Tinha dois amores. Aliás, três, se somada a mulher miúda, clara, trabalhadeira, espalhando plantas e flores por toda a casa. Viviam todos no mesmo lar, sem complicações, em plena harmonia.
Os outros dois amores pertenciam, um, ao sexo feminino, o outro, ao masculino. Não, nada de alarmar. E quem pensou em filhos, também errou. O casal jovem ainda não os encomendara. Então, quem eram esses dois amores? Pois, um era a Juma, ruiva, olhos lânguidos, sempre fidalgamente bem penteada. O outro, frágil, lindo, exuberantemente alegre, dotado de voz privilegiada que a todos encantava. Uma cadela setter, pelo avermelhado, e um loiro canarinho cantador — os outros dois amores de Raul, marido de Tereza.
Havia ainda, uns três ou quatros gatos, hospedes bissextos, descompromissados com a casa, que apareciam quando lhes dava na telha. Mas, era inegavelmente, Sol, o canarinho cantador, que enchia de alegria o lar, conquistando, com sua graça, as boas graças da pequena família. Despertava ao despertar o sol, justificando o nome. Iniciada a função matinal, ninguém mais dormia! E, sem função, os despertadores perderam o emprego. Loiro como pé de ipê em tempos de primavera, biquinho sempre aberto, trinava a plenos pulmões o canarinho, expandindo seu canto ensolarado, ainda que chovesse. Canto vibrante de amor à vida!
O que ninguém entendia é como, Raul, que sempre, ostensivamente se opusera aos que mantinham aves em cativeiro, agora, sem mais nem menos, gabava os méritos do canarinho cativo. E defendia-se com os mesmos argumentos que antes contestava! Se outrora enfatizava:
— As aves nasceram para ser livres. Mais livres do que qualquer outro ser! Já nasceram com asas! Para voar. Para irem aonde quiserem. Sem ninguém para impedi-las. São donas do espaço. Se conseguimos voar, fabricando asas de aço, é porque somos invasores. O chão é nosso. O azul só delas! Prender uma ave, é condená-la sem culpas. Patati-pa-tatá, seguia, intransigente, nessa linha. Convicto de suas verdades. E, de repente, lá estava ele, fascinado, a defender a facção oposta, com a mesma convicção! E, com a mesma eloquência, justificava-se:
– O "bichinho" já nasceu na gaiola. Soltá-lo é matá-lo! Não sabe enfrentar o mundo lá fora! Qualquer gatinho neném faz dele um camundongo temperado para almoço. Coitadinho! Aqui, tem tudo de graça! Não precisa nem lutar pela subsistência. Falta-lhe apenas uma companheira. Logo vou tratar disso, etc, etc.,.
Antes do fim do discurso, todo o mundo adivinhava que Raul estava absolutamente apaixonado pelo canarinho cantador! Começara assim: — Todos os dias, antes das aulas, passava pela pequena livraria do Simon, para vasculhar, descontraidamente, as prateleiras e os escaninhos, à procura de um novo livro, ou de um livro velho ou, sabe-se lá o quê lhe pudesse prender o interesse. Questão de rotina. Um dia, despertou-lhe a atenção o canto mavioso que vinha do interior. Espetacular! Isto acontecera algumas vezes. Até que se decidira a indagar:
— Seu Simon, posso ver de perto esse canário? Como canta!
— Pois não, lá está ele. Foi presente do meu neto. Tem raça. Raça demais! Canta, canta, e canta, que até chega a me incomodar! Coisas de velho. Meus ouvidos não se dão bem com essa cantoria toda, dia após dia. Nem consigo pensar! Já quase o devolvi ao neto.
Pararam ao pé da gaiola. O canarinho belga calou-se tão logo percebeu gente estranha nas paragens. Raul, enamorado, achegou-se mais um pouco. A avezinha grudou nele o olho irrequieto, conquistando-o, definitivamente, com pio significativo que, para Raul, soou como convite: — Me leva pra casa?
— Eu compro! Seu Simon, me venda o canarinho. Faça preço.
— E que preço vou fazer? Nunca vendi canário nenhum! Nem sei quanto custa. Meu neto é que cuida disso. Faz criação. Eu não entendo nada de nada, além de livros, revistas e jornais.
— Olhe. Dou tudo o que tiver nos bolsos — insistiu Raul.
Sabendo não arriscar demasiado, esvaziou as algibeiras. Por oitenta mil, levou o canarinho para casa. Feliz! Não menos feliz, ficou o dono da livraria, que vendeu o canário por preço superior a um livro e ainda ficou livre da "barulheira" que lhe perturbava a senilidade.
Tereza, acostumada a aceitar sem discutir, recebeu o novo hospede com naturalidade, sem sequer indagar o porquê da mudança de princípios do marido. Nem tentou questioná-la. Arrumou o prego para pendurar a gaiola e ponto final. A própria ave encarregou-se, logo, de explicar tudo.
Ninguém ficava imune à sua magia. Não havia como resistir ao pequeno Sol! Realmente um campeão! A partir de então, houve mais luz naquela casa. Mais alegria! Mais aconchego. Era o centro do sistema. Planetas e satélites gravitavam-lhe ao redor.
— Olha o Sol se balançando ao poleiro! Olha lá.., está bebendo água. Tomando banho na tigela de areia! Que coisa linda! Como canta!
E Juma? Apesar de ser cão de raça, Juma fora achada na rua, abandonada, portadora de doença aparentemente incurável. Doença grave a requerer cuidados sérios, despesas altas, e, principalmente, muito amor. Nada disto lhe faltou. Livre da moléstia, a cadela transformou-se num belo exemplar da raça. E vários ''donos' apareceram de pronto. E se de pronto vieram, de pronto se foram, ao tomarem conhecimento da possível exigência de ressarcimento de despesas.
Findo o assédio, Juma foi integrada à família, para alegria de todos.
Um dia, a tragédia aconteceu. Juma foi o pivô da questão. Ou teria sido Sol? Ciúmes da Juma? Quem saberá? Talvez que a ruiva temperamental contasse alguns tapinhas carinhosos a menos, desde a chegada do canarinho. Talvez. Ou quem sabe se o chinelo que trazia na boca e entregava ao dono, quando chegava da Faculdade, não recebesse a mesma acolhida pronta, seguida de afagos. Raul, chegado, ia direto para a frente da gaiola. E Sol, todo exibido, saltava de poleiro a poleiro, batendo as asas, saudando alegremente a presença do dono. Ou teria sido apenas impulso instintivo? Irresistível, inevitável? O mais viável. Bicho é gente boa! Naquele dia de triste memória, quando a gaiola era limpa, tarefa exclusiva de Raul, a avezinha escapuliu e foi pousar na área externa, bem próximo a Juma, aparentemente adormecida. Um bote só! E Sol sumiu, para sempre, nas sombras. Berros, tapas, pontapés e muito desespero, antes que a cadela devolvesse á luz o corpinho masserado da pequena vítima, pescoço mole, quebrado, biquinho semi-aberto, mudo!
Houve "choro e ranger de dentes" naquele dia sombrio!
Sol morrera, deixando em seu lugar as sombras da saudade. Por sua vez Juma sofreu por muito tempo o repúdio do dono, sem que atinasse o porquê. Desistiu do transporte do pé de chinelo, não mais recebido com alegria. Não perdeu, contudo, o costume de deitar-se aos pés do jovem professor, sempre que se dispunha a preparar aulas ou corrigir provas.
Lutou, por algum tempo, contra a porta intencionalmente fechada, com arranhadelas, grunhidos e lamentosos latidos.
Venceu! Sem carinhos, sem festas, cauda murcha, reconquistou o direito de deitar-se, desconsolada, junto aos pés que a haviam chutado, nada pedindo para si, a não ser a consolação de amar a quem não mais a amava. O amor não aceita limites! Juma, um dia, ousou mais, passando a língua morna na mão que se estendera quase até ela, num esboço de carinho abortado. Foi um choque para Raul a carícia morna de Juma. Um toque de amor que encontrou eco. Em resposta, coçou-lhe, de leve, a cabeça ruiva, onde brilhavam dois olhos tristes. Nada mais foi preciso. Um rio de ternura recalcada, saltou diques, atirando-se sobre Raul que, lambido da cabeça aos pés não reprimiu os afagos.
Um raio de sol entrou pela janela e veio brincar com eles.
Dependurada no teto, vazia, a gaiola deixou de ser estigma. Virou jardineira, abrigando plantas cujas folhas evadiam-se pelas grades, oferecendo beleza e perdão. Toque feminino encerrando a história.
Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
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