História da filha mais moça do rei Ikamor, apelidada “A Noiva de Mafoma”.
Das Mil histórias sem fim é esta a décima!
Lida a décima restam, apenas, novecentas e noventa...
Das três filhas do rei Ikamor era eu a mais moça e devo dizer - sem pecar contra a modéstia - que minhas irmãs não levavam sobre mim vantagem alguma no tocante a graças e encantos pessoais.
Monótonos e suavemente decorreram os primeiros anos de minha existência. Sem grandes alegrias - é verdade - mas também sem tristezas que abatem e afligem. Vivia fechada no rico e imenso serralho (1) real de Candahar, verdadeira fortaleza, onde meu pai, rei do Afeganistão, conservava não só a mim e minhas irmãs, como também suas esposas, em absoluta reclusão, conforme o tradicional costume do país.
Para o nosso serviço poderíamos dispor de várias e dedicadas escravas, muito embora os nossos passos fossem dia e noite vigiados por um grupo de guardas, vingativos e intrigantes, que à menor suspeita nos levavam ao terrível Abdalis - o chefe -, sujeito impiedoso que tinha autorização para punir-nos e até infligir-nos castigos corporais!
Abdalis (infame criatura!) era a personificação da perversidade; quando a sombra de sua agigantada figura aparecia no longo corredor, as mulheres de Candahar ficavam pálidas, em silêncio, e encolhiam-se sobre as almofadas, trêmulas de pavor.
Precisamente no dia em que eu completava dezesseis anos, meu pai viu-se obrigado a iniciar uma guerra de vida e morte contra o famoso xá Zemã, o Vingativo, que se dizia pretendente ao trono de Ikamor.
Para que uma derrota em tal campanha não trouxesse como consequência a ruína e a devastação do país, meu pai, que de poucos recursos militares podia dispor nessa época, achou que seria prudente e indispensável fazer uma aliança com o rei Barasky, soberano de Beluchistão.
Esse odiento monarca forçou-o a assinar um tratado no qual fez incluir algumas exigências vexatórias para os afegãos. Entre essas, uma havia menos absurda do que insultuosa: era eu obrigada a aceitar como esposo o indigno aliado do meu país!
Seja Alá testemunha da verdade do que vou dizer. Não conhecia o tal rei Barasky; ouvira, porém, de uma velha escrava persa vários e minuciosos informes que me levaram a concluir que ele devia ser, como o ignóbil Abdalis, velho, feiíssimo, excessivamente gordo e mau.
Como aceitar um noivo cuja simples evocação a minha alma repelia horrorizada? Implorei chorosa a proteção e o auxílio do velho Kattack, o astrólogo, único homem que tinha permissão para entrar (quando acompanhado por um guarda) no harém de Candahar.
O bondoso Kattack disse-me:
- Ó minha infeliz princesa! Bem negro é o vosso destino! Deixai-me ler nos astros a vossa sorte, sem o que nada poderei fazer.
Tais palavras encheram-me de esperanças o coração. Eu bem sabia que o meu venerável amigo era exímio em ler no céu os mistérios que os astros escrevem à noite com a luz que colhem durante o dia do infinito.
Dias depois meu pai procurou-me. Vinha agitado, nervoso, impaciente, e parecia que em seu espírito se digladiavam as mais desencontradas preocupações.
- Minha filha - disse-me, afagando-me carinhoso o rosto. - Sinto dizer-te que o casamento com o rei Barasky é impossível! O sábio Kattack acaba de ler no céu graves revelações a teu respeito!
- Dize, meu pai - implorei. - Que nova desgraça paira sobre mim?
- Desgraça? Longe de nós tal palavra! O teu futuro sorri a salvo de qualquer infortúnio. Bem sabes que, segundo uma velha lenda árabe, de cem em cem anos o profeta Mafoma (com Ele a oração e a paz) desce à terra a fim de escolher uma noiva entre as jovens mais formosas. Aquela que tem a felicidade de agradar ao Profeta é incluída no número das mulheres perfeitas (2) e só poderá casar com um homem qualquer se ao fim de três anos e onze dias o Profeta (a paz sobre Ele!) não vier buscá-la.
- Ó meu pai - balbuciei desolada. - Custa-me acreditar que seja verdadeira tão espantosa revelação celeste. Como poderia eu, feia e pouco gentil, despertar a atenção do Profeta de Alá?
A tais palavras, tão despidas de sinceridade, retorquiu meu pai:
- No que respeita aos teus dotes físicos, faltas pecaminosamente à verdade. A tua deslumbrante formosura é reconhecida e proclamada pelas filhas de meu tio. (3) Devo-te, porém, um aviso para o qual o prudente Kattack me chamou especialmente a atenção. Se durante o prazo de três anos e onze dias, por uma fraqueza de tua parte, traíres o voto de fidelidade ao Profeta, sofrerás um castigo terrível: terás amputadas ambas as mãos!
- Tranquiliza-te, meu pai - respondi. - Eleita do Profeta, ser-lhe-ei fiel não durante esse ridículo prazo de três anos e onze dias, mas durante meio século!
E terminei por declarar, com uma segurança que até a mim própria causou espanto:
- Se o Profeta não me vier buscar, ficarei solteira toda a vida!
A situação especial de ser noiva do Profeta facultava-me regalias excepcionais no serralho. Era-me permitido subir sozinha ao terraço, não só pela manhã, como a qualquer hora do dia ou da noite; e, acompanhada de uma escrava, tinha a liberdade de passear pelos jardins de Candahar, depois da última prece.
As outras mulheres do harém deitavam sobre mim olhares terríveis a que a inveja emprestava colorações estranhas.
Devo dizer, com sinceridade, que nunca dera crédito a essa lenda do noivado com Mafoma. Desconfiei desde logo - e mais tarde certifiquei-me da exatidão de tal desconfiança - que não passava o caso de um original artifício de que o ardiloso Kattack lançara mão para livrar-me do rei Barasky.
O bom astrólogo não tardou em fazer-me, a respeito, completas confidências:
- Minha linda princesa - disse-me uma noite, quando cavaqueávamos a sós no jardim -, bem sabeis que abusei da boa-fé do vosso pai, o rei Ikamor, fazendo-o acreditar nessas absurdas núpcias com o Profeta. Mas, se assim procedi, mereço perdão, dado o fim nobre que tinha em vista: queria livrar-vos das garras de um homem devasso e cruel! Passado, porém, o prazo de três anos e onze dias, a guerra estará terminada e o rei Ikamor, livre das exigências desse aliado indesejável, poderá repelir qualquer proposta menos digna que vise à tua mão.
E, assim conversando, chegamos juntos a um poço onde nadavam muitos peixes vermelhos.
- Que lindos peixes! - exclamei.
- Já conheceis, ó princesa! - perguntou-me o astrólogo -, a famosa lenda que explica a origem dos peixes vermelhos?
Respondi-lhe que não e que muito folgaria em ouvi-la.
O sábio Kattack contou-me então o seguinte:
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continua…
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Notas
1 Serralho - palácio. Uma das partes do serralho é o harém; é constituído pelas salas e quartos destinados às mulheres.
2 As mulheres “perfeitas” são em número de cinco e todas aparecem citadas no Alcorão.
3 Maneira pela qual os árabes tratam as esposas.
Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2.
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