quinta-feira, 27 de junho de 2019

Vinicius de Moraes (Seu "Afredo")


Seu Afredo (ele sempre subtraía o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: "Afredo Paiva, um seu criado..."), tornou-se inesquecível à minha infância porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, não ia muito lá das pernas. Lembro-me que sempre depois de seu trabalho, minha mãe ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar o lustro. Mas como linguista, cultor de vernáculo e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. 

Tratava-se de um mulato quarentão, ultra-respeitador, mas em quem a preocupação linguística perturbava às vezes a colocação pronominal. Um dia, numa fila de ônibus, minha mãe ficou ligeiramente ressabiada quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe à queima-roupa, na segunda do singular: 

- Onde vais assim tão elegante? 

Nós lhe dávamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que já me foi dado ouvir. Uma vez, minha mãe, em meio à lide caseira, queixou-se do fatigante ramerrão do trabalho doméstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: 

- Dona Lídia, o que a senhora precisa fazer é ir a um médico e tomar a sua quilometragem. Diz que é muito bão. 

De outra feita, minha tia Graziela, recém-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: 

- Cantas? 

Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: 

- É, canto às vezes, de brincadeira... 

Mas um tanto formalizada, foi queixar-se a minha mãe, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: 

- Não, ele é assim mesmo. Isso não é falta de respeito, não. É excesso de... gramática. 

Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarçado e falou: 

- Olhe aqui, dona Lídia, não leve a mal, mas essa menina, sua irmã, se ela pensa que pode cantar no rádio com essa voz, 'tá redondamente enganada. Nem programa de calouro! 

E a seguir, ponderou: 

- Agora, piano é diferente. Pianista ela é! 

E acrescentou: 

- Eximinista pianista!

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