domingo, 30 de junho de 2019

Glauco Mattoso (Sonetos Esparsos)


SONETO 234 CONFESSIONAL

Amar, amei. Não sei se fui amado,
pois declarei amor a quem odiara
e a quem amei jamais mostrei a cara,
de medo de me ver posto de lado.

Ainda odeio quem me tem odiado:
devolvo agora aquilo que declara.
Mas quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a crença no passado.

Palavra voa, escrito permanece,
garante o adágio vindo do latim.
Escrito é que nem ódio, só envelhece.

Se serve de consolo, seja assim:
Amor nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara, pois, que alguém reze por mim...

SONETO 251 QUANTITATIVO

Centenas de sonetos são legado
de nomes tidos como monumentos.
Apenas de Camões, mais de duzentos,
registro que é por poucos superado.

Não fossem os Lusíadas o dado
que faz dele o primeiro entre os portentos,
ainda assim Camões marca outros tentos,
e, entre outros tantos, este é consagrado:

"Sete anos de pastor", o vinte e nove,
que, se não for mais belo, é o mais perfeito,
a menos que em contrário alguém me prove.

Mas, como dois é dom, três é defeito,
também um "Alma minha", o dezenove,
ocupa igual lugar no meu conceito.

SONETO 500 VICIOSO

Poema lembra amor, que lembra carta,
que lembra longe, e longe lembra mar,
que lembra sal, e sal lembra dosar,
que lembra mão, e mão alguém que parta.

Partir lembra fatia e mesa farta;
fartura lembra sobra, e sobra dar;
dar lembra Deus, e Deus lembra adiar,
que lembra carnaval, que lembra quarta.

A quarta lembra três, que lembra fé;
fé lembra renascer, que lembra gema,
a gema lembra bolo, e este o café.

Café lembra Brasil, que lembra um lema:
progresso lembra andar, que lembra pé,
e pé recorda alguém que faz poema.

SONETO 501 URBANIVERSADO

Feliz aniversário, Pauliceia!
Do Pátio do Colégio ao infinito,
o imenso não é feio nem bonito:
darás de megalópole uma ideia?

Tens cara de africana ou de europeia?
Tens árvore de figo ou de palmito?
Tens catedral de taipa ou de granito?
Tens flor? É rosa, hortênsia ou azaleia?

Te tornas, ano a ano, mais mudada:
quem chega não se encontra com quem parte;
a rua não se avista da sacada.

Poetas não têm jeito de saudar-te;
tu, pois, que cantes, antes de mais nada,
que és obra, em fundo e forma, in progress: arte!

SONETO 517 RESSURRETO

João Lenão nasceu em Salvador
durante inda o regime militar.
Seu pai tinha acabado de voltar
após dez anos "barra" no exterior.

O filho do esquerdista foi ator,
palhaço, engolidor, garçom de bar,
até que escrevinhou e quis tentar
carreira de poeta e à luz se expor.

Aos vinte, em pleno ocaso do milênio,
fazer o quê? Haicai neobarroco?
Um "contraconcretismo" que envenene-o?

Sem ver, do discursivo ao verbivoco,
saída, alguém já jura que ele é gênio
num gênero que andava dorminhoco.

SONETO 519 REDUTO

O livro de João Lenão se esgota.
Circula, cult, o bardo em bastidores.
A mídia dá notícia. Outros autores
dividem-se: uns, confete; alguns, chacota.

Ninguém levava a sério um Omar Motta
que em Lenão via "vícios amadores",
mas dum Mauro de Moura tomam dores
aqueles que nos clubes são quem vota.

O Moura era dos tais empedernidos,
mais crítico que vate criativo,
porém reputadíssimo aos ouvidos.

Chamou João "Não Lê", montou motivo
pra dar calor aos calos ressentidos...
e a claque exclui João do crível crivo.

SONETO 759 DA BASSEZINHA

Gostava de jujubas, a danada!
Ficava rodeando quando, à mesa
do almoço eu me servia e, à sobremesa,
filava seu nacão de goiabada.

Andava até nas unhas esmaltada!
Seu passo tinha a classe da princesa,
embora nem viesse da nobreza.
Foi minha, ela, a primeira namorada.

As grossas sobrancelhas amarelas
no preto pelo expunham seu contraste.
E as patas dianteiras? Tortas, belas!

Caminha rente ao chão, sem que se arraste.
Vaidosa, nada tem de outras cadelas.
"Bassê", me dizes tu, e adivinhaste!

SONETO 829 DA GULA

No bolo, a cobertura em creme é grossa!
A massa, em três andares de recheio,
não deixa que a vontade enfrente um freio,
e a cor do chantili na vista coça!

Uma fatia só, não há quem possa
achar suficiente! Mesmo cheio,
àquilo não resisto: já papei-o
até a metade, e a gula inda me acossa!

Lambuzo-me nos dedos, pelo queixo
escorrem os farelos, e no prato
me aguarda inda um pedaço, que não deixo!

Da vida, o que se leva é o que, constato,
sabor tem, e pecado é só o desleixo
de quem tal bolo perde por recato!

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