Imedin Tahir Ben-Zalan conta sua vida e suas aventuras. Por que foi ele à casa do xeque Abder Ali Madyã e as pessoas que lá encontrou. O que disse o xeque a um velhote que oferecia um escravo e as peripécias que depois se seguiram.
Meu nome é Imedin Tahir Ben-Zalã e sou natural de Damasco.
Muito cedo tive a infelicidade de perder meu pai, e achei-me, com minha mãe e meus irmãos, em completo desamparo. Um bom mercador, que morava nas vizinhanças de nossa casa, tomou-me sob sua proteção. Graças ao inestimável auxílio desse generoso protetor, obtive meios que me permitiram estudar com os mestres e adquirir, assim, os variados conhecimentos que hoje possuo e de que me tenho valido nos transes mais difíceis da vida.
Há cerca de dois anos, mais ou menos, a marcha serena de minha existência foi perturbada por um acontecimento imprevisto. Salomão Moiard, assim se chamava o meu pai adotivo, obrigado a partir para Jerusalém, em virtude de um chamado urgente, deixou os haveres que possuía, inclusive uma pequena caixa na qual se guardavam mil sequins de ouro. Recomendou-me que zelasse com o maior desvelo pelos seus bens e riquezas, pois só ao fim de um ano talvez, liquidados os seus negócios na Palestina, poderia regressar dessa longa jornada ao país dos israelitas.
Jurei que tudo faria para corresponder à honrosa confiança que ele em mim depositara; e, na manhã seguinte, depois da primeira prece, (1) tive a tristeza de vê-lo partir com grande caravana de mercadores judeus.
O velho Salomão deixara, para as minhas despesas, quantia razoável com a qual eu poderia viver, sem privações, durante um ano. Resolvi, entretanto, auxiliar minha mãe, como sempre fizera - a fim de atenuar-lhe a penúria em que vivia -; deliberei obter um emprego que me permitisse, embora com sacrifício, aumentar-lhe os recursos pecuniários.
Naquele tempo vivia em Damasco um opulento mercador chamado Abder Ali Madyã, cujo nome brilhava à luz do prestígio que os muçulmanos atribuem aos que têm ouro em abundância, oásis e caravana. Informado de que o xeque (2) procurava um secretário, apresentei-me em sua nobilíssima residência, à hora marcada, esperançoso de obter o vantajoso emprego.
Recebeu-me à porta um escravo baixote, vestido à moda síria, e, tendo declarado a razão da minha presença, fui conduzido até um belo salão onde deparei várias outras pessoas que aguardavam a audiência do xeque. Entre os presentes, reconheci os incorrigíveis Annaf e Mohammed, “o gago”, escribas de poucas luzes, que se tornaram famosos entre os damascenos em razão da falta de discrição e honestidade com que desempenhavam as tarefas mais sérias de que se encarregavam.
A fantasia popular não exagerava ao atribuir ao poderoso Abder Madyã uma opulência quase lendária. A sua deslumbrante moradia, cuja construção obedecera ao plano de um escravo cristão, ostentava o luxo e a riqueza de um serralho imperial; havia por toda parte valiosas alcatifas, e no salão poligonal em que nos achávamos, as paredes internas eram cobertas por figuras geométricas coloridas, entrelaçadas em harmoniosas combinações. Menos deslumbravam os adornos e pedrarias do que a arte e o fino gosto com que tudo ali era arranjado.
Quando o xeque surgiu, como um príncipe das Mil e uma Noites, acompanhado de seus íntimos e auxiliares, levantamo-nos respeitosamente e fizemos o salã (3). Com um ligeiro aceno, o fidalgo agradeceu-nos a saudação.
Um velhote nervoso, de olhos embaciados, que se pusera a um canto, depois de curvar-se várias vezes desmanchando-se em repetidos salamaleques, aproximou-se do xeque e entregou-lhe um documento que trazia em rolo, preso por uma fita azulada.
O xeque tomou o pergaminho, desenrolou-o lentamente, e sobre os vagos caracteres ali traçados correu displicente o olhar.
Ualá! (4) - exclamou irritado devolvendo ao velhote o documento. - Não me convém a sua proposta. Acho-a irracional. Seria um absurdo que eu comprasse um escravo, por um preço elevado, sem adquirir nessa transação a pele desse escravo! Que disparate! Onde já se viu semelhante despautério?
