sábado, 27 de julho de 2019

Alexandre Herculano (Eurico, o Presbítero)


Eurico, o Presbítero é um romance histórico de Alexandre Herculano datado de 1844. Conta a triste história de amor entre Hermengarda e Eurico. A história se passa no início do século VIII na Espanha Visigótica. Eurico e Teodomiro são amigos e lutam juntos com Vitiza (imperador da Espanha) contra os “montanheses rebeldes e contra os francos, seus aliados”.

Depois desse bem sucedido combate, Eurico pede ao Duque de Fávila a mão de sua filha, Hermengarda, em casamento. No entanto, Fávila ao saber da intenção de Eurico e, sabendo ainda que esse era um homem de origem humilde, recusa o pedido de Eurico. Certo de que sua amada também o repelia, o jovem entrega-se ao sacerdócio, sendo ordenado como o presbítero de Carteia.

A vida de Eurico então resume-se às suas funções religiosas e à composição de poemas e hinos religiosos, tarefas essas que ocupavam sua mente, afastando-se das lembranças de Hermengarda. Essa rotina só é quebrada quando ele descobre que os árabes, liderados por Tarrique, invadem a Península Ibérica. Então Eurico toma para si a responsabilidade de combater o avanço árabe. Inicialmente, alerta seu amigo Teodomiro e, posteriormente, já adiante da invasão, o Presbítero de Cartéia transforma-se no enigmático Cavaleiro Negro.

Eurico, ou melhor, o Cavaleiro Negro luta de maneira heroica para defender o solo espanhol. Devido a seu ímpeto, ganha a admiração dos Godos e lhes dá força para combater os invasores. Quando o domínio da batalha parece inclinar-se para os Godos, Sisibuto e Ebas, os filhos do Imperador Vitiza, traem o povo Godo com a intenção de assumir o trono. Assim o domínio do combate volta a ser árabe. Logo em seguida Roderico, rei do Godos, morre no campo de batalha e Teodomiro para a liderar o povo. Nesse meio tempo, os árabes atacam o Mosteiro da Virgem Dolosa e raptam Hermengarda. O Cavaleiro Negro e uns poucos guerreiros conseguem salvá-la quando o “amir” estava prestes a profaná-la.

Durante a fuga, Hermengarda, foi levada desmaiada às montanhas das Astúrias, onde Pelágio, seu irmão, está refugiado. Nesse momento, essas montanhas são o único e verdadeiro refúgio da independência Goda, uma vez que, depois de uma luta terrível contra os campos da Bética, que lhe pertenciam, continuariam em seu poder.

Em segurança, na gruta Covadonga, Hermengarda depara-se com Eurico e, enfim, pôde declarar seu amor. No entanto, Eurico revela a ela que o Presbítero de Carteia e o Cavaleiro Negro são a mesma pessoa. Ao saber disso, Hermengarda perde a razão e Eurico, convicto e ciente das suas obrigações religiosas, parte para um combate suicida contra os árabes.

ANÁLISE CRÍTICA

O romance de 1844, que retrata o início do século VIII ou momento da invasão da Península pelos árabes é considerado, dentre os romances de Herculano, o que menos se prendeu ao rigor historicista, devido à utilização de uma maior liberdade imaginativa e talvez porque a época enfocada fosse pouco documentada.

A obra tem o caráter grandioso de uma “canção de gesta” e situa-se na passagem da epopeia para o romance histórico. A psicologia não podia ser analisada porque as personagens, sobretudo Eurico, desenham-se num módulo acima do humano, quase semi-deuses, como os heróis de Homero, e praticam feitos inverossímeis: o Cavaleiro Negro, na batalha de Criso, a passagem da Sália, o episódio da abadessa do Mosteiro. Vultos agigantados em matéria épica e que é preciso manter na bruma e no prestígio de grandes acontecimentos do passado longínquo.

O estilo da obra ergue-se ao tom solene do dizer profético, não só porque a ação era de calamidades, de castigos e de desfechos providencias como nível dos acontecimentos se situa a uma altura que excede o módulo vulgar do viver. Estilo portanto, sintético e embalado em onda rítmica, sem corte incisivo e minucioso da análise.

