quarta-feira, 26 de junho de 2019

Carolina Ramos (Eulália Só...)


Trouxa de roupa equilibrada à cabeça, vinha ela. O pescoço firme, bem torneado, descendo vertical até perder-se na curva suave do colo cheio, garantia a estabilidade da
carga.

Da varanda fresca, franjada de samambaias, o velho médico examinava a figura esguia, atento à elegância flexível e natural. As damas da alta, empilhavam livros à cabeça, para emprestar leveza e graça ao caminhar. Para ela, a trouxa de roupas bastava. O efeito, embora não buscado, era o mesmo. Sob o aplauso das chinelas, que batiam plac-plac, no lajedo da calçada, tudo era graça e equilíbrio, desde a carapinha cuidadosamente trançada, à curva das canelas finas. Conceituado cirurgião, de há muito aposentado, Dr. Breisser seguia-lhe os passos desde que dobrara a esquina. Viu-a aproximar-se, através da fumaça do cigarro preso entre os dedos trêmulos, analisando-a quase que com interesse anatômico. Lembrava-se de quando a vira pela primeira vez, menina, ainda. Dez ou doze anos, no máximo. Viera pedir emprego. Magrinha. Perebenta. Olhos grudados no chão.

A senhora Breisser indagara, com ternura, erguendo-lhe o queixo, com a ponta dos dedos: — "Como é que você se chama?"

A menina respondera num fio de voz: — "Eulália."

Insistira a senhora Breisser: — "Eulália do quê?”

— "Só Eulália..." — um altear rápido de ombros, e a menina encerrara o assunto: — "Eulália só..."

Não houve jeito de descobrir-lhe a origem. Pais desconhecidos. O nome fora escolhido par ela mesma, quando sentira necessidade de um. Eulália era o nome da mãe da primeira amiguinha encontrada em seu caminho e que lhe despertara um lampejo de afeição. Gostou dele. Adotou-o. Ficou sendo mesmo Eulália. Ou melhor, Eulália Só. Assim fora registrada. Nascera em algum lugar. Crescera por aí, abastecendo-se aqui e ali, ajudada pelo lado bom da humanidade. Difícil de ser encontrado, mas ainda existente. Que nem tudo é perdido! Questão de procurar e achar aquela mão dadivosa, pronta a abrir-se no momento exato.

Eulália Só — semente solta ao vento — desconhecia o ventre do fruto que a gerara, mas, conservava dentro de si o germe da vida, Lutou por ele. Sobreviveu! Como fora parar naquele local, nem ela mesma sabia. Pela mão de alguém, lá chegara e deitara raiz. O vento arrasta a semente, porém chega o dia em que ela se agarra a alguma coisa e se fixa.

Se encontrar solo propício, viceja. Foi o que se deu com Eulália. Fixou-se. Vicejou. Aos quinze anos, descobriu o amor. Descobriu também, e muito cedo, que o carinho dos homens pode produzir frutos. Não tardou em frutificar. Nem chegou a usar a grinalda, comprada com tanto carinho.

Enquanto sentia expandir-se dentro de si a molécula do amor, via escapulir-se o noivo. E sem deixar pista. Guardou a grinalda no fundo da gaveta, escondida como coisa proibida. Não usada, parecia-lhe prova de pecado. Nove meses depois, nascera Dora. Por sadismo do destino, fraquinha e doente. Os membros inferiores logo provaram a incapacidade de acompanhar o desenvolvimento do corpo. Negavam-se a andar, Não andaram nunca. Dora passou a viver recostada em travesseiros, num cesto ao qual um vizinho generoso adaptara rodas. E esse mesmo generoso vizinho fizera com que, ano e meio depois, o lar de Eulália se embandeirasse, novamente, de fraldas, festejando a chegada do Zeca, mais clarinho do que a mana, já que o pai era branco. Pai que, a exemplo da irmã, não chegou a conhecer.

Ao vir á luz, já o vizinho tinha novos vizinhos, em plagas não vizinhas. Não fora a prodigalidade do seio materno, o garoto não teria tido chances, nem condições físicas futuras para empurrar, com tanta desenvoltura, o carrinho da irmã maior.

Com dois filhos à roda e mais um a caminho, Eulália Só não era mais só, mas, manteve o nome. Ninguém lhe oferecera outro. A grinalda permanecia guardada no fundo da gaveta. As flores de laranjeira, feitas de cera perolada, amarelando.

Cada vez que chegava ao velho casarão dos Breisser, corpo arredondado por nova gravidez, Eulália vinha de olhos baixos e voz sumida. Tinha brio. Brio não custa dinheiro. E patrimônio. Dificilmente se perde. Morre com ele, quem com ele nasce. E era o peso do brio que baixava os olhos de Eulália e fazia sua voz sumida. A senhora Breisser, com ternura infindável e paciência de santa, renovava os conselhos, um a um. 

Eulália chorava. Eulália prometia. Prometia não acreditar mais em promessas de ninguém. Prometia... por isso, não chegava a acreditar nem nas próprias promessas!

O quarto filho levou-a ao hospital. A criança não resistiu. E quase carregou a mãe consigo. Não fora a dedicação dos Breisser, e adeus Eulália! A lição, afinal, surtiu efeito.
Eulália pôs distância definitiva entre o seu coração e o coração dos homens. Instalada em seu casebre modesto, de janelas verdes e telhado de uma água, passou a viver só para os filhos. Continuou a lavar roupas. As mãos escuras não maculavam a alvura da espuma e, por estranha alquimia, as roupas saíam branquinhas. Mais branquinhas do que de outra qualquer mão!