- Xeque dos xeques! - acudiu pressuroso o velhinho, torcendo os dedos. - Trata-se, como já vos disse mais de uma vez, de um caso excepcional. A pele do escravo a que me refiro não lhe pertence. Posso contar-vos...
- Pelas barbas de Mafoma! - atalhou colérico o xeque. - Não me interessa saber como se chegou a essa situação inverossímil e anti-humana; não me animo, tampouco, a ouvir a história desse escravo martirizado pela servidão! Já estou farto de casos excepcionais! Qualquer mendigo da estrada, em troca de um osso, é capaz de contar vinte casos excepcionais! Os homens de imaginação baratearam o impossível. Só os fatos sobejamente vulgares e rotineiros é que a mim me parecem realmente excepcionais!
E, isso dizendo, voltou-se para um dos homens que se achavam perfilados, aguardando ordens, e murmurou secamente:
- Leva daqui este importuno!
Acompanhei, ainda, com o olhar, o velhote nervoso que se retirava aos trancos, levado pelo braço hercúleo de um guarda. Sua figura pareceu-me cheia de mistério.
Que estranho caso seria aquele do escravo que não era dono da própria pele? Algum dia - pensei - mesmo que seja para tanto obrigado a contar todos os pelos de um camelo, hei de descobrir o paradeiro desse singular muçulmano para dele ouvir aquele “caso excepcional” a que o xeque não dera a menor importância. (5)
Tendo saído o velhote de roupa cinzenta, ficaram, apenas, aguardando a decisão do xeque, os que pretendiam o lugar de secretário. Éramos em número de quatro: eu, os dois escribas desonestos (aos quais já me referi) e um tipo pálido, alto como uma girafa e muito magro, que não cessava de sacudir a cabeça para baixo e para cima, como se quisesse, por antecipação, concordar com alguma coisa que ia ouvir de alguém.
- Sou avesso à prática da injustiça - começou o xeque - e não quero, pois, errar na escolha de meu novo secretário. Conforme costumo proceder em tais casos, vou submetê-los a uma pequena prova, que será simples e sumária. Aquele que se sair com mais brilho e revelar maior habilidade será por mim escolhido. Ali, sobre aquela mesa, está o material necessário. Cada um dos candidatos poderá escrever a seu bel-prazer o que muito bem entender, contanto que revele inteligência e cultura!
Ao perigoso Annaf, que se achava na frente, cabia, no caso, a iniciativa. Aproximou-se da mesa, tomou do cálamo e de uma folha em branco e, depois de sentar-se sobre uma almofada, escreveu várias linhas, pondo nessa operação os cuidados de um calígrafo.
- Leia! - ordenou o xeque.
O escriba, que usava habitualmente do cinismo como recurso seguro de êxito, leu com voz clara, numa cadência irritante, as linhas que traçara.
Glorificado seja Alá, o Altíssimo! No país do Islã (6) não há homem mais generoso, mais belo, mais sábio e mais valente do que o grande xeque Madyã! O nome desse genial
muçulmano...
- Não me agradam - interrompeu com azedume o xeque - os elogios derramados como os que aí escreveste. Abomino os bajuladores. A tua gabação, envilecida pela sabujice, cai sobre mim como a baba de um camelo. Vai-te daqui e não me procures mais. Lembra-te de que eu sei fazer com que os impertinentes amarguem o arrependimento das importunações com que me irritam!
Regozijei-me intimamente com tal decisão. Foi o caviloso escriba agarrado, num abrir e fechar de olhos, e arrastado para fora do salão pela férrea musculatura de dois guardas autômatos. Percebi que houve, a seguir, um tumulto, acompanhado de ruídos surdos, no corredor; veio-me a espírito a suspeita de que ele teria sido impiedosamente espancado pelos numerosos servos. O regozijo, que a princípio sentira, transformou-se, por causa daquele sucesso, na mais grave apreensão.
Mohammed, “o gago”, foi o segundo a apresentar a prova exigida. Tendo escrito duas ou três linhas demonstrativas de sua capacidade, entregou-as ao xeque julgador.
Mal relanceara sobre elas os seus olhos espertos, enfureceu-se perigosamente o rico Madyã.
- Miserável, filho de miseráveis! - gritou enviperado. - Detesto, já o disse, a sabujice dos cínicos tanto quanto execro os tipos grosseiros e mal-educados! Isto que escreveste é uma estúpida infâmia! Por Alá! Vai-te, antes que eu perca por completo a calma.
