sábado, 8 de junho de 2019

Carolina Ramos (Canzarrão)


Aconteceu em Seriema. A cidade existe? Se de fato existir, substitua-a por outra qualquer, não localizável em mapa. A personagem deste conto pertence ao imaginário, ao mundo puro e extremamente amplo das crianças, sem fronteiras, sem pátria definida.

Não era à toa que o chamavam Canzarrão, ou Cachorrão, como preferia a meninada.

Muita coisa em seu aspecto físico contribuía para isso: — o corpo atarracado, as pernas arqueadas muito particularmente, as bochechas flácidas, puxadas para baixo pela força da gravidade e pelo peso das banhas que lhe "abuldoguezavara" as faces, sugerindo comparações. A articulação cruzada, dos maxilares, acentuava mais a semelhança, aproximando-os das mandíbulas possantes de um cão feroz.

Daí a ser chamado Canzarrão, nada mais que um passo. 

Tudo não passava, no entanto, de mera aparência. No íntimo, batia, no peito do velho, um coração passivo, tão meigo quanto ao de um totó de estimação, pronto a fazer festa ao menor sinal de afetividade. Não fazia mal a ninguém! Não passava de um tipo popular, absolutamente inofensivo, como tantos outros, e que gostava de contar histórias. Por isso mesmo, vivia sempre rodeado de crianças. 

Vez ou outra, apareciam os mais preconceituosos que, sem melhor o conhecer, deixavam-se ficar à distância, temerosos da exótica figura. Assim mesmo, por pouco tempo. Ressabiados, chegavam-se, pouco a pouco, e o número de ouvintes crescia,

Toninho foi dos mais arredios. Quando o tio, beberrão  inveterado, o trouxe para Seriema, o menino descobriu, por acaso, o ponto de encontro de Canzarrão e da garotada, aos sábados, no jardim fronteiro à Matriz.

Manteve-se à distância, desconfiado, como gato arisco.

O velho "bulldog" esticando o pescoço viu-o de longe, sem exteriorizar qualquer estímulo que o induzisse à aproximação. O tempo é que deveria agir, despertando a confiança.

Cada semana, o menino chegava mais perto, até que, afinal, enturmou-se.

Os olhos do velho, encontrando os do menino, pareceram sorrir, sem que as bochechas flácidas sofressem qualquer alteração. Inflando os pulmões, rosnou, então, latindo rouco: guau... guau…

Assustado, o menino recuou, sentido-se repelido. Logo, entendeu que o latido nada tinha de hostil, sendo a maneira mais cordial e simpática do Cachorrão dizer a um recém-chegado: — Bem-vindo!

Jamais trocaram palavra, mas, um elo tácito de amizade estabeleceu-se entre as almas do garoto e do velho contador de histórias.

Toninho voltou para casa, na certeza de ter encontrado um verdadeiro amigo. O coração vazio, ocupado apenas num canto, pelo tio sisudo, único membro da família que lhe restava, vinha agora transbordante de afeto. Passou a ser dos mais assíduos aos encontros dos sábados, que acabaram por se repetir nas quartas.

Traiçoeiro, o tempo passa depressa. E, para os velhos, embora os ponteiros pareçam arrastar-se, correm mais rápido do que para os jovens.

O enterro de Canzarrão foi feito pela Prefeitura. O caixão, coberto de flores, acompanhado, em silêncio, por um sem números de crianças desoladas.

Toninho foi dos últimos a abandonar o Campo Santo. Deixou entre as flores um bilhete escrito em letra gorda e irregular:

"Amigo — tenho saudade das suas histórias... quero ser igualzinho a você, quando crescer."

Tentou latir, baixinho, em despedida. A garganta apertada, só lhe permitiu um soluço magoado. Protesto de cachorrinho choramingas agora tristonho… agora sem dono.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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