segunda-feira, 3 de junho de 2019

Guy de Maupassant (Luar)


Aquele nome de batalha ia bem ao cura Marignan. Era um sacerdote alto, magro, de alma reta, mas em perene estado de exaltação. Todas as suas crenças eram fixas, sem jamais sofrerem vacilações. Sinceramente acreditava conhecer seu Deus, penetrar-lhe os desígnios, os desejos, as intenções.

Quando passeava com passos largos pela alameda do pequeno presbitério, muitas vezes uma interrogação se erguia no seu espírito: "Por que Deus terá feito tal coisa?" Obstinava-se em procurar a resposta para aquele porquê, colocando-se mentalmente no lugar de Deus, e sempre a encontrava. 

Não seria ele quem murmuraria num impulso de piedosa humilhação: "Senhor, vossos desígnios são impenetráveis!" Dizia: "Sou o servo de Deus, preciso conhecer as razões que o movem, e adivinhá-las quando não as conhecer".

Todas as coisas na natureza lhe pareciam ter sido criadas com absoluta e admirável lógica. Os "Por que?" e os "Porque" sempre se equilibravam. As auroras haviam sido feitas para alegrar o despertar, os dias para amadurecer as colheitas, as chuvas para regá-las, as tardes para preparar o sono, e as noites escuras para dormir.

As quatro estações correspondiam perfeitamente às necessidades da agricultura; e nunca perturbara o sacerdote a suspeita de que a natureza não tem intenções e que, ao contrário, tudo quanto vive está sujeito às duas necessidades impostas pelas épocas, pelos climas e pela matéria.

Mas ele odiava a mulher, odiava-a inconscientemente, e desprezava-a por instinto. Aprazia-lhe repetir a frase de Cristo: "Mulher, o que há de comum entre ti e mim?" E acrescentava: "Dir-se-ia que o próprio Deus se sentia descontente com essa parte da sua criação". Para ele a mulher era bem a criança doze vezes impura de que fala o poeta. Era o tentador que arrastara o primeiro homem e que prosseguia sem cessar na sua obra de perdição, ente fraco, perigoso, misteriosamente perturbador. E, ainda mais do que o seu corpo, instrumento de danação, odiava-lhe a alma amorosa.

Muitas vezes sentira a ternura da mulher envolvê-lo e, embora se acreditasse inatingível, exasperava-o aquela necessidade de amor que constantemente fazia palpitar os corações femininos.

Deus, na sua opinião, criara a mulher apenas para tentar o homem e experimentá-lo. Urgia não se aproximar dela, a não ser com precauções defensivas, e o temor com que defrontamos as armadilhas. Com efeito, com seus braços estendidos e seus lábios entreabertos para o homem, ela bem que se assemelhava a uma armadilha.

Só as religiosas, a quem os votos tornavam inofensivas, mereciam a sua indulgência; assim mesmo, tratava-as com dureza, pois sentia que continuava viva em seus corações acorrentados, em seus corações humilhados, aquela eterna ternura que também o envolvia, embora fosse sacerdote.

Sentia-a nos seus olhares mais umedecidos pela piedade do que o olhar dos monges; nos seus êxtases, nos quais o sexo se misturava; nos seus arroubos amorosos para com o Cristo, que o indignavam por se tratar de amor de mulher, amor carnal; sentia aquela mesma ternura amaldiçoada na própria docilidade das religiosas, na doçura das suas vozes quando a ele se dirigiam, nos seus olhos baixos, e nas lágrimas resignadas que derramavam quando as tratava com aspereza.

E sacudia a batina ao deixar as portas do convento, e afastava-se com passos apressados como se fugisse a um perigo

O cura Marignan tinha uma sobrinha que vivia com a mãe numa casinha, nos arredores. Porfiava em fazer dela uma irmã de caridade. A moça era bonita, estouvada, zombeteira. Ouvia, sorrindo, os sermões do cura; e quando ele se zangava, abraçava-o com veemência, apertando-o contra o coração, enquanto que, involuntariamente, ele tentava desvencilhar-se do amplexo; dela lhe vinha, contudo, uma doce alegria, pois despertava no seu íntimo o instinto da paternidade, que dormita em todos os homens.

Muitas vezes, caminhando ao lado da sobrinha através dos campos, o cura falava-lhe de Deus, do seu Deus. Ela mal o escutava e olhava o céu, as plantas, as flores e o gosto de viver lhe transparecia nos olhos. Às vezes, corria para apanhar um inseto alado e exclamava ao trazê-lo: "Veja, titio, como é bonito: até sinto vontade de beijá-lo!" E aquele desejo de "beijar moscas", ou sementes de lilás, inquietava, irritava, revoltava o sacerdote que nele encontrava a inextirpável ternura sempre pronta a germinar no coração das mulheres.

E eis que um dia a mulher do sacristão, que cuidava da casa do cura Marignan, cautelosamente lhe contou que sua sobrinha tinha um namorado. A notícia causou ao sacerdote uma enorme emoção, e ele quase perdeu o fôlego, o rosto cheio de sabão, pois se barbeava.

Quando novamente se encontrou em estado de refletir e de falar, exclamou: - Não é verdade, você está mentindo, Mélanie!

Mas a camponesa colocou a mão no coração:

- Que Nosso Senhor me castigue se estou mentindo, senhor Cura. Estou lhe dizendo que ela sai todas as noites, nem bem a mãe se deita. Encontram-se à beira do rio. Se quiser vê-los, é só aparecer lá entre dez horas e meia-noite.

O sacerdote parou de arranhar o queixo e pôs-se a caminhar agitadamente, como costumava fazer em suas horas de graves meditações. E cortou-se três vezes, entre o nariz e a orelha, quando recomeçou a barbear-se.