O temido senhor não teve necessidade de repetir a ordem. Um agigantado cameleiro agarrou pelas costas o grosseiro candidato e, com um empurrão violentíssimo, atirou-o para fora da sala, sem cuidar da desastrosa posição que lhe remataria a queda. Ouvi novamente ruídos surdos e prolongados no corredor; desta vez, entretanto, não tive dúvidas sobre o tremendo espancamento com que os servos castigavam o segundo pretendente.
A má sorte de Annaf e Mohammed não perturbou a calma e a serenidade do tal homem pálido, magro, que sacudia a cabeça. Com penalizante humildade, sem desligar dos lábios um lastimável sorriso, que traduzia a mais profunda resignação, aproximou-se do xeque em cujas mãos depositou uma pequena folha, na qual rabiscara alguns versos de notável poeta árabe.
- Imbecil que és! - exclamou o xeque, depois de ler a prova e tomado de vivo rancor. - A tua ignorância é revoltante! Nos versos de Montenébbi (7) que aqui escreveste, há três acentos trocados e duas sílabas erradas! É incrível que um árabe tenha a ousadia de estropiar, assim, o mais admirável poema do Islã! - E a transbordar de empáfia, ajuntou: - Sei de cor os cinco mil versos de Antar, as canções de Nobiha, de Tarafa e Zobe. Já li cem vezes as obras dos antigos e modernos escritores árabes. Não posso admitir, portanto, que um imbecil, por ignorância, estropie torpemente as joias mais caras do grande Montenébbi!
E vi penalizadíssimo ser aplicado ao terceiro infeliz o mesmo tratamento brutal dispensado aos dois primeiros: seguiram-se, como das outras vezes, barulhentos distúrbios no fatídico e temeroso corredor. Voltou-se, a seguir, o xeque para os amigos que o rodeavam e proclamou com irritante prosápia:
- Viram a audácia deste chacal insolente que fiz expulsar agora de minha casa? Teve a petulância de me oferecer, como coisa sua, fruto de sua acanhada inteligência, um punhado de lindos versos que o imortal Montenébbi escreveu, em Chiraz, para obter a simpatia e proteção do poderoso Adod-ed-Daula. O infeliz plagiário não se lembrou de olhar para os seus pés antes de submeter a julgamento a sua desastrosa prova.
E o enfatuado xeque apontou para o grande e rico tapete azul-claro, adornado com legendas admiráveis, que cobria a parte central do aposento. Destacavam-se, no centro do tal tapete, versos admiráveis de Montenébbi:
Quis apossar-me do Tempo
mas o Tempo, imaginário,
não se deixou alcançar.
Procurei a eternidade,
pensando que, na Ciência,
tudo pudesse encontrar.
Mas voltei de mãos vazias,
lamentando os dias meus,
estudei e, logo, a Dúvida
veio afastar-me de Deus... (8)
- Que tapeçaria magnífica! - comentou com voz amolentada um tipo gorducho, de rosto redondo, que parecia íntimo do xeque. - É de estranhar que o velhote não tenha reparado nela, depois de ter permanecido nesta sala, à nossa espera, durante tanto tempo.
- Isso acontece com os indivíduos vulgares, meu caro Rhaif - acudiu com vivacidade o xeque. - Olham, mas não veem; ouvem, mas não escutam; falam, mas não dizem nada; correm, mas não se afastam. Conheci, em Homs, um aguadeiro tão distraído que de uma feita, ao sair da mesquita, esqueceu as babuchas e enrolou os pés no turbante! Ao chegar a casa, a esposa espantou-se e disse: “Que loucura é essa, meu marido? Olha o que fizeste com o teu turbante!” Respondeu o aguadeiro olhando para os pés: “Foi distração minha! Pensei que tomara, por engano, as calças do velho cádi!”
A citação daquele caso - que me parecia uma frioleira sem sentido e sem cabimento - fez rir gostosamente o gordo Rhaif. Todos os outros xeques desmancharam-se, também, em estrepitosas risadas. Sentia-se que a intenção dos presentes era lisonjear e agradar o dono daquele palácio, o opulento xeque Madyã.
Que chiste poderia alguém descobrir naquela desenxabida anedota do aguadeiro? A minha atitude discreta e serena despertou a atenção do xeque.