O conflito amoroso se dá a partir do amor desigual, contrariado pelo pai de Hermengarda, Fávila, Duque de Cantábria, possuidor de status social e bens materiais à verdadeira nobreza do outro, Eurico, que é poeta e mais puramente apaixonado. A sociedade, mais uma vez, desconhece o mérito autêntico e cria uma vítima que, daí em diante, saboreará na solidão o orgulho da sua própria tristeza. É este, no fundo, o sentido dos primeiros capítulos do livro:

Lá, no tumulto dos cortesões, onde o amor é cálculo de um sentimento grosseiro, terás achado quem te chame sua, quem te aperte entre os braços, quem tivesse para dar ao teu pai o preço do teu corpo e te comprasse como alfaia preciosa para serviço doméstico. O velho estará contente, porque trocou sua filha por ouro. ( p.35)

Com isso, Eurico vê-se “obrigado” a seguir, não sendo para um bem maior, o sacerdócio, isto é, reduz-se a despeito suicida, fruto e expressão do fracasso amoroso. Procura-se assim, uma espécie de morte mais elegante e sensacional, com o prestígio dos martírios ocultos que, por outro lado, se fazem discretamente adivinhar aos olhos dos homens.

De fato, Herculano vicia toda sua tese pela hipótese que lhe está subjacente: Eurico não abraça o sacerdócio e o celibato por vocação, mas à boa maneira romântica, como refúgio ou evasão para a sua frustração no casamento que projeta com Hermengarda. Daí constitua para ele, uma “amputação espiritual” e uma ”solidão irremediável”. Totalmente diferente da visão que a Igreja possui do sacerdócio e do celibato; uma visão sobrenaturalista, à luz da fé, sendo que, só aqueles a quem o dom da fé leva a ver com uma outra luz, e isso, só tem sentido para as pessoas possuidoras da verdadeira vocação a servir Deus a missão que lhes fora chamados.

A solidão de Eurico é paralela a do romancista Herculano, e ambas provocadas pela persuasão do homem superior e incompreendido. Um e outro confundem solidão com a vida interior e riqueza moral, assim, um e outro se suicidam, um na batalha, outro em Vale de Lobos. A mesma linha de individualismo estoico, falho da dulcificação do amor incansável. Nos conflitos, a ausência de perdão; nas crises, ausência de remédio.

O espaço físico é notável quando é descrito o enredo concentrado na Península Ibérica, a baía de Carteia, a Ilha Verde, os vales, as margens de Crissus onde ocorrem as batalhas, etc. Há também aqueles espaços fechados como a caverna, o mosteiro, as tendas dos árabes, o presbítero entre outros.

Tratando-se do espaço social, devido aos conflitos civis e religiosos entre cristãos, godos e muçulmanos, era caracterizado por valores nobres como o patriotismo ao extremo, a busca da liberdade , o heroísmo, etc.

É importante esclarecer, na obra, alguns pontos em ralação ao tempo da narração e da narrativa. O primeiro refere-se ao século XIX em 1844, enquanto que o segundo refere-se à época da Idade Média, no início do século VIII, isso é perfeitamente comprovado pelas informações históricas e por datas citadas pelo autor no início de alguns capítulos.

Dentro da obra o tempo é cronológico e psicológico, sendo que aquele é predominante. Isso é perceptível nos momentos em que o narrador revela uma sucessão cronológica com advérbios de valor temporal e/ou marca datas em alguns capítulos: “Presbítero. Antemanhã. Oito dos idos de abril da era de 749.” (p 28). E a presença do tempo psicológico é em função das vivências subjetivas das personagens, como mostra o trecho a seguir:

Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se vê grande e forte, porque sem horror derrama em suas lutas civis o sangue de seus irmãos. (p 22)

Na obra, há a presença dos discursos direto e indireto livre, porém o discurso direto é predominante. O narrador faz uso de uma linguagem culta enriquecendo-a com o emprego de muitas figuras de linguagem. Dentre as quais, podemos perceber a comparação no seguinte trecho:

Hoje, a cobiça assentou-se no lugar da equidade: o juiz vende a consciência no mercado dos poderosos, como as mulheres de Babilônia vendiam a pudicícia nas praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia. (p 30)

Os protagonistas são Eurico e Hermengarda, ambas personagens planas, pois não sofrem transformações drásticas e não surpreendem o leitor na diegese.

Quando Eurico, personagem-título, se evade, no sacerdócio seu caráter e sentimentos não mudam, ou seja, continua a ser o eterno apaixonado por Hermengarda, “A nova existência de Eurico tinha modificado, porém não destruído, o seu brilhante caráter.” (p. 24) A personagem não muda fisicamente, apenas se esconde atrás da estringe e da armadura.