Durante o dia inteiro permaneceu silencioso, quase estourando de cólera e indignação. Ao seu furor sacerdotal diante do invencível amor, juntava-se uma exasperação de pai espiritual, de tutor, de responsável pelas almas, enganado, roubado, ludibriado por uma criança; aquela mesma indignação egoísta dos pais a quem uma filha comunica que, sem consultá-los, e contra a vontade deles escolheu um marido.

Depois do jantar tentou ler um pouco, mas não conseguiu; sentia-se cada vez mais irritado. Ao soar das dez horas, apanhou a bengala, um formidável bastão de carvalho, que sempre o acompanhava nas suas saídas noturnas, quando ia ver algum doente. E olhou com um sorriso o maciço cacete que ameaçadoramente fazia girar no seu sólido punho de camponês. Depois ergueu-o no ar, de chofre, e rilhando os dentes, deixou-o cair sobre uma cadeira cujo espaldar foi parar no chão, rachado ao meio.

Abriu a porta para sair; porém, deteve-se à soleira, perplexo ante o esplendor de um luar como muito raramente se via.

E como era dotado de um espírito ardente, de um daqueles espíritos que deviam ter animado os Padres da Igreja, esses poetas sonhadores, subitamente se sentiu empolgado, emocionado pela grandiosa e serena beleza da noite clara.

No seu jardinzinho, inteiramente banhado por uma suave luminosidade, as árvores frutíferas, enfileiradas, desenhavam no chão, em silhueta, os galhos frágeis ainda mal revestidos de verdura; ao passo que a madressilva gigante, enroscada na parede da casa, exalava fragrâncias deliciosas e como que adocicadas, fazendo flutuar na noite tépida e transparente uma espécie de alma perfumada.

O cura Marignan pôs-se a respirar profundamente, sorvendo o ar como os bêbedos bebem vinho, e caminhando a passos lentos, encantado, maravilhado, quase esquecido da sua sobrinha.

Assim que chegou ao campo, deteve-se para contemplar a planície iluminada por aquela claridade acariciante, envolta pelo encanto terno e lânguido das noites serenas. Os sapos soltavam, continuamente, suas notas curtas e metálicas e, na distância, rouxinóis entremisturavam seus cantos trinados, que fazem sonhar sem obrigar a pensar, música leve e vibrante feita para o beijo, sob a fascinação do luar.

O pároco recomeçou a caminhar, sentindo o coração desfalecer, sem que soubesse por quê. Sentia-se como que enfraquecido, subitamente esgotado; tinha vontade de sentar-se, de aí permanecer, de contemplar, de admirar Deus através da sua obra.

Ao longe, acompanhando as ondulações do riacho, serpenteava uma longa fileira de choupos. Uma névoa fina, vapor branco que os raios da lua traspassavam, prateavam, e faziam cintilar, pairava sobre as ribanceiras, cingia-as, e envolvia o curso tortuoso da água numa espécie de algodão leve e transparente.

Mais uma vez o sacerdote estacou, invadido até o fundo da alma por um crescente e irresistível enternecimento.

E uma dúvida, uma vaga inquietação o assaltava; sentia modelar-se dentro dele uma daquelas perguntas que dirigia a si próprio, às vezes.

Por que Deus fizera aquilo? Já que a noite era destinada ao sono, à inconsciência, ao repouso, ao esquecimento de tudo, por que torná-la mais bela do que o dia, mais suave do que as auroras e as tardes, e por que aquele astro lânguido e sedutor, mais poético do que o sol, e tão discreto, que parecia fadado a iluminar coisas delicadas e misteriosas demais para a luz do sol, por que viera a tornar tão transparentes as trevas da noite?

Por que o mais harmonioso dos pássaros canoros não repousava como os outros e se punha a cantar na sombra perturbadora?

Por que aquele véu transparente atirado sobre o mundo? Por que aqueles frêmitos no coração, aquela emoção na alma, aquele langor na carne?

Por que aquela exibição de belezas que os homens não viam, pois dormiam em suas camas? A quem seria destinado aquele sublime espetáculo, aquele transbordamento de poesia que o céu atirava sobre a terra?

E o cura nada compreendia.

Eis que ao longe, à orla da campina, sob a abóbada do arvoredo imerso numa bruma luminosa, surgiram duas sombras, caminhando lado a lado.

O homem era mais alto e enlaçava os ombros da companheira e, de quando em quando, beijava-a na testa. Subitamente, animaram a paisagem imóvel que os envolvia como uma moldura divina para eles preparada. Ambos pareciam compor um único ser, o ser para o qual se destinava aquela noite calma e silenciosa; e caminhavam em direção ao sacerdote como uma resposta viva, a resposta que o Senhor atirava às suas interrogações.

Ele permanecia de pé, o coração palpitando, perturbado, e acreditava presenciar um episódio bíblico, tal como os amores de Ruth e Booz, a realização da vontade do Senhor num dos grandiosos cenários a que se referem os livros santos. Na sua cabeça começaram a ressoar os versetos do Cântico dos Cânticos, gritos ardentes, apelos carnais, toda a candente poesia daquele poema inflamado de ternura.

E ele disse consigo mesmo:

- Talvez Deus tenha feito noites iguais a essa para velar com um pouco de idealismo os amores dos homens.

Retrocedeu diante do par enlaçado que continuava a avançar. Contudo, tratava-se da sua sobrinha; agora, porém, indagava a si próprio se não iria desobedecer a Deus. Pois Deus não consentiria no amor, já que o envolvia abertamente em tamanho esplendor?

E o cura Marignan afastou-se depressa, aturdido, quase envergonhado, como se tivesse penetrado num templo no qual não tivesse o direito de entrar.

Fonte:
Guy de Maupassant. Contos.

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