Fitou-me muito a sério e, fazendo transparecer certa ironia em suas palavras, disse-me com voz pausada:
- Chegou, agora, a tua vez, meu jovem amigo! Que no insucesso e no lamentável fracasso de teus antecessores possas descobrir meio mais seguro de alcançar a vitória. Queira Alá que a tua prova seja satisfatória, pois os cameleiros que me servem já estão, com certeza, fatigados de castigar atrevidos e ignorantes audaciosos! Pela sagrada mesquita de Meca! Vamos à prova!
Narrativa 4
Continuação das aventuras de Imedin. O caso da palavra caucasiana que um filólogo de grande fama traduziu e explicou.
Vendo chegada a minha vez, invadiu-me invencível terror, como se houvesse surgido pela frente um fantasma de apavorante aspecto. Que deveria escrever para agradar ao incontentável xeque? Elogios? Nunca. Lembrava-me ainda do quanto penara o primeiro escriba. Insultos e grosserias? Muito menos. Trechos literários ou poesias?
Seria uma imprudência de louco. Um engano numa frase, um descuido num verso, seria, para mim, desgraça completa.
Quis Alá que uma feliz inspiração me iluminasse o atribulado espírito. Tomei de uma folha de papel e nela escrevi uma única palavra: Mazaliche!
- Ma-za-li-che! - leu o xeque, vagarosamente, separando com cuidado as sílabas. Que quer dizer “mazaliche”?
Senti, naquele transe perigoso, que a minha salvação, no caso, dependia, exclusivamente, de um pouco de audácia. A palavra “mazaliche” tinha sido inventada, no momento, por mim; nada significava, não tinha sentido algum. Resolvido, porém, a levar até o fim a aventura iniciada de modo tão favorável, respondi com absoluta segurança:
- A palavra “mazaliche”, ó xeque generoso!, não é árabe, nem persa. É um vocábulo descoberto, faz muitos séculos, por um filólogo que estudou os vários dialetos falados pelos povos caucasianos. “Mazaliche” significa o que quiser!...
- Como assim? - interpelou-me novamente o xeque. - Qual é a tradução certa e exata para essa palavra?
- O que quiser! - reafirmei tranquilo. - Não vejo, senhor, como explicar, de outro modo, a significação de uma palavra para nós quase intraduzível. O sábio filólogo que viveu no Cáucaso...
- Basta - atalhou vivamente o xeque. Dispenso-te as explicações linguísticas. A lembrança que tiveste, ao condensar a tua prova numa única palavra, foi realmente original. Revelaste inteligência viva, cultura razoável e também muita presença de espírito. Creio que és digno de exercer as funções de secretário de um homem notável como eu!
Julguei, depois de ter ouvido tais elogios do imodesto xeque, passado inteiramente o perigo e definida, de modo favorável, a situação. Com grande surpresa, porém, o caso tomou, de repente, feição complicada e trágica.
Depois de pequeno silêncio, o xeque assim falou:
- Ser-me-á fácil verificar se disseste ou não a verdade em relação a essa palavra, “mazaliche”. Tenho aqui, em minha casa, como hóspede, há muito tempo, um filólogo eruditíssimo chamado Mostacini Thalabi, que conhece profundamente os mais complicados idiomas do mundo. Vejamos se esse sábio concorda com a tradução que apresentaste para a palavra caucasiana. Fica certo, porém, ó jovem, de uma coisa: se a tua prova, com a originalidade que parece ter, encerrar uma pilhéria, não sairás daqui com uma só costela em perfeito estado!
E depois de proferir tão grave ameaça, que me deixou estarrecido e tonto de pavor, o xeque chamou um escravo e disse-lhe:
- Que venha à minha presença o douto e eloquente filólogo Mostacini Thalabi!
Rápido como uma flecha o escravo desapareceu em busca do sábio.
“Estou perdido”, pensei. “O filólogo vai descobrir a minha audaciosa mistificação. Queira Alá valer-me nesta dependura.”
Momentos depois surge no salão, em companhia de um escravo, um homem de meia-idade, barbas castanhas, olhar muito vivo, rosto largo, a testa alta e mal disfarçada por um turbante farto e desajeitado, com uma grande barra verde. Era o recém-chegado o famoso filólogo Mostacini Thalabi, hóspede do palácio.
