não interessavam a ninguém; os livros que não mais lia e que os netos chamavam de água com açúcar; as agulhas de tricô, entortadas pelo uso, pelas quais haviam passado, ponto por ponto, os enxovalzinhos dos filhos, dos netos… chegariam aos bisnetos? Talvez... o neto mais velho já andava raspando o buço e ensaiando as primeiras investidas. Qualquer dia, não seria de estranhar se aparecesse em casa, com mulher e filho a tiracolo. Não é assim que andavam as coisas?
Passou as mãos pela cabeça branca, alisando, lentamente, os cabelos. Não olhou o espelho, fiel amigo das mulheres jovens, inimigo das maduras. As idosas, preferiam ignorá-lo. Melhor que não existisse. Sorte, é que a vista curta amenizava a obra nefasta do tempo. Deus é sábio! Vela os olhos dos velhinhos, de caso pensado, para que não vejam as maldades do mundo e, principalmente, para que sofram menos, ignorando a progressiva decadência.
Alisou novamente os cabelos. Gostava deles mais longos, presos num coque, como sempre usara, mas, fora convencida de que curtos eram mais práticos, mais higiênicos, menos trabalhosos de pentear. Encolheu os ombros, em concordância.
Abriu, cautelosa, a porta do quarto. Deu um passo à frente, tentando enfrentar a balbúrdia. Um bafo ardido de nicotina agrediu-lhe as narinas, avançando pelos brônquios calcificados, pela idade, e chegando aos pulmões indefesos. Tossiu, recuando. Através da fumarada, viu a neta que comandava o grupo. Como estava linda! Boa menina!
E a boa menina vendo a avó e acercou-se pressurosa:
— "Entra, vó, entra... fica no teu quarto, que a gente está dando uma festinha."
A velhinha tentou falar: — "Você está tão bonita..." mas, ninguém a ouvia. Já a neta, copo na mão, e sorriso nos lábios, girava noutra direção.
Sentiu saudades dos netos, quando ainda pequeninos. Anjinhos… verdadeiros anjinhos irrequietos e encaracolados! Anjos, desde a ternura dos carinhos, até a inocência das travessuras. Agora... ah! os jovens... tão frios… tão distantes... tão agressivos! Pareciam não ter, no seu mundo, um lugar para os velhos! Nem um cantinho sequer... e bastaria apenas um tiquinho de nada, onde coubessem migalhas de amor.
Fechou a porta com cuidado. Respirou mais fundo. Ao menos lá dentro, o ar era mais puro. Cheirava a talco. Velhos gostam de talco. Por isso, vivem ganhando caixas e caixas de talco, de presente. Ou será que, de tanto ganharem talco de presente, acabavam por gostar dele?
A tarde morria. Só a tarde?!
A noite chegava. Há muito, já a trazia dentro da alma. Não gostava da noite. À noite as saudades falavam tão alto, que a insônia vinha dialogar com elas. Abriu o álbum de retratos. Quantas vezes o folheara? Seria capaz de descrever cada página, foto por foto. Não conseguia lembrar-se, na maioria das vezes, de coisas recentes. Mas, naquele álbum, tudo era presente! A foto do casamento. Quanto lhe dizia! Ela, tão jovem, de pé. Ele, posudo, sentado. Por que, a noiva de pé e o noivo sentado? Ninguém tentara explicar. Costume da época. A foto lembrava amor. Será que o amor ainda existia? Tudo agora parecia tão estranho... tão esquisito... tão chocante!
A princípio, tentara questionar. Ninguém parecia ouvi-la. E se a ouviam, era pior: — "Lá vem a velha com palpites!" “Não enche, vó!"
Aprendera a calar. Aceitação? Melhor dizer: — comodismo.
Doía demais aquele: "Não enche, vó!" Aprendera a não "encher", para viver era paz.
"Deixa disso, vó!", ''Não faz aquilo, vó!", "Olha só o que a vó fez!" "Tomou o remédio, vó?" — "Vó", era apenas o que ouvia, a torto e a direito. Até parecia que não tinha nome! Mesmo os filhos, solidários aos netos, a chamavam "vó"! E até os estranhos! Só porque tinha a cabeça branca, os ombros curvos e arrastados os passos, tinha de ser a "vó" de todo o mundo?! Talvez houvesse um pouco de carinho escondido nessas duas letras. Então, não custava nada bisar esse carinho: — Vovó! — tão simples de se dizer, e, tão gostoso de se ouvir! A questão, é que gente jovem tem pressa... prefere os monossílabos e os adultos se aceleram? por imitação.
Só mesmo gente da sua idade a chamava pelo nome: "Dona Maria Adelaide." Tinha saudade de ser Dona Maria Adelaide! Onde andava a gente da sua idade? Nunca mais vira a "vó" do Renatinho... nem o "vô" da Selminha... como é que se chamavam? Como é? Essa história de "vô" e "vó" pega mesmo! Conteve-se: — "Se me pegam falando sozinha, vão dizer que estou mesmo caduca..."
Fechou o álbum de fotografias. Meu Deus, a história de uma vida! Da sua vida! História fragmentada de inúmeros capítulos. Já era hora de pingar o ponto final. Já era hora de encerrar o livro. Olhou a folhinha — 29 de junho, dia de São Pedro. O Santo das chaves, porteiro do céu. Pegou o terço. "Ave Maria, cheia de graça". "Que mundo sem graça, Maria, o de agora!"
Penitenciou-se: "Perdão, meu Deus, estou mudando o sentido das palavras..." Bebeu uma lágrima, sentindo gosto de sal.
Deixou interrompida a Ave Maria, e passou a falar com São Pedro:
"Meu Santo, abra a porta... por favor... não aguento mais esta sala de espera... sou Maria Adelaide, sabe? Deixe-me entrar... Olhe, São Pedro, sou só uma "vó"... uma velha "vó", cansada de viver... só quero um cantinho, "pequenininho", pode ser até menor que o meu quarto... com muitos anjinhos por perto e que caiba nele um tiquinho de amor..."
Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
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