segunda-feira, 10 de junho de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Na Delegacia)


— Madame, queira comparecer com urgência ao Distrito. Seu filho está detido aqui.

— Como? O senhor ligou errado. Meu filho detido? Meu filho vive há seis meses na Bélgica, estudando física.

— E a senhora só tem esse?

— Bom, tenho também o Caçulinha, de dez anos.

— Pois é o Caçulinha.

— O senhor está brincando comigo. Não acho graça nenhuma. Então um menino de dez anos foi parar na polícia?

— Madame vem aqui e nós explicamos.

A senhora correu ao Distrito, apavorada. Lá estava o Caçulinha, cabeça baixa, silencioso.

— Meu filho, mas você não foi ao colégio? Que foi que aconteceu?

Não se mostrou inclinado a responder.

— Que foi que meu filho fez, seu comissário? Ele roubou? Ele matou?

— Estava com um colega fazendo bagunça numa casa velha da rua Soares Cabral. Uma senhora que mora em frente telefonou avisando, e nós trouxemos os dois para cá. O outro garoto já foi entregue à mãe dele. Mas este diz que não quer voltar para casa.

A mãe sentiu uma espada muito fina atravessar-lhe o peito.

— Que é isso, meu filho? Você não quer voltar para casa?

Continuava mudo.

— Eu disse a ele, madame — continuou o comissário —, que se não voltasse para casa teria de ser entregue ao Juiz de Menores. Ele me perguntou o que é o Juiz de Menores. Eu expliquei, ele disse que ia pensar.

— Meu filho, meu filhinho — disse a senhora, com voz trêmula —, então você não quer mais ficar com a gente? Prefere ser entregue ao Juiz de Menores?

Caçulinha conservava-se na retranca. O policial conduziu a senhora para outra sala.

— O que esses garotos estavam fazendo é muito perigoso. Brincavam de explorar uma casa abandonada, onde à noite dormem marginais. Madame compreende, é preciso passar um susto nos dois.

A senhora voltou para perto de Caçulinha, transformada:

— Sai daí já, seu vagabundo, e vamos para casa.

O mudo recuperou a fala:

— Eu não posso voltar, mãe.

— Não pode? Espera aí que eu te dou não pode.

E levou-o pelo braço, ríspida. Na rua, Caçulinha tentou negociar:

— A senhora me deixa passar em Soares Cabral? Deixando, eu volto direito para casa, não faço mais besteira.

— Passar em Soares Cabral, depois desse vexame? Você está louco.

— Eu preciso, mãe. Tenho de pegar uma coisa lá.

— Que coisa?

— Não sei, mas tenho de pegar. Senão me chamam de covarde. Aceitei o desafio dos colegas, e se não trouxer um troço da casa velha para eles, fico desmoralizado.

— Que troço?

— O pessoal diz que lá dentro tem ferros para torturar escravo, essas coisas. Eu e o Edgar estávamos procurando, ele mais como testemunha, eu como explorador. Mãe, a senhora quer ver seu filho sujo no colégio, quer? Tenho de levar nem que seja um pedaço de cano velho, uma fechadura, uma telha.

A mãe estacou para pensar. Seu filho sujo no colégio? Nunca. Mas e o perigo dos marginais? E a polícia? E seu marido? Vá tudo para o inferno. Tomou uma resolução macha, e disse para Caçulinha:

— Quer saber de uma coisa? Eu vou com você a Soares Cabral.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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