Depois de saudar delicadamente a todos os presentes, dirigiu-se ao senhor de Madyã e disse-lhe:
- Alá sobre ti, ó xeque! Que desejas de teu humilde servo?
Respondeu o xeque:
- Mais uma vez, meu bom amigo, vou apelar para os teus profundos conhecimentos linguísticos. Sei que os idiomas, vivos ou mortos, não possuem segredos que resistam à argúcia de teu espírito. Pois bem. Quero que me digas o que significa esta palavra e a língua ou dialeto a que pertence.
E o rico mercador passou para as mãos do filólogo a folha em que eu escrevera o ignorado vocábulo - Mazaliche.
Um sentimento de pavor invadiu-me o espírito e como que me petrificou. A máscara da palidez pesou-me sobre o rosto. Murmurei resignado: “Maktub! (9) Alá é grande! Seja feita a vontade de Alá.”
O sábio leu atentamente a palavra a que eu reduzira a minha prova. Passou a mão direita pela barba, alisando-a, displicente. Meditou alguns instantes como se procurasse coordenar ideias que pareciam quase esquecidas. E disse afinal:
- A palavra aqui escrita compõe-se de dois radicais distintos: mas ou maz, e aliche ou oiliche, da raiz de um verbo oili a que se liga o sufixo che, indicativo de futuro. Mazaliche é encontradiço num dialeto falado na região do Cáucaso. A palavra é, pois, caucasiana!
Quem poderia avaliar a intensidade do meu espanto ao ouvir aquela declaração? Feita pequena pausa, o filólogo continuou:
- Vou dar agora a significação da palavra “mazaliche”. A primeira parte, constituída pelo radical mas, significa “aquilo que”, “coisa”; a segunda, aliche, é um verbo: “querer”, “pretender”, “desejar”, “preferir no futuro”. A melhor tradução para mazaliche será, pois: “o que quiser.”
- Jovem - declarou então o xeque. - A tua prova acaba de ser confirmada pela voz autorizada do nosso grande filólogo. Nomeio-te meu secretário e de hoje em diante viverás neste palácio!
Recebi a seguir, de quase todas as pessoas que nos rodeavam, provas de afeto e simpatia. Cochichou-me um sujeitinho magro, que piscava continuamente os olhos:
- Foste de muita sorte. Com habilidade alcançarás aqui riquezas incalculáveis!
Compreendi que o sábio Mostacini, movido por um sentimento de incomparável bondade, deliberara salvar-me daquela emergência inventando para a palavra “mazaliche” a complicada etimologia que causara tanta admiração ao xeque.
“Serei grato a esse homem”, pensei. “A ele devo exclusivamente a vitória na prova. Quem o informara, porém, da significação que eu havia momentos antes atribuído ao vocábulo ‘mazaliche’?”
Naquele mesmo dia - ao cair da noite - fui aos aposentos do filólogo a fim de agradecer-lhe o precioso auxílio que me prestara.
O erudito Mostacini recebeu-me com indisfarçável alegria.
A sala que lhe fora destinada no palácio era larga e espaçosa. Pelo chão viam-se atiradas, ao acaso, ricas almofadas de seda.
- Já sei, meu amigo - disse-me o filólogo -, vieste aqui agradecer-me a solução engenhosa que dei hoje para o teu caso. O escravo que veio chamar-me é meu amigo e a ele devo inúmeros favores. Este escravo contou-me tudo o que se passara e solicitou o meu auxílio em teu favor. Prometi-lhe que tudo faria para salvar-te. Quando entrei, pois, no salão, já sabia o que devia responder ao xeque em relação à palavra que havias, por certo, inventado. Do contrário estarias irremediavelmente perdido.
- E esse escravo - perguntei - quem é? Por que veio ele em meu auxílio?
Respondeu-me Mostacini:
- Neste palácio vivem dezenas de indivíduos sem caráter e sem dignidade que exploram a vaidade doentia do xeque. A hipocrisia, a inveja e a perfídia se familiarizaram em todos os cantos desta casa, e o vaidoso xeque é a toda hora rodeado por cortesãos indignos, que tudo sacrificam pelo amor à cobiça. A única criatura sincera e leal que aqui conheço é esse escravo. Chama-se Meruã. É filho de um aguadeiro de Damasco e conheceu teu pai durante uma viagem que fez ao Cairo. Meruã é cristão e afirmou-me que se acha no dever de proteger-te. Se quiseres ouvir dele a narrativa de uma aventura estranha ocorrida no Egito ficarás conhecendo, de tua vida, um segredo tão estranho que talvez modifique por completo o curso de tua existência.