Quando aparece como rude cavaleiro negro, sua intenção é defender a fé cristã. Apenas deixar fluir sua revolta com o mundo, isto é, não perde a sensibilidade, o pessimismo, amargura e a melancolia, que marcam a personagem do começo ao fim da narrativa, tratando-se das características do romantismo, pois é consequência da frustração e da impossibilidade de realização do amor, como “Era este o canto doloroso e tétrico, o qual lhe transudava o coração em noites não dormidas.”, e ”Por que te havia eu de amar, se tu nos chamas a realidade é tão triste?” (p. 39), e ainda, “Oh, quantas vezes esse pensamento repugnante me tem feito vaguear louco pelas montanhas, uivando como o lobo esfaimado e tentando despedaçar os rochedos com as mãos, donde me goteja o sangue!” (p. 45)

A visão que o narrador tem da personagem, Eurico, é de admiração e compaixão. Intensifica o sofrimento e destaca seu caráter de homem superior, poeta, piedoso, puro de alma, romântico e apaixonado, íntegro, patriota ao extremo e capaz de realizar grandes atos heroicos, o que faz o protagonista herói: “Eurico era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las.” (p. 23) e “Mas Eurico era como um anjo tutelas dos amargurados. Nunca sua mão benéfica deixou de estender-se para p lugar onde a aflição se assentava” (p. 26)
 
Hermengarda é uma personificação da mulher do Romantismo, idealizada, pura, casta, ingênua, pálida e recatada. Totalmente submissa, a donzela frágil e indefesa não tem forças para lutar contra seu pai pelo seu amor.

O narrador vê na personagem o motivo que leva Eurico a se consagrar como herói ao salvá-la dos bárbaros e ultrapassar a ponte romana.

Não é tratada pelo narrador com tanta benevolência como Eurico, pois a chama de desdita e ingrata, mas deixa claro que também se compadece do seu sofrimento, ao intensificar o remorso e a vontade de morrer no solilóquio. Como percebemos nos seguintes fragmentos, “A ingratidão de Hermengarda, que parecia ceder em resistência à vontade de seu pai.” (p. 18), “_Sempre ele! Sempre esta visão de remorso!” (p. 166) e “...Bem longo e atroz tem sido meu martírio, porque ainda não achei no mundo alma com quem me fosse dado repartir o cálix do infortúnio... Se vivesses, seria tua, tua esposa, tua escrava...” (p. 166)

Como antagonista surge no enredo Fávila, homem ambicioso, orgulhoso e dominador. Já as demais personagens aparecem secundariamente na diegese: Pelágio, filho de Fávila, irmão de Hermengarda e amigo de Eurico. Liderou a resistência goda com persistência quando muitos já estavam desanimados e conquistou admiradores e seguidores fiéis. O apelo nacionalista é presente nas atitudes heroicas e corajosas desse grande líder godo. Teodomiro: duque de Córduba e amigo de Eurico, continua em combate enquanto os godos fogem. Roderico: Rei dos godos que morre na luta contra os árabes. Juliano: Conde de Septum e traidor do povo godo. Opas: Bispo de Híspalis e traidor do povo godo. Tárique e Obdulaziz: Líderes árabes. Antanagildo: Guerreiro godo. Muguite: Amir da cavalaria árabe, guerreiro que matou Eurico. Cremilda: Abadessa do mosteiro, sacrifica as virgens, pois prefere o martírio a ser violentada pelos árabes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eurico, o Presbítero, apesar de ser pertencente ao Romantismo, traz características diferenciadas das que estamos acostumadas nessa estética, tornando-a não muito envolvente, pelo fato de a mesma estar mais ligada ao contexto histórico do que à história amorosa dos protagonistas (Eurico e Hermengarda).

A trama amorosa, fundamental para a estética romântica, fica sem a devida atenção, servindo como pano de fundo na obra. O romance do casal é somente um pretexto com fins historicistas (caráter central do autor – bastante evidenciado na obra), sendo que é rico de fatos, de dados verossímeis em que a informação histórica é excedente tornando-se cansativa (isso acontece, também, porque a ação se desenvolve de forma muito lenta), enquanto a intriga novelesca passa despercebida entre os fatos consideráveis relevantes na obra.

Apesar de a narrativa em si não ser muito prazerosa e envolvente, como costumam ser os romances, não deixa de ser construtiva e enriquecedora, pois trabalha aspectos de uma cultura diferenciada e através dela conhecemos um pouco mais da história mundial, dos valores morais que cercam o ser humano e os conflitos dele decorrentes, bem como os valores à Pátria, aos costumes, à religião, dentre outros. Portanto, a obra é para quem, antes de tudo, tem afinidade com a história e pretende enriquecer seus conhecimentos.

Fonte:
Acadêmicos do Curso de Letras – UFPA – Campus de Bragança
Disponível no Blog do Prof. Robson Melo

Nenhum comentário: