quarta-feira, 19 de junho de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Justiceiro)


Mercadinho é imagem de confusão organizada. Todos comprando tudo ao mesmo tempo em corredores estreitos, carrinhos e pirâmides de coisas se comprimindo, apalpamento, cheiração e análise visual de gêneros pelas madamas, e, a dominar o vozerio, o metralhar contínuo das registradoras. Um olho visível, múltiplo e implacável, controla os menores movimentos da freguesia, devassa o mistério de bolsas e bolsos, quem sabe se até o pensamento. Parece o caos; contudo nada escapa à fiscalização. Aquela velhinha estrangeira, por exemplo, foi desmascarada.

— A senhora não pagou a dúzia de ovos quebrados.

— Paguei.

Antes que o leitor suponha ter a velhinha quebrado uma dúzia de ovos, explico que eles estão à venda assim mesmo, trincados. Por isso são mais baratos, e muita gente os prefere; casca é embalagem. A senhora ia pagar a dúzia de ovos perfeitos, comprada depois; mas e os quebrados, que ela comprara antes?

A velhinha se zanga e xinga em ótimo português-carioca o rapaz da caixa. O qual lhe responde boas, no mesmo idioma, frisando que gringo nenhum viria lá de sua terra da peste para dar prejuízo no Brasil, que ele estava ali para defender nosso torrão contra piratas da estranja. A mulher, fula de indignação, foi perdendo a voz. Caixeiros acorreram, tomando posição em defesa da pátria ultrajada na pessoa do colega; entre eles, alguns portugueses. A freguesia fez bolo. O mercadinho parou.

Eis que irrompe o tarzã de calção de banho ainda rorejante e berra para o caixa:

— Para com isso, que eu não conheço essa dona mas vê-se pela cara que é distinta.

— Distinta? Roubou cem cruzeiros* à casa e insultou a gente feito uma danada.

— Roubou coisa nenhuma, e o que ela disse de você eu não ouvi mas subscrevo. O que você é, é um calhorda e quer fazer média com o patrão à custa de uma pobre mulher.

O outro ia revidar à altura, mas o tarzã não era de cinema, era de verdade, o que aliás não escapou à percepção de nenhum dos presentes. De modo que enquanto uns socorriam a velhinha, que desmaiava, outros passavam a apoiá-la moralmente, querendo arrebentar aquela joça. O partido nacionalista acoelhou-se. Foram tratando de cerrar as portas, para evitar a repetição do saque de Caxias. Quem estava lá dentro que morresse de calor; enquanto não viessem a radiopatrulha e a ambulância, a questão dos ovos ficava em suspenso.

— Ah, é? — disse o vingador. — Pois eu pago os cem cruzeiros pelos ovos mas você tem de engolir a nota.

Tirou-a do bolso do calção, fez uma bolinha, puxou para baixo, com dedos de ferro, o queixo do caixa, e meteu-lhe o dinheiro na boca.

Assistência deslumbrada, em silêncio admiracional. Não é todos os dias que se vê engolir dinheiro. O caixa começou a mastigar, branco, nauseado, engasgado.

Uma voz veio do setor de ovos:

— Ela não roubou mesmo não! Olha o dinheiro embaixo do pacote!

Outras vozes se altearam: — Engole mais os outros cem! — Os ovos também! — Salafra — Isso! — Aquilo!

A onda era tamanha que o tarzã, instrumento da justiça divina, teve de restabelecer o equilíbrio.

— Espera aí. Este aqui já pagou. Agora vocês é que vão engolir tudo, se maltratarem este rapaz.
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* Esta historinha foi escrita antes de 1967, quando mil cruzeiros passaram a valer um.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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