quarta-feira, 12 de junho de 2019

Carolina Ramos (O Folião)


Santos. O bairro do Gonzaga respirava fundo. Depois de alguns anos, a folia do Carnaval, desta vez, teria por palco a Ponta da Praia. Do já famoso Carnaval santista, chegariam ao bairro anteriormente castigado e pisoteado, as ressonâncias dos surdos, o eco longínquo da batucada e a zoeira, bastante amenizada, da algazarra dos foliões. Longe ficava, também, o clarão exuberante das luzes da Av. Bartolomeu de Gusmão, transformada agora em passarela carnavalesca.

Entre os dois polos, o bairro do Boqueirão curtia a intermediação, como novidade, cujas consequências só poderiam ser avaliadas num após. Inclinados para a direita ou para a esquerda, como bons representantes da orla santista, os prédios de apartamentos serviam de arquibancada privilegiada, ou melhor ainda, de camarote, já que a infra-estrutura dos lares, por detrás de cada janela, garantia maior conforto.

A avenida praiana, recentemente recapeada, oferecia um tapete de asfalto impecável, lavado pelas copiosas chuvas de verão, bem propício à vibração dos passistas, na espera, indócil, do início do desfile.

Um a um, chegavam os carros alegóricos. Empíricos ainda, mostrando apenas a carcaça. A decoração acontecia no próprio local, a ritmo acelerado, e por ordem de chegada. Era ver um caminhão desovar pequena multidão à paisana e, num passe de mágica, vê-la caracterizada com as cores e brilhos exigidos pela ala à qual pertenciam os componentes. Logo, o asfalto era varrido pelas saias fartas e rodopiantes das baianas, chegadas em profusão, e pelos passos lépidos de mil e um figurantes, em trajes por vezes indefiníveis. Aconteciam excessos nessa ágil troca de roupas em local público? Certamente que sim! Aqueles que os viam, fingiam nada ver. E o assunto morria, E acabava por ser enterrado na cova rasa da cumplicidade carnavalesca que tudo perdoa e sepulta... pecadilho de carnaval, sem maiores consequências. Na maioria das vezes, quem chegava vestido, saía com bem menos roupas que era possível imaginar. Carnaval! Mesmo aqueles que se escandalizavam, mesmo aqueles que torciam o nariz aos desmandos e à semvergonhice liberada, não conseguiam ficar indiferentes à exuberância exibida pelos canais de televisão, embasbacados com a explosão colorida de beleza e sensualidade despejadas em enxurrada dentro de suas próprias casas, a um simples girar de botões. Carnaval!

Valdo prometera a si mesmo que, naquele ano, haveria de se esbaldar! Mal sentiu no ar os primeiros sintomas da síndrome carnavalesca, levou à risca a letra do velho sambão: — "vestiu uma camisa listrada..."

Largou-se. Fantasiado de povo, perdeu-se dentro dele. Tentara entrar numa das tradicionais Escolas de Samba, das mais categorizadas. Não tinha samba no pé. Muito menos na cabeça. Definitivamente reprovado, não desistiu. Dirigiu-se, cedo, para o Boqueirão, onde as Escolas ultimavam os preparativos para o desfile. Um camarim a céu aberto! Céu vestido de negro, de estrelas apagadas. Céu zangado com o que via lá embaixo! Valdo infiltrou-se aqui e ali, tentando ser útil. Ninguém precisava dele. Todo o mundo, atarefado, encarregou-se de fazê-lo ciente disso. Posto a escanteio, insistiu. Convidado, com maior veemência, a retirar os préstimos não solicitados, conformou-se, afinal. Não foi bem assim. Sentou-se no meio fio, aparentemente resignado, à espera do momento propício para voltar ao ataque.

Um frenesi muito especial correu ao longo da Escola perfilada, deixando antever que a hora da participação era chegada. Os carros alegóricos deram mostras de vida, deslizando de manso pela passarela, adornados convenientemente e com os destaques sambando nos devidos lugares.

Ensurdecedoras, as baterias faziam vibrar os prédios tortos da orla. Os cristais tiniam nas cristaleiras, quando ainda existentes.

A chuva fina, caída pouco antes, deixara o asfalto escorregadio, dificultando a tarefa de impulsionar os carros enormes, e suas frenéticas alegorias. Monumentos ambulantes! Alguns, envoltos ainda em plástico protetor. Presentes, bem embrulhados, para serem entregues aos olhos do públicos, no momento oportuno.

Não era fácil! Nem bem a faina do empurra-empurra começada, e já o cansaço ameaçava perturbar. Um dirigente de Escola descobriu Valdo, cabisbaixo, deprimido, sentado à beira da calçada.

— Ei, você aí…, quer dar uma ajudazinha?

Valdo olhou em volta, antes de responder. Era com ele mesmo. Coração aos pulos e olhos acesos, lançou-se à tarefa. Nascia naquele instante, um dos foliões mais ativos da
Avenida!

Madrugada a dentro, com ânimo insuspeitado, Valdo empurrou o imenso monumento, coberto de plumas adejantes, até a meta final.

Ao voltar para casa, pela manhã, exausto, encharcado de suor, comentava, com bravata, quase sem fôlego:

— Gente! Desfilei na maior!... Me esbaldei pra valer!...

Largou-se na cama.

Se à noite ajudara o diabo… de dia, dormiria como um anjo... feliz... feliz!...

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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