Tomado da mais viva curiosidade pelo caso, apertei o bom filólogo com um chuveiro de perguntas, ao que ele retorquiu sem se impacientar:
- Nada quero adiantar-te. Amanhã muito cedo mandarei chamar Meruã. E dele próprio ouvirás a mais espantosa narrativa de quantas correm no mundo. - E acrescentou:
- Vou agora para o salão. O eloquente xeque-el-medah (10) acaba de chegar. Queres ouvir as narrativas desta noite?
Agradeci ao bondoso ulemá o convite; sentia-me fatigado. Preferia ficar ali, na tranquilidade daquele belo aposento, recostado nas ricas almofadas; não me interessavam, naquele momento, as histórias fabulosas cheias de aventuras trágicas e emocionantes.
Retirou-se o sábio, deixando-me sozinho na maior ansiedade.
Que relação poderia existir entre mim e o misterioso escravo? Que estranha aventura teria ocorrido no Egito com meu pai?
A meu lado achava-se um manuscrito que o filólogo ali deixara. Olhei sôfrego para a obra. Na primeira página li assombrado:
Não há no mundo ninguém sem alguma tribulação ou angústia, seja ele emir, rei ou califa.
E mais:
Prepara-te para sofrer muitas adversidades e vários desgostos nesta miserável vida; porque assim te sucederá onde quer que estiveres, e assim acharás, em verdade, onde quer que te esconderes.
Quem teria escrito aquelas impressionantes palavras? Que sentido teriam elas no enredo de minha vida?
Intrigado com o caso, tomei do curioso manuscrito e consegui, sem dificuldade, ler uma história que me deixou encantado e me fez esquecer os pensamentos confusos que me agitavam.
Eis a história que li:
____________________
continua…
___________________________________
Notas
1 As preces obrigatórias para os muçulmanos são em número de cinco. A primeira ao nascer do dia; a segunda ao meio-dia; a terceira às quatro horas da tarde, mais ou menos; a quarta ao pôr do sol, e a última à noite. A prece deve ser precedida de ablução (ghuci).
2 Xeque - termo de acatamento que se aplica em geral aos sábios, religiosos e pessoas respeitáveis pela idade ou pelos costumes. A denominação xeque é dada igualmente ao chefe de tribo ou agrupamento muçulmano.
3 Salã - quer dizer paz. É a expressão de que se servem os árabes em suas saudações.
4 Ualá! (por Deus!) - exclamação muito usada pelos muçulmanos.
5 A prodigiosa história desse escravo, e do velhote que o queria vender, aparecerá em outra parte desta obra.
6 O Islã, de modo geral, significa “conjunto de países que adotam a religião de Mafoma”. Atualmente esses países são: Turquia, Arábia Saudita, Irã, Afeganistão,
Iraque, Iêmen, Marrocos, etc.
7 Montenébbi - poeta árabe de grande renome, nasceu em Kufa no ano de 905. Passou a sua infância na Síria e, durante vários anos, viveu entre beduínos do deserto. Muito moço ainda agitou a pequena cidade de Semawat, nas margens do Eufrates, fazendo-se passar como inspirado profeta que aparecia, no mundo, com a missão sublime de fundar uma nova crença religiosa. Fez crer a seus amigos e correligionários que recebia inspiração de anjos e espíritos ocultos e pretendeu elaborar um segundo Alcorão, que serviria de código religioso e moral para a seita revolucionária que pretendia implantar na Arábia e espalhar por todos os recantos do mundo. Foi preso pelas tropas Ikhechiditas de Homs, e só obteve liberdade depois de ter declarado que as suas ideias religiosas eram falsas e que a verdade estava contida unicamente no Islã. O apelido Montenébbi significa “aquele que pretendeu ser profeta”. Escreveu poemas admiráveis, até hoje lidos com entusiasmo pelos árabes. Foi, em seu tempo, o poeta mais popular da Arábia. Era admirado pelos caravaneiros e temido pelos príncipes.
8 Estes versos são do livro Pássaro de Jade, da poetisa brasileira Sônia Regina.
9 Maktub! – Estava escrito!
10 Chefe dos contadores de histórias.
Fonte:
Malba Tahan. Mil Histórias Sem Fim, vol.2.
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