Tantos anos passados, e vinha ela uma vez mais chegando, trouxa à cabeça, como sempre. Ia longe o tempo em que se apresentara ao casal Breisser pela primeira vez, perebenta, olhos grudados no chão, voz sumida. Agora, mulher feita, mãe de três filhos. Dois rodando por aí, fazendo sabe-se lá o quê, esquecidos dela. A outra, presa à cadeira de rodas, presente do doutor.

Eulália passou a mão por cima do portão, fazendo correr o trinco. O pescoço permanecia firme, equilibrando a trouxa.

— "Boa tarde, seu doutor..."

— "Boa tarde, Eulália. Como vão as coisas?"

— "Mais pra lá do que pra cá..."

— "E Dorinha?"

— "Na pior! Anda encucada. Não dá nem pra gente conversar. Também, do que é que a gente vai falar?! Pra não mastigar tristeza, melhor, mesmo, é ficar de boca fechada."

O médico examinava, com atenção, a mulher que tinha à frente. Moça ainda. Pobre Eulália! De longe, o vulto enxuto a fazia mais jovem. De perto, o cansaço e o desencanto, artistas implacáveis, alteravam-lhe os traços, com pinceladas de desesperança e tintas de angústia.

Há algum tempo, Dr. Breisser peneirava o assunto. Planejara e medira tudo com desvelo de minucioso arquiteto. Difícil, contido, expor o que havia arquitetado. Viúvo, sem filhos, aposentado, via a idade avançar, sem maiores preocupações ou ambições. Tinha, porém, como objetivo, não deixar perdida, com o seu desaparecimento, a polpuda aposentadoria. Alguém teria de beneficiar-se dela. E esse alguém, bem que poderia ser Eulália. Ninguém preenchia melhor os requisitos, uma vez que, só, desamparada e sustentando, ainda, uma filha doente.

Beirando os oitenta, o velho cirurgião sabia terem de ser práticas e rápidas as decisões. Fechou o livro que tinha em mãos. Esmagou o cigarro no cinzeiro, descansando os olhos claros na figura cor de café.

— "Eulália, eu vou me casar com você."

Ao trança-pé da surpresa, Eulália sentiu, pela primeira vez, desequilibrar-se a trouxa que trazia á cabeça. Amarelou! Tinha, pelo Dr, Breisser, a veneração, o carinho e o especial respeito que dedicaria a um pai, caso a vida lhe tivesse dado um. Profundamente embaraçada, desceu devagarinho a trouxa, colocando-a sobre a mesa. Reunindo forças conseguiu gaguejar, num sussurro;

— "Que é que foi que o doutor disse?!"

A voz grave do velho médico confirmou, clara e pausadamente:

— "Eu disse que vou me casar com você, Eulália,"

Petrificada, sem saber o que fazer, ou dizer, Eulália, como em tempos passados, grudou os olhos no chão, mais confusa do que nunca. A bondade do médico prontificou-se em ajudá-la:

— "Não fique assim, Eulália. Não há nada demais! Casamos e pronto! Você continua lá, na sua casa, eu continuo aqui. Quando eu morrer, você receberá o que eu lhe deixar. Simples, não ?!

Os olhos de Eulália, redondos de espanto, desgrudaram do chão. A emoção derreteu o gelo da perplexidade e dobrou-lhe os joelhos. Com lágrimas e beijos, lavou e enxugou as mãos do benfeitor.

Casaram-se, um mês depois. No civil e no religioso. Cerimônia íntima, sem convidados. Presentes, apenas, as testemunhas indispensáveis e Dorinha, na primeira fila, em sua cadeira de rodas.

À noite, sozinha no quarto, Eulália colocou, na carapinha trançada, a grinalda de flores de laranjeira, já sem a cobertura perolada. Era uma senhora. A senhora Breisser! Repetiu, acentuando as sílabas: — "Brais-ser...!" — um nome que se escrevia de um jeito e se lia de outro. Um nome aberto... claro! Claro e luminoso como os olhos do doutor.

Apesar da idade, o doutor tinha olhos de menino. De menino bom, cansado de olhar o mundo perverso. E ele lhe dera o nome de presente, como menino que dá de presente um brinquedo muito usado, mas, muito precioso, também. Breisser não era um nome qualquer. Era nome honrado, respeitado, querido! Nome de alguém que acrescentara muitos nomes á lista promissora da vida e roubara tantos outros ao doloroso rol da morte.

Resignou-se. O nome claro não combinava com a sua pele escura! Eulália Breisser era um nome que soava falso! Era como se, de uma hora para outra, passasse a usar no dedo um enorme brilhante, Embora faiscante, quem acreditaria nele?! O pouco que poderiam dizer é que seria falso ou, o que era pior... que o teria roubado. Cruzes! Eulália Breisser... soava como sacrilégio!

Em sua auto-punição, lembrou-se da primeira senhora Breisser... tão linda, tão fina, tão inteligente! E tão sua amiga! Aquela, sim, merecia o nome do doutor!

Eulália, casada, continuou a cuidar, agora, com redobrado carinho, das roupas do doutor. À dedicação e ao desvelo de outrora, somava-se a gratidão do presente. Apenas isto poderia explicar saírem as roupas mais brancas do que nunca, das mãos escuras de Eulália.

Um ano após o casamento, Eulália enviuvou. E chorou. Chorou muito! Tanto quanto chora quem sabe ter perdido um grande pai!

Trouxeram-lhe papéis para que assinasse. Fez tudo certinho, como lhe mandaram, desenhando letras com muito cuidado. Certinho, também passou a receber a sua cota de viúva. Todavia, quando lhe indagavam o nome, vinha-lhe à mente a figura bondosa e amiga da primeira senhora Breisser. E então respondia segura, sem voz sumida, sem olhos grudados no chão:

— "Meu nome é Eulália... Eulália Só."

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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