O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensível desta cidade em que são raríssimos os maridos irrepreensíveis; entretanto (vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo.
Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os pássaros. Pelo menos morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados.
Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas… como chegar à fala?… Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.
Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde 1!para o Leme.
O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação.
O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava lendo, murmurou:
– Preciso muito falar-lhe.
– Pois fale – respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rósea folha vespertina.
– Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?
– Quando quiser.
– Amanhã?
– Amanhã, seja! Sabe onde é?
– Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta.
– Por quê?
– Depois lhe direi.
– Bom. Esperá-lo~ei às dez e meia.
– Adeus!
– Até amanhã!
E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.
No dia seguinte à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou entreaberta.
– Mas por que todo este mistério? – perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de longos anos.
– É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.
– Quem? O tal Paulino?
– Conhece-o?
– De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta da mulher dele?
– Da mulher de quem?… do Paulino?…
– Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!
– Mas de que Paulino fala a senhora? – perguntou o pobre homem, já trêmulo e agitado.
– Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher!
– Os amantes da mulher?!…
– Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!…
– Os outros?… Então são muitos?!…
– Mais de um é, com certeza… Já vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante.
– Deve ser o Gouveia!
– E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pera, pince-nez azul…
– Deve ser o Magalhães! Dois amigos!…
E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda. Sentia as faces em fogo. Receou uma congestão cerebral.
A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-de-colônia, que o reanimou.
– Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e você não sabia…
– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informação. Se não viesse à sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!
E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atônita, outra coisa além de um copo d’água.
No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas não perde por esperar.
Ora, aí tem como o diabo as arma!
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.
Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os pássaros. Pelo menos morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados.
Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas… como chegar à fala?… Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.
Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde 1!para o Leme.
O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação.
O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava lendo, murmurou:
– Preciso muito falar-lhe.
– Pois fale – respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rósea folha vespertina.
– Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?
– Quando quiser.
– Amanhã?
– Amanhã, seja! Sabe onde é?
– Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta.
– Por quê?
– Depois lhe direi.
– Bom. Esperá-lo~ei às dez e meia.
– Adeus!
– Até amanhã!
E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.
No dia seguinte à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou entreaberta.
– Mas por que todo este mistério? – perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de longos anos.
– É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.
– Quem? O tal Paulino?
– Conhece-o?
– De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta da mulher dele?
– Da mulher de quem?… do Paulino?…
– Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!
– Mas de que Paulino fala a senhora? – perguntou o pobre homem, já trêmulo e agitado.
– Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher!
– Os amantes da mulher?!…
– Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!…
– Os outros?… Então são muitos?!…
– Mais de um é, com certeza… Já vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante.
– Deve ser o Gouveia!
– E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pera, pince-nez azul…
– Deve ser o Magalhães! Dois amigos!…
E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda. Sentia as faces em fogo. Receou uma congestão cerebral.
A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-de-colônia, que o reanimou.
– Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e você não sabia…
– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informação. Se não viesse à sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!
E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atônita, outra coisa além de um copo d’água.
No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas não perde por esperar.
Ora, aí tem como o diabo as arma!
